2006/12/21
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 18
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De súbito, Manuel sentia-se viver como pairando já no futuro.
Tão incrivelmente, e ao mesmo tempo com tal naturalidade, que nada o surpreendeu ser procurado uma noite por três ou quatro outras figuras dominantes entre os colonos portugueses brancos, simplesmente para informá-lo…
Ficou de começo talmente azoratado, que levou algum tempo a perceber.
… queriam as três ou quatro figuras informá-lo de que “a associação” controlava um pequeno mas efectivo arsenal de armas e munições, suficiente para armar e municiar todos os colonos , o qual, no entender dos ciosos informadores, deveria ser posto já ao serviço da milícia.
Manuel ficou logo a saber, também, que esse armamento não pertencia ao Exército português mas que fora pura e simplesmente adquirido pela associação dos colonos, para prevenir qualquer emergência.
Qualquer emergência…
Como um levantamento de indígenas, por exemplo – esclareceram. – Já não seria a primeira vez! Antes acontecia com maior frequência. Quando o tráfico de escravos não se comparava ao de agora. Acontecia, de repente, os escravos amotinarem-se, na altura de serem embarcados, e fugirem em ordem dispersa, por todas as direcções, munidos de armas que ninguém sabia donde vinham, mas quase sempre os tornavam incontroláveis. Além de perigosíssimos, porque os civis brancos, sem protecção armada que se visse e impusesse, logo ficavam à mercê dos grupos de escravos armados e municiados, que se constituíam em qualquer ponto previamente acertado de concentração e que não raro tornavam ao Ambriz decididos e organizados para vingar-se dos brancos e assegurar meios de sobrevivência para si próprios.
“Quer dizer – perguntou Manuel, com algum sarcasmo – que temos armas e munições mas nunca treinámos o seu uso… ou nem sequer as experimentámos alguma vez?...”
Confessaram prestamente que assim era de facto.
“Por isso, concluíram, sentimo-nos encorajados a avançar para vir dar-lhes a informação que já suspeitávamos vos tivesse sido ocultada. Agora já não haverá desculpas para não pordes a milícia de pressa a funcionar. Todos os colonos brancos queremos as armas desenferrujadas, e rapidamente, que os ingleses não tardam a desembarcar aí outra vez!"
- Como sabem? – perguntou Raul, com um piscar divertido do olho esquerdo para o irmão, enquanto com o olho direito fixava muito sério o pequeno grupo de notáveis denunciantes do segredo das armas a ganharem ferrugem inutilmente, sem honra nem proveito para ninguém e com muita tranquilidade e sossego para os frígidos e calmos ingleses.
Tão certo como isso é que, quando o comendador regressou de Luanda com excelentes notícias do governo da colónia, já Manuel e Raul, ajudados por dois religiosos da missão, cujos serviços o padre superior espontaneamente lhes oferecera, tinham afinado a capacidade de tiro e pontaria dos colonos válidos. Entusiasmados todos com a perspectiva de em breve fazerem frente à Inglaterra, aos ingleses e ao seu Império mundial, vingando ofensas recebidas, durante séculos, dos mais velhos aliados de sempre pelo mais fiel aliado que regista a História universal, nenhum colono no Ambriz se eximiu aos rigores do treino planeado, organizado e conduzido pelos eleitos da comunidade, Manuel e Raul, sob a superintendência do presidente da associação.
Também já nada surpreendia o comendador, vindo “daqueles dois”, como ele sublinhava olhando-os com um sorriso largo de profunda simpatia e ternura, um tanto de avô para netos muito adorados.
Por isso, não descansou até que pôde mostrar-lhes, primeiro que a todos os mais, a carta do governador em que este estabelecia, por forma sumária mas muito ampla, as regras e poderes de Manuel Cruz Fonseca, ajudado por Raul e consultado o comendador, para porem a funcionar urgentemente, “em condições de perfeita operacionalidade”, a primeira milícia de civis de Angola, no Ambriz, podendo e devendo agir num raio de dez léguas ao redor.
Eles empenharam-se nisso com tanto sucesso que, quando os ingleses da Royal Navy de facto voltaram, três meses depois do seu glorioso desembarque, aqui repetidamente recordado, os "bifes" nem queriam de modo algum acreditar que, com tanta rapidez e eficácia, os portugueses tivessem resolvido o problema da efectiva ocupação do território.
Chamaram-lhe mesmo “ovo de Colombo”!
Portugueses dum raio! – e riam às gargalhadas.
Como podia, na verdade, Colombo não ser português!
Não era?
Uma ova!
E como “penhor de aliança”, pediram licença para, a título de empréstimo, deixarem ficar, com bastas munições, o canhão que já uma vez ali tinham desembarcado.
Voltariam a buscá-lo um dia, quando precisassem dele, explicaram como que desculpando-se.
Manuel e o comendador assinaram, na qualidade de “representantes” do governo de Angola, o título de responsabilidade pela peça fundadora da primeira unidade de artilharia de costa de Angola, a Norte de Luanda!
Quanto ao resto, os ingleses foram igualmente sumários mas garantiram…
“Instruções de funcionamento?... Reparações?... Isto funciona sempre! E nunca avaria!... É material do melhor fabrico alemão! Da Krupp!”
A.C.R.
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De súbito, Manuel sentia-se viver como pairando já no futuro.
Tão incrivelmente, e ao mesmo tempo com tal naturalidade, que nada o surpreendeu ser procurado uma noite por três ou quatro outras figuras dominantes entre os colonos portugueses brancos, simplesmente para informá-lo…
Ficou de começo talmente azoratado, que levou algum tempo a perceber.
… queriam as três ou quatro figuras informá-lo de que “a associação” controlava um pequeno mas efectivo arsenal de armas e munições, suficiente para armar e municiar todos os colonos , o qual, no entender dos ciosos informadores, deveria ser posto já ao serviço da milícia.
Manuel ficou logo a saber, também, que esse armamento não pertencia ao Exército português mas que fora pura e simplesmente adquirido pela associação dos colonos, para prevenir qualquer emergência.
Qualquer emergência…
Como um levantamento de indígenas, por exemplo – esclareceram. – Já não seria a primeira vez! Antes acontecia com maior frequência. Quando o tráfico de escravos não se comparava ao de agora. Acontecia, de repente, os escravos amotinarem-se, na altura de serem embarcados, e fugirem em ordem dispersa, por todas as direcções, munidos de armas que ninguém sabia donde vinham, mas quase sempre os tornavam incontroláveis. Além de perigosíssimos, porque os civis brancos, sem protecção armada que se visse e impusesse, logo ficavam à mercê dos grupos de escravos armados e municiados, que se constituíam em qualquer ponto previamente acertado de concentração e que não raro tornavam ao Ambriz decididos e organizados para vingar-se dos brancos e assegurar meios de sobrevivência para si próprios.
“Quer dizer – perguntou Manuel, com algum sarcasmo – que temos armas e munições mas nunca treinámos o seu uso… ou nem sequer as experimentámos alguma vez?...”
Confessaram prestamente que assim era de facto.
“Por isso, concluíram, sentimo-nos encorajados a avançar para vir dar-lhes a informação que já suspeitávamos vos tivesse sido ocultada. Agora já não haverá desculpas para não pordes a milícia de pressa a funcionar. Todos os colonos brancos queremos as armas desenferrujadas, e rapidamente, que os ingleses não tardam a desembarcar aí outra vez!"
- Como sabem? – perguntou Raul, com um piscar divertido do olho esquerdo para o irmão, enquanto com o olho direito fixava muito sério o pequeno grupo de notáveis denunciantes do segredo das armas a ganharem ferrugem inutilmente, sem honra nem proveito para ninguém e com muita tranquilidade e sossego para os frígidos e calmos ingleses.
Tão certo como isso é que, quando o comendador regressou de Luanda com excelentes notícias do governo da colónia, já Manuel e Raul, ajudados por dois religiosos da missão, cujos serviços o padre superior espontaneamente lhes oferecera, tinham afinado a capacidade de tiro e pontaria dos colonos válidos. Entusiasmados todos com a perspectiva de em breve fazerem frente à Inglaterra, aos ingleses e ao seu Império mundial, vingando ofensas recebidas, durante séculos, dos mais velhos aliados de sempre pelo mais fiel aliado que regista a História universal, nenhum colono no Ambriz se eximiu aos rigores do treino planeado, organizado e conduzido pelos eleitos da comunidade, Manuel e Raul, sob a superintendência do presidente da associação.
Também já nada surpreendia o comendador, vindo “daqueles dois”, como ele sublinhava olhando-os com um sorriso largo de profunda simpatia e ternura, um tanto de avô para netos muito adorados.
Por isso, não descansou até que pôde mostrar-lhes, primeiro que a todos os mais, a carta do governador em que este estabelecia, por forma sumária mas muito ampla, as regras e poderes de Manuel Cruz Fonseca, ajudado por Raul e consultado o comendador, para porem a funcionar urgentemente, “em condições de perfeita operacionalidade”, a primeira milícia de civis de Angola, no Ambriz, podendo e devendo agir num raio de dez léguas ao redor.
Eles empenharam-se nisso com tanto sucesso que, quando os ingleses da Royal Navy de facto voltaram, três meses depois do seu glorioso desembarque, aqui repetidamente recordado, os "bifes" nem queriam de modo algum acreditar que, com tanta rapidez e eficácia, os portugueses tivessem resolvido o problema da efectiva ocupação do território.
Chamaram-lhe mesmo “ovo de Colombo”!
Portugueses dum raio! – e riam às gargalhadas.
Como podia, na verdade, Colombo não ser português!
Não era?
Uma ova!
E como “penhor de aliança”, pediram licença para, a título de empréstimo, deixarem ficar, com bastas munições, o canhão que já uma vez ali tinham desembarcado.
Voltariam a buscá-lo um dia, quando precisassem dele, explicaram como que desculpando-se.
Manuel e o comendador assinaram, na qualidade de “representantes” do governo de Angola, o título de responsabilidade pela peça fundadora da primeira unidade de artilharia de costa de Angola, a Norte de Luanda!
Quanto ao resto, os ingleses foram igualmente sumários mas garantiram…
“Instruções de funcionamento?... Reparações?... Isto funciona sempre! E nunca avaria!... É material do melhor fabrico alemão! Da Krupp!”
A.C.R.
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