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2007/01/09

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 1 

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O Nogueira que vamos agora encontrar no Ambriz era duma família originária de Maceira, pequena aldeia abaixo de São Romão, já no vale, e não da povoação de Santa Eulália, como disse e repeti antes.

Um leitor do blogue advertiu-me para o erro, com certo ar de quem, no fundo, me censurasse, pois que para os Nogueiras não é preciso fingir nem inventar, tão conhecida é a sua acção no antigo Congo Belga, sobretudo.

Corrigi, porque concordei.

Embora tenha sido apenas vítima dum lapso de memória, isso dá-me oportunidade de proclamar que a saga dos Nogueiras dispensa a fantasia quer para preencher lacunas quer para embelezar ou engrandecer-lhes a gesta.

Porque a história dos Nogueiras foi a própria História daquela região da África, durante longos anos, porventura sem eles próprios se aperceberem do seu papel formidável na colonização da África Central. Pelo menos nunca se gabaram disso, que conste ou se saiba.

Quando o primeiro africanista da família, João Nogueira, chegou ao Ambriz, ido da aldeia natal deles da Beira, já lá encontrou os irmãos Cruz, industriais prestigiados e de sucesso, apesar de muito novos, vivendo no melhor círculo social da terra, entre os mais antigos e ricos comerciantes, os mais importantes funcionários ou militares e os missionários mais influentes.

Aliás, o facto de serem quase conterrâneos, como logo descobriram, aproximou prontamente João Nogueira dos irmãos Cruz, de pressa se tornando amigos e confidentes, que as suas aldeias natais não chegavam a distar meia légua uma da outra e, vistas de longe, as pequenas distâncias de origem, tão importantes nas suas Beiras, esbatiam-se de todo.

Os irmãos Cruz facilitaram-lhe também os primeiros passos nos negócios e o Nogueira, formidável trabalhador, com uma genica espantosa, apreendendo tudo num ápice, em menos de um ano passou de empregado a patrão de si próprio, logo com duas lojas suas, comprando e vendendo tudo aos negros e aos brancos, numa tal variedade de artigos e produtos, para todos os preços, como ninguém se abalançara a tanto. Seguro e decidido como um génio dos negócios, nem por isso, curiosamente, João Nogueira despertava invejas ou fazia inimigos, antes pelo contrário, com o seu feitio quase brincalhão e sempre sedutor, excessivamente educado até.

Era muito religioso e, mesmo não querendo nem sendo capaz de abusar da sua fé, tornou-se logo, sem escândalo declarado de ninguém, um dos fornecedores encartados das missões e de muitos sobas e comerciantes negros convertidos, mais distantes, a quem as missões o recomendavam.

Não dormia João Nogueira mais de cinco horas por noite, mas rapidamente adquirira o hábito de fazer a sesta, na dureza daquele clima, como a generalidade dos brancos, durante duas horas de sono ligeiro cada tarde, depois do almoço, regime que lhe permitia ler demoradamente à noite, antes de adormecer até às cinco ou seis horas da madrugada, hora a que sem falta de levantava todos os dias.

Lia tudo o que lhe chegava e o que ia regularmente encomendando da Europa, pelas “actualidades” literárias e informativas dos jornais que devorava, em português e francês, e que recebia com os atrasos perfeitamente pontuais e rigorosamente estabelecidos, segundo as demoras e periodicidade das carreiras dos vapores europeus.

Pelo meio, lia também os catálogos e mais informações que os fornecedores europeus e candidatos a fornecedores lhe remetiam prolixamente.

Foi numa dessas leituras que se apercebeu do interesse em comprar um pequeno vapor para, a partir do Ambriz, subir e descer o rio do mesmo nome levando e trazendo mercadorias e produtos para o interior e do interior para a costa, até onde o rio fosse navegável, que ninguém, com rigor, lhe soubera dizer até onde seria. O que o levou a pensar que seria bastante longe, dezenas de léguas certamente.

Falou da ideia na missão católica e também aos manos Cruz, os quais logo compreenderam a importância que isso podia vir a ter para o seu próprio negócio, levando mais longe e mais rapidamente do que até aí o sabão e óleo de palma que produziam.

Foi um sucesso, para o que ainda contribuíram as facilidades encontradas na compra dum vapor de que um grande comerciante de Luanda queria desfazer-se, porque tanto ele como os seus negros e brancos se entendiam mal com as surpresas do funcionamento do vaporzeco, que não estava velho nem gasto inapelavelmente, mas apenas mal estimado e pior tratado.

Com o que aprendera nalgumas leituras e a ajuda dum serralheiro negro formado nas missões, depois de estudarem cautelosamente as caixas de ferramentas do barquinho e tentando compreender as explicações do mestre capataz alemão do barco, João Nogueira lá o pôs a navegar fiavelmente, já convencido de que tão bom seria como engenheiro naval quanto era como homem de negócios, “duramente comprovado”, dizia ele.

Mas o grande mérito, como se sabia e veio a confirmar-se, era do próprio barquinho.

Também ele da Krupp!

Engenho e fabrico da Krupp, claro.

Nos ovos que a Europa então chocava, já estavam a 1ª e a 2ª guerra mundiais do séc. XX, como por esse tempo não se sabia mas veio efectivamente a confirmar-se super-abundantemente.

Tudo produto da industrialização dos brancos, sôfrega de mercados, como diria, apressado ou não, qualquer perito anti-globalização de hoje, de ontem e de amanhã.

Quando o barco chegou ao Ambriz, foi recebido em ombros, metaforicamente falando, por toda a população concentrada ao longo das praias.

O presidente da Câmara, administrador ou lá o que era, não perdeu a oportunidade de prometer que ia lutar com unhas e dentes para que em breve tivesse de proceder-se à inauguração do futuro cais portuário do Ambriz.

“Com mais entusiasmo ainda que hoje!” – exclamou.

“Viva o Rei!”

“Viva Angola!”

“Viva Portugal!”

“Viva o Ambriz!”

“E viva o futuro porto do Ambriz!” – concluiu, entusiasticamente aplaudido pela enorme multidão de brancos e negros intimamente misturados que acabara por juntar-se.

O empreendedor João Nogueira é que não se satisfez com promessas e exigiu ser mesmo transportado em ombros até à sede da Associação dos colonos portugueses, de facto e não metaforicamente apenas.

Mas a sua cabeça não perdia tempo e, no íntimo dos seus sonhos, naqueles poucos minutos enquanto o levavam em ombros e sem nunca deixar de oferecer-se aos aplausos do povinho, foi decidindo os passos seguintes da sua caminhada para novas glorias e para maior riqueza.

A.C.R.

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