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2007/01/19

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 6 

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Nada de importante acontecera no Ambriz durante a ausência de João Nogueira, a não ser o que de talvez mais importante poderia ter acontecido.

Uma força de elementos da Armada e do Exército português tinha entretanto finalmente desembarcado, para garantir a ocupação efectiva do território, como os ingleses durante tanto tempo haviam insistido, porque, se não…

E agora, a milícia?

Bem, a milícia desapareceria com certeza por si, sem uma palavra sequer de agradecimento dos governos da Metrópole e nem mesmo uma palavra de reconhecimento oficial de ela ter existido de facto… e de direito.

De louvores oficiais aos seus membros ou, em particular, aos seus responsáveis, nem se fala!

João Nogueira, conhecidos os acontecimentos, ficou a recear o pior e arrependeu-se intimamente de ter trazido a família, mas nem à mulher o deu a entender.

Em Lisboa, ainda tivera tempo, porque antes de embarcarem fizera questão disso, de visitar um embaixador natural de São Romão, reformado do Ministério dos Negócios Estrangeiros e muito amigo da família de Marta de Jesus. O embaixador fez um pouco de gala, quis parecer a João Nogueira, do seu conhecimento dos riscos políticos para Angola da passividade portuguesa quanto à ocupação do território do Ambriz, em particular. Disse mesmo que agora os ingleses exibiam uma dúvida calculada sobre a capacidade da milícia para substituir uma real tropa de ocupação. O embaixador queria com isso dizer que, se os militares não avançassem, mais tarde ou mais cedo avançariam eles, os ingleses. Mas também advertia que se antes avançasse a tropa nossa, os ingleses haveriam de discutir, talvez belicamente mesmo, o direito português de ocupação, visto que o desenvolvimento recente do território o vinha tornando apetecido para as potências europeias, não só a Inglaterra.

João Nogueira, se essa era a ideia do ex-embaixador, não se deixou assustar, porque continuava a manter na milícia e nos irmãos Cruz a confiança que todos no Ambriz depositavam nela e neles.

E, em vez disso, empertigou-se mais ainda por dentro, para exibir mesmo uns arremedos de arrogância que ao embaixador se afiguraram bravatas parvas. Mas calou-se e despediu João Nogueira com grandes votos de felicidades e muitas palavras de encorajamento.

Era um verdadeiro diplomata, sem qualquer dificuldade em contradizer ostensivamente os seus pensamentos e convicções mais íntimas.

Mas João Nogueira saiu efectivamente reanimado do encontro, porque não conhecia ainda tal sestro dos diplomatas e da diplomacia.

Na verdade, que mal haveria nessa hipocrisia, se os resultados fossem sempre esses, reanimar em vez de fazer desanimar?

João Nogueira veio a ser o principal propagandeador do renovado optimismo com que foi recebida a chegada da coluna militar portuguesa, tanto mais que os chefes dela não mostraram qualquer urgência, nem mesmo necessidade de desarmar os membros da milícia, que, continuando armados, sentiram mais que duplicar a sua própria segurança e a do território.

Quer dizer também que os valores de venda ou trespasse dos estabelecimentos comerciais e industriais talvez tenham entretanto aumentado na mesma proporção.

Manuel e Raul, que tinham fechado o seu negócio com João Nogueira e recebido farto sinal, antes da partida dele para o “Puto”, consolaram-se pensando que o valor recebido o haviam calculado entrando já com o factor segurança das expectativas da fábrica, no seu ponto mais alto, e que a confirmação delas não vinha senão demonstrar a justeza e acerto da jogada de ambos. De resto, não seria verdade que a ambição das grandes potências sobre o Ambriz seria consequência, em grande parte, do desenvolvimento e progresso local, que a eles e outros como eles se deviam?... Ora o preço da venda tivera largamente em conta isso, estavam portanto justamente pagos, havia que saber dominar o sentido do especulativo a qualquer preço. Considerá-la-iam, de então em diante, uma regra-chave da sua ética empresarial.

Os irmãos Cruz regressaram a Lisboa pelo vapor em que João Nogueira e a família tinham chegado ao Ambriz, embarcando no mesmo quando ali veio aportar de volta para a Europa.

Com eles vinham dois mulatinhos encantadores e muito agarrados aos pais, a filha de Manuel e o filho de Raul, ambos de três anos.

Foram a bordo despedir-se dos pais e dos filhos – honra excepcionalíssima – toda a hierarquia militar, política e admiministrativa da região, todos os seus dirigentes associativos e o padre superior e todos os religiosos, sacerdotes e leigos da missão.

Quando, ainda debruçados na amurada, os dois irmãos viam o Ambriz desaparecer no horizonte, Manuel quase ciciou.

- Vai ser-nos difícil resistir às recordações destas terras, se não voltarmos de novo…

Raul acenou que sim com a cabeça, durante um bom bocado, até que respondeu.

- Se não fossem os mulatitos… Mal casássemos… Vínhamos logo instalar-nos e recomeçar aqui, como o João e a mulher, com os três filhos…

Manuel ficou calado, mas a sua disposição pareceu de imediato outra.

- E se fôssemos já começar a ver se há mulheres de jeito por aí! – disse, abraçando o irmão.

E foram sem mais demora, libertos de toda a melancolia.

Por ser o mais velho, Manuel era o mais apressado, ou queria parecê-lo.

Ah! Se pudessem encontrar duas gémeas, igualmente inteligentes, lindas, dedicadas e boazonas!

E brancas, não se esqueçam. Se possível da Serra, isto é, das Beiras, e muito carinhosas.

A.C.R.

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