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2007/01/22

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 7 

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Quando Manuel voltou a Boma anos depois, porque não podia mais com as saudades mas queria ganhar fôlego antes de continuar para o Ambriz, com quem primeiro deu de caras, mal desembarcou, foi com um filho do seu velho amigo José Luís Veiga Santos, aquele que o contratara e a Raul para o estertor do negócio de escravos, mais de vinte anos antes.

Boma continuava uma terra pequena, mas muitas coisas tinham mudado, entretanto. Os comerciantes portugueses já não eram tão maioritários como naquela altura e, em vez de negociarem predominantemente de conta própria, trabalhavam agora sobretudo por conta de firmas estrangeiras, que tinham decidido utilizar para o desenvolvimento dos seus negócios o apurado faro ancestral dos colonos portugueses para a região, para os indígenas, para a língua, para o clima e, salvo seja,… para fazer mulatos. De facto, rapidamente as firmas estrangeiras de Boma tinham constatado que os “portugas” vendiam e compravam aos indígenas tudo o que queriam, como queriam e quando queriam. E com eles, logo atrás ou logo à frente, traziam os portugueses os missionários prontos a catequizar os gentios.

Tudo visto, os portugueses sabiam, da sua experiência de séculos no Congo, como familiarizar aqueles negros com a Europa e com os europeus, em suma, como civilizá-los pela língua, pelo comércio, pela religião e pelo sexo.

Ultimamente crescera acentuadamente o número de empresas estrangeiras fixadas na região de Boma, onde vinham procurar mais sucesso do que tinham tido noutras zonas, como Matadi, Kinshasa, Ponta Negra, Maquela do Zombo e a futura Santo António do Zaire, por exemplo.

Manuel Cruz nunca pensara que tão de pressa se visse perante a necessidade de dar provas de semelhante portuguesismo, coisa nova na verdade, porque tudo mexia naquela terra, que agora lhe lembrava o Ambriz do “seu” tempo.

- O “tio” fala inglês? – perguntou-lhe de súbito o jovem Veiga Santos, que havia poucos anos deixara Seia, como se de repente se lembrasse dum qualquer problema que tivesse para resolver e que evidentemente o preocupava.

- Não sei, mas arranho! – respondeu Manuel Cruz, longe de pensar em que se metia.

- Então veja se consegue ler esta carta… trago-a aqui, foi-me entregue por uns negros que estão à minha espera na loja – e estendeu a Manuel Cruz um papel um bocado amarrotado, que tinha no bolso traseiro das calças.

Não, Manuel Cruz não conseguia perceber nada ou apenas quase nada daquela carta, a não ser a assinatura que, ao contrário de tudo o mais, era perfeitamente legível.

Leu alto: “Henry Morton Stanley, jornalista do New York Herald Tribune, 6 de Agosto de 1877”.

- Sensacional! – pensou - O que fará um tipo destes por aqui?...

E virando-se para Artur, o Artur Veiga Santos, questionou-o.

- Não está ainda por cá um grego, Papadopolous, casado com uma brasa, grega também, mais nova que ele sete anos?... Tinha um comércio ali para o pé da Matriz, na rua que vem direito ao cais. Falavam e escreviam ambos em inglês, como “bifes”! Mas faziam-se caros como o caraças.

- Não. Foram há três anos viver para perto de Atenas, mas tomou conta do negócio deles um filho que dizem saber inglês ainda melhor que os pais. Aprendeu na Universidade de Atenas, praticou no Cairo durante meses, de caminho para aqui, quando veio ter com os pais, que partiram definitivamente mal ele chegou. Trazia uma destas gregas, ó Tio, que não lhe digo nada!

- Então vamos lá ter com o grego e com a grega, que já me faz crescer água na boca!

- Ó Tio! Água!

Manuel continuava o mesmo. Nem ouviu a graçola do “sobrinho”. Parecia que naquele instante mesmo lhe nasciam asas nos pés, na cola do grego para conhecer essa grega de fazer arder de luxúria os olhos e as faces do “miúdo”. Manuel sabia-se agora mais livre para perseguir uma caça daquelas. Apetecia-lhe dar uma lição ao garoto abelhudo, se possível na cara da grega.

O grego tinha o escritório por trás do armazém e da loja, dominada por uma enorme gravura do Parténon e por gravuras mais pequenas com cenas da Guerra de Tróia.

Quando Manuel acabava de percorrer a série das litografias e se detinha diante da última, o Julgamento de Páris, chegou-se pé ante pé por trás dele a grega, cujo perfume o estonteou logo, ainda antes de se voltar.

Com um deslumbrante sorriso, a grega convidou-os a sentarem-se, para explicar-lhes no mais puro português que o marido lera a carta antes de ela chegar às mãos do garoto Veiga Santos e que, num dos seus habituais repentes, logo se pusera em marcha com uma dúzia de criados negros, três enfermeiros, fartura de mantimentos e roupas, mezinhas de primeiros socorros, tudo do melhor, com mira de fazer-se pagar ao nível do óptimo, pelo tal Henry Morton Stanley, ou quem raio fosse, que angustiadamente pedia socorro a qualquer que lesse a sua carta – S.O.S., socorro para si e seus companheiros, brancos, sobretudo oficiais e funcionários belgas, e negros, como soldados, guias, intérpretes, criados e carregadores, todos exaustos e desprovidos de tudo.

Manuel Cruz suspirou de alívio.

Stanley e o grego Papadopolous lá se arranjariam e, pelo palpite da grega, não estaria o seu homem de volta antes de dois ou três dias.

Por meras trocas de olhares, Manuel e a grega tinham combinado o plano de ambos para a noite. Ela deu-lhes o jantar, a Manuel e ao “garoto abelhudo”, após o que foram cada um para o seu lado, o garoto para casa do patrão, onde estava alojado, Manuel Cruz para o hotelzinho onde deixara a bagagem.

Manuel, caída a noite, voltou a sair com uma pastazita de couro e mudas de roupa, na mão, direito a casa da grega que o acolheu com lágrimas, já em desespero, ansiosa por ser consolada da ausência do homem.

As mudas de roupa, que logo tinha ido bisbilhotar, tranquilizaram-na definitivamente.

A.C.R.

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