2007/01/29
Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 10
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Foi apenas um pequeno ardil, aquela suspensão do encontro a pedido de Manuel, que queria rever alguns pontos da História de Portugal no Congo mas sobretudo descobrir, em tudo o que soubera pela conversa de Stanley, alguns indícios dos seus objectivos e do que eventualmente haveria por trás do plano que demasiado evidentemente estaria a querer desenvolver. Até para alertar os altos e baixos responsáveis portugueses em Angola e no Congo, se houvesse razão para tanto.
Do que aliás já não tinha dúvidas de monta, convencido, embora, de que precisava de saber bastante mais. E quanto mais estivesse e falasse com Stanley, mais acabaria por saber e possivelmente mais interessante ainda.
Sentia subir-lhe ao coração e à cabeça aquela vontade de intrigar que há em todo o espião, mas tentava que o interesse de Portugal sobrepujasse tudo, embora por enquanto quase completamente às cegas sobre o que julgava serem os interesses de Portugal e a sua relação com as expedições de Stanley, bem como sobre o quê e quem que as inspirava ou comandava.
No encontro do dia seguinte, na tenda de Henry Morton Stanley, Manuel, Mr. Cruce, fez questão de começar por desculpar-se de ainda não saber na véspera quanto Mr. Stanley era um explorador da África Central já célebre no mundo inteiro, pelos grandes sucessos das suas viagens exploratórias “enormemente audaciosas e formidavelmente bem organizadas”.
Stanley interrompeu-o neste ponto.
Para lembrar-lhe que não seriam assim tão impecavelmente organizadas, pois ter-se-ia perdido irremediavelmente nesta, com toda a gente da expedição, se não lhes valessem os seus “amigos portugueses” de Boma…
Manuel aproveitou para recordar que louvor tão excepcional só seria justo se alargado aos portugueses dos trezentos e cinquenta anos de História de que haviam falado…
Mas não perdeu a ocasião para começar a prometida lição de História de Portugal…
Stanley voltou a interrompê-lo.
- Não é preciso! Eu também passei a noite a ler o que tenho sobre isso. E fiquei convencido. Sem vocês, nesta parte de África, não vou a parte alguma. Repito, você acompanha-me?... Ponha as condições, seja generoso consigo mesmo.
- Não sei… Sabe, a África não é o meu negócio. Há muito que deixou de sê-lo. É só paixão, paixão pura!
Stanley olhou-o com estranheza, sem querer acreditar numa só palavra. Depois ficou demoradamente calado a olhar o interlocutor…
- Acredito! Sabe? Já sou capaz de acreditar! Mas vocês, os portugueses, vão perder irremediavelmente isto, corridos daqui, se não vos ajudarmos. Os Estados europeus poderosos continuam a acreditar que vocês não são capazes de ocupar efectivamente os territórios historicamente vossos. E que vocês desistirão, é só uma questão de tempo, pouco. Agora regresso à Europa. Tenho contactos importantíssimos a estabelecer em Paris, em Londres e Bruxelas, em Berlim com o Bismark e em Roma, com a Santa Sé. Volto daqui a dois anos, talvez só ano e meio. E depois preciso que você me acompanhe, Congo acima. Conto-lhe tudo quando tiver o acordo das capitais para o meu projecto. Vamos revolucionar a África, mas garanto-lhe que salvaremos o essencial do património histórico português, se vocês tiverem forças militares capazes de abater os sobas revoltados, que os há-de haver. E pelo menos durante cem anos a vossa África atlântica continuará vossa. Ajude-me, que tudo o que temos a fazer terá de ser feito em poucos anos, três ou quatro. Muito tempo? Nem por isso, porque só eu tenho um projecto coerente de partilha da África. São, por enquanto, poucos os estadistas europeus que me compreendem. Quando eu voltar aqui a Boma, é porque os converti a todos. Mas já tenho convencido o mais importante de todos eles, Bismark, aquele que todos os outros seguem porque é o mais inteligente e o mais decidido e com objectivos mais claros. Com ele e o Imperador alemão, nada nem ninguém nos resistirá, vai ver. Você, Manuel, vai comigo?
- Vou. Mas se você, Stanley, não voltar daqui a dois anos, já depois não me encontra cá. Combinado?
- Juro pelo que tenho de mais sagrado, os meus dois filhos, de quem tenho umas saudades doidas. Sim, saudades, aprendi a palavra nos vossos livros de História. Também me disseram que foi aqui que alguns de vós inventaram a palavra e começaram a usá-la. Verdade?
- Bem capaz de ter sido… - respondeu.
Manuel voltou as costas a rir e saiu, perguntando-se a si próprio o que iria fazer durante dois anos, enquanto esperava pelo regresso do americano.
Passar todo o tempo com a grega, a olhar o céu do hemisfério sul, ali na foz do Zaire?
A.C.R.
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Foi apenas um pequeno ardil, aquela suspensão do encontro a pedido de Manuel, que queria rever alguns pontos da História de Portugal no Congo mas sobretudo descobrir, em tudo o que soubera pela conversa de Stanley, alguns indícios dos seus objectivos e do que eventualmente haveria por trás do plano que demasiado evidentemente estaria a querer desenvolver. Até para alertar os altos e baixos responsáveis portugueses em Angola e no Congo, se houvesse razão para tanto.
Do que aliás já não tinha dúvidas de monta, convencido, embora, de que precisava de saber bastante mais. E quanto mais estivesse e falasse com Stanley, mais acabaria por saber e possivelmente mais interessante ainda.
Sentia subir-lhe ao coração e à cabeça aquela vontade de intrigar que há em todo o espião, mas tentava que o interesse de Portugal sobrepujasse tudo, embora por enquanto quase completamente às cegas sobre o que julgava serem os interesses de Portugal e a sua relação com as expedições de Stanley, bem como sobre o quê e quem que as inspirava ou comandava.
No encontro do dia seguinte, na tenda de Henry Morton Stanley, Manuel, Mr. Cruce, fez questão de começar por desculpar-se de ainda não saber na véspera quanto Mr. Stanley era um explorador da África Central já célebre no mundo inteiro, pelos grandes sucessos das suas viagens exploratórias “enormemente audaciosas e formidavelmente bem organizadas”.
Stanley interrompeu-o neste ponto.
Para lembrar-lhe que não seriam assim tão impecavelmente organizadas, pois ter-se-ia perdido irremediavelmente nesta, com toda a gente da expedição, se não lhes valessem os seus “amigos portugueses” de Boma…
Manuel aproveitou para recordar que louvor tão excepcional só seria justo se alargado aos portugueses dos trezentos e cinquenta anos de História de que haviam falado…
Mas não perdeu a ocasião para começar a prometida lição de História de Portugal…
Stanley voltou a interrompê-lo.
- Não é preciso! Eu também passei a noite a ler o que tenho sobre isso. E fiquei convencido. Sem vocês, nesta parte de África, não vou a parte alguma. Repito, você acompanha-me?... Ponha as condições, seja generoso consigo mesmo.
- Não sei… Sabe, a África não é o meu negócio. Há muito que deixou de sê-lo. É só paixão, paixão pura!
Stanley olhou-o com estranheza, sem querer acreditar numa só palavra. Depois ficou demoradamente calado a olhar o interlocutor…
- Acredito! Sabe? Já sou capaz de acreditar! Mas vocês, os portugueses, vão perder irremediavelmente isto, corridos daqui, se não vos ajudarmos. Os Estados europeus poderosos continuam a acreditar que vocês não são capazes de ocupar efectivamente os territórios historicamente vossos. E que vocês desistirão, é só uma questão de tempo, pouco. Agora regresso à Europa. Tenho contactos importantíssimos a estabelecer em Paris, em Londres e Bruxelas, em Berlim com o Bismark e em Roma, com a Santa Sé. Volto daqui a dois anos, talvez só ano e meio. E depois preciso que você me acompanhe, Congo acima. Conto-lhe tudo quando tiver o acordo das capitais para o meu projecto. Vamos revolucionar a África, mas garanto-lhe que salvaremos o essencial do património histórico português, se vocês tiverem forças militares capazes de abater os sobas revoltados, que os há-de haver. E pelo menos durante cem anos a vossa África atlântica continuará vossa. Ajude-me, que tudo o que temos a fazer terá de ser feito em poucos anos, três ou quatro. Muito tempo? Nem por isso, porque só eu tenho um projecto coerente de partilha da África. São, por enquanto, poucos os estadistas europeus que me compreendem. Quando eu voltar aqui a Boma, é porque os converti a todos. Mas já tenho convencido o mais importante de todos eles, Bismark, aquele que todos os outros seguem porque é o mais inteligente e o mais decidido e com objectivos mais claros. Com ele e o Imperador alemão, nada nem ninguém nos resistirá, vai ver. Você, Manuel, vai comigo?
- Vou. Mas se você, Stanley, não voltar daqui a dois anos, já depois não me encontra cá. Combinado?
- Juro pelo que tenho de mais sagrado, os meus dois filhos, de quem tenho umas saudades doidas. Sim, saudades, aprendi a palavra nos vossos livros de História. Também me disseram que foi aqui que alguns de vós inventaram a palavra e começaram a usá-la. Verdade?
- Bem capaz de ter sido… - respondeu.
Manuel voltou as costas a rir e saiu, perguntando-se a si próprio o que iria fazer durante dois anos, enquanto esperava pelo regresso do americano.
Passar todo o tempo com a grega, a olhar o céu do hemisfério sul, ali na foz do Zaire?
A.C.R.
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