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2007/02/02

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 12 

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Pareceu incrível aos que assistiram a maneira como Manuel e Stanley caíram nos braços um do outro!

Seria possível tanta alegria naquele reencontro entre dois homens de origens e percursos tão diversos?

A ninguém passou sequer pela cabeça que estivessem a fingir para terceiros ou a enganar-se um ao outro.

Não, aquilo era tão transparente e espontâneo, sem a possibilidade de fingimento algum, que, a ser teatro, seria teatro de dois mestres. Mas para quê?

Pareceria, quando muito, a quem quisesse explicar tanta alegria, tanta festa, que qualquer deles teria mesmo duvidado da possibilidade de voltarem a encontrar-se, num encontro evidentemente muito desejado por ambos…

Que teriam prometido um ao outro, para ser tamanho o êxtase do reencontro?

O que esperariam um do outro, que talvez tivesse chegado a figurar-se-lhes irrealizável, pois que nunca se tinham mostrado assim tão íntimos, antes da partida de Henry para a Europa?

Que novidades teriam entretanto trocado entre si, em segredo?

Verdade seja que estas dúvidas chegaram a intrigar os mais insuspeitos observadores, aliás amigos de um ou do outro ou até de ambos. Sobretudo alguns dos belgas que tinham permanecido no Ambriz, aguardando o regresso de Henry, e que entretanto se haviam tornado, esses sim, verdadeiros íntimos de Manuel e reciprocamente.

Os belgas, sobretudo os de origem flamenga, eram gente muito desconfiada, pronta a suspeitar que aquilo podia representar uma preferência do líder Stanley pelo “português”, ou a existência de qualquer pacto secreto entre eles, ou o receio de terem de vir a compartilhar com Manuel as sua expectativas de lucro da empresa para que Henry os atraíra.

Os mais desconfiados ou os que se julgariam mais espertos passaram a mantê-los sob observação, um sestro que talvez lhes viesse de longe, dos tempos em que os espanhóis de Filipe II passeavam orgulhosamente, para cá e para lá, pela Grand Place, em Bruxelas, como donos e senhores daquilo tudo, durante quase dois séculos, o que os deixou cheios de ressentimentos e desconfianças por tudo quanto era espanhol. E, para eles, era espanhol tudo quanto vinha da Península e os portugueses, de que quase não tinham outras referência, eram peninsulares também, tanto quanto julgavam saber, apenas com mais doçura, nas vogais da língua, que os restantes faladores da pronúncia agressiva do castelhano. Até então, uma única diferença lhes saltara à sensibilidade, entre os portugueses do séc. XIX e os espanhóis do tempo dos Filipes, uma questão de arrogância: os portugueses tratavam os belgas de igual para igual, mas os espanhóis filipinos haviam ficado marcados pela sua pesporrência antiga. Quase sempre desastrada, aliás, segundo a tradição transmitida de pais para filhos e netos que, embora muito católicos, sobretudo os flamengos, tinham no subconsciente, ou no fundo da consciência, associado para sempre os espanhóis aos terrores da Inquisição, fossem reais ou imaginários.

Depois daqueles abraços entre Manuel e Stanley, a primeira coisa que dois belgas fizeram foi chamar Manuel de parte para lhe perguntarem se em Portugal também havia/houvera Inquisição.

A serenidade de Manuel, ao responder, ia-os fulminando.

Que sim que houvera Inquisição, até o Marquês de Pombal a ter extinto, simplesmente por pensar que já não era necessária. Cumprira ela o seu papel de permitir aos reis de Portugal criarem o Brasil, sem o empecilho e a ganância dos judeus e da sua religião, que podiam ter causado a mais profunda divisão entre os portugueses empenhados na obra máxima de Portugal de todos os tempos, a criação e expansão colonial do Brasil. O Marquês percebera isso muito bem. O Brasil do seu tempo estava construído, bem assente e seguro, os judeus já não podiam pô-lo em perigo, os cuidados doutros tempos contra a sua maléfica influência não mais tinham significado nem utilidade, podia acabar-se com a Inquisição. Perigosos eram então os jesuítas, que no Brasil estavam a pôr em guerra os portugueses brasileiros uns contra os demais, por isso fora necessário ao Marquês expulsar os jesuítas. O Brasil, acrescentou Manuel, que falava com a segurança dum erudito, sem hesitações, o Brasil é que explica toda a História de Portugal dos últimos dois séculos!

Os belgas como nem pouco nem muito acharam para retorquir, e sem perceberem muito bem o arrazoado historicista de Monsieur De La Croix, iam a retirar-se, mas Manuel como que os segurou pelos colarinhos das camisas, para os forçar a ouvirem-no ainda.

- Ouçam lá, vocês não são meio holandeses também?...

E sem esperar resposta, continuou de imediato.

- Pois então ouçam lá mais esta. Vocês também comeram pela medida grande dos portugueses, não foram só os jesuítas e a Inquisição. E foi também no Brasil e por causa do Brasil. Sabiam que os vossos barcos-piratas chegaram a conquistar a Baía, a melhor cidade do Brasil nesse tempo, e que bastou nós livrarmo-nos da ocupação espanhola, em Lisboa, nos idos de 1640-1668, para logo as nossas tropas ficarem de mãos livres para vos expulsar do Brasil, que vocês, flamengos, já julgavam ter no papo?

- E digo-vos mais! – continuou – Também vos expulsámos de Angola, aqui ao lado, de Luanda. Também há uns duzentos anos, vocês, holandeses, flamengos, ou lá o que sois, os maiores negreiros de todos os tempos, quiseram acabar-nos com o nosso comerciozinho de escravos para o Brasil. Como era principalmente por Luanda que o fazíamos, pensaram, e bem, que lhes bastava correrem-nos de Luanda. Mas chegou uma expedição portuguesa vinda do Brasil, para vocês terem de dar às de Vila Diogo. E foi para sempre, nunca mais fostes capazes de tentar de novo! Não sabíeis, pois não, de todos estes xeque-mates dos nossos grandes jogadores do xadrez político-militar dos nossos grandes séculos?...

Os dois belgas flamengos estavam entupidos.

Até que um deles, antes de voltar costas, rapidamente deixou cair uma bomba de surpresa.

- Sim. Mas agora viemos para ficar. Quer vocês queiram quer não, viemos para assentar. Adeus!

Manuel ficou a pensar muito a sério na arrogância enigmática do flamengo. E não menos intrigado. Decidiu logo que tinha de tirar a limpo certas coisas com Stanley, tão rapidamente quanto possível, se não mesmo já.

“Nem é tarde, nem é cedo!” – desatou a cantar em voz muito alta, enquanto corria como o rapaz mais tonto, seguro do mundo todo à sua volta, sentindo no peito ainda todo o calor dos abraços de Stanley, que lhe haviam deixado uma confiança inabalável nele e para sempre.

Tanto mais que, ao separarem-se, depois dos abraços do reencontro, Henry lhe dissera, de modo que ninguém o ouvisse, com os olhos a brilharem de promessas e já a disparar pela rua fora…

“Tenho grandes notícias!”

“Aparece logo que possas!”

A.C.R.

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