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2007/02/07

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 14 

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Stanley pagava.

Dinheiro era evidente que não lhe faltava nem faltaria.

Como era evidente que o orçamento de despesas da expedição fora calculado confortavelmente por alto.

Tão altas seriam as expectativas da aposta em questão…

As armas chegaram alguns dias depois e vinham directamente da Bélgica, como o dinheiro, suspeitava Manuel, por uma palavra ouvida agora, uma pequena frase dois ou três dias depois. Que ele tinha uma paciência de aço e uma capacidade feroz de atenção aos mínimos sinais.

Procedeu-se à reinstalação do acampamento, mas ainda antes começou o treino militar dos cem negros, recrutados nas sanzalas à volta de Boma sob a orientação de Manuel Cruz em todos os seus pormenores.

Muitos dos candidatos – fizeram-se filas enormes – foram recomendados pelo padre superior da missão católica de Boma, a quem Manuel apresentou Henry Stanley, logo depois de este se ter aberto bastante mais acerca dos seus planos, como foi referido no número anterior destas nossas “memórias das minhas aldeias”, com muitas, mesmo muitas aldeias e aldeolas implicadas.

Para que quereria Stanley um tão forte contingente militar, ou militarizado, em qualquer caso tão bem armado, abastecido e treinado?

Stanley não se abria mais do que lhe convinha, era óbvio, mas era ainda mais óbvio que o projecto estava a assumir expectativas bélicas que não se limitavam a uma guerra defensiva, a avaliar pela natureza e extrema dureza agressiva dos treinos, cujos planos eram, aliás, dia sim, dia não, minuciosamente discutidos entre Manuel e Stanley. Ainda que o segundo, depois das semanas iniciais, já inteiramente tranquilo sobre a competência admirável e a surpreendente resistência física e climatérica de Manuel, o tenha deixado de todo entregue a si próprio e aos seus auxiliares portugueses brancos.

Depois do primeiro mês de treinos assíduos e esgotantes, Manuel propôs a Stanley que escolhessem, entre os melhores formandos apurados até essa altura da recruta, dois que seriam os sargentos, como seus próprios auxiliares, e outros quatro que seriam os cabos, auxiliares dos sargentos, dois para cada um.

Assim decorreram os treinos no segundo e terceiro meses, já com essa estrutura a funcionar, à qual no princípio do quarto mês se juntou um complemento de organização imaginado por Henry Stanley. Achou ele necessário montar uma equipa de intendência. Constituída por outro sargento, apoiado por três novos cabos, um dos quais se ocupava dos géneros e refeições; outro da limpeza do recinto, tendas, roupas, homens e animais; e o terceiro das armas e munições.

Um simulacro de tribunal disciplinar acabou também por ser instalado, para atenuar os riscos, já confirmados, de arbitrariedade, desenrascanço e improviso das decisões, como propôs Manuel, o qual ficou a constituir o júri com Stanley e um dos quatro sargentos, este conforme a área da organização em que a infracção fosse cometida.

Ao fim de seis meses, Manuel e Stanley consideraram a “tropa” suficientemente organizada e treinada para se pôr em marcha, com o destino que Mister Henry Stanley, “o nosso general”, determinasse, como Manuel Cruz proclamou na parada final, por entre os gritos e cânticos dos futuros guerreiros, inspirados nos usos indígenas e que haviam sido convenientemente ensaiados.

“Para a mentalização”, como salientavam os chefes brancos entre si.

Mas haviam sido seis meses e tal de esforços violentíssimos, tanto mais que Manuel e Stanley não poupavam sequer fosse que tortura fosse que achassem indispensável aplicar aos recrutas e seus quadros, pretos ou brancos, “para exemplo”.

As perdas foram inevitavelmente pesadas.

Vinte e cinco homens dispensados por incapazes, no fim e a meio da escola de recruta; e doze ou treze homens mortos em resultado das rixas entre recrutas, mas também por acidentes com armas, como dizia o relatório final escrito, para seu exclusivo uso, por Henry Morton Stanley, que chamava acidentes inclusivamente aos fuzilamentos determinados unanimemente por si próprio, por Manuel Cruz e pelo sargento de serviço, sendo eles três os membros do tribunal disciplinar, como já se explicou.

No entanto, outro resultado notavelmente positivo se verificou também.

Não se promete em vão, nestas “memórias”, como vereis.

A.C.R.

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