2007/02/21
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 02
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Aqui Raul perdia-se bastante nos meandros da sua nova família e, talvez para demonstrar como já estava inserido na história e personagens dela, alongava-se na carta para Manuel a escrever sobre as raízes amarantinas da noiva de Alexandre Varela, seu futuro cunhado.
Alexandre Varela era filho do juiz de Tábua que em 1851 condenara à pena de morte, logo pelo Rei comutada em degredo perpétuo para Angola, o mais famoso guerrilheiro liberal dentre 1835 e 1847, o ardilosíssimo João Brandão.
Mas o juiz Varela, antes de ser colocado em Tábua, fizera a sua estreia na Magistratura Judicial como delegado do Ministério Público em Amarante, onde conhecera e fizera grandes amizades na família Botelho de Queirós ilustríssima estirpe da lindíssima vila do Tâmega e de São Gonçalo.
Esse relacionamento muito amistoso esmoreceu um tanto com o distanciamento entre Amarante e Arganil, quando o delegado do M.P. foi promovido juiz para Tábua, vila vizinha de Arganil. Mas restabeleceu-se, tornado ainda mais íntimo e mais vivo, depois que Artur Varela e Pedro Botelho de Queirós, filho de um dos contemporâneos de seu pai, em Amarante, se encontraram como colegas de estudos e rapazes da mesma idade, na Universidade de Coimbra, a ponto de Pedro ter convidado Artur, imediatamente após o primeiro contacto, para passar férias consigo e a família no solar de Amarante.
Foi a ocasião de Artur conhecer e logo se deixar fulminar de amores por Amelinha.
“Cuidado! – advertiu sorrindo o pai juiz, encantado da aliança em perspectiva. – Cuidado que ela pode sair à bisavó Botelho de Queirós, não sei se Amélia também, que viveu no séc. XVIII…”
E contou ao filho a história camiliana da donzela traída e vingada, em termos que também traíam o verdadeiro fascínio de juventude que lhe ficara por Amarante, vila sedutora como mais nenhuma, tanto como por aquela família, ainda mais sedutora e inesquecivelmente simpática de convívio tão simples e espontâneo, aberto e familiar que não tinha qualquer comparação com o relacionamento que julgava mais tosco dos seus meios sociais da Beira-Serra.
Vem o caso referido por Camilo em “O Retrato de Ricardina”, que é fundamentalmente o retrato da vida muito acidentada, com nenhuns escrúpulos e frequentemente criminosa, do abade de Espinho, no concelho de Mangualde, padre Leonardo Botelho de Queirós, que a certo ponto escouceia nestes termos contra os seus inimigos…
“Esta gentalha de brasão e sem brasão há-de afinal saber quem são Botelhos de Queirós – bradou o padre. – Roubaram-me as filhas? Perverteram-mas, fizeram-lhes odioso seu pai que as enriqueceu? Pois bem: hão-de pagar-mas caras eles e elas. Enquanto tiver gota de sangue, hei-de cuspi-lo na cara de quem envergonhou a minha. Olé, se hei-de!... Eu sou Botelho de Queirós por pai e mãe. Vão a Amarante saber como até as mulheres da minha família se vingam… Os covardes, se começaram nesta ilustre linhagem, não há-de ser por mim.”
Em nota de fundo de página à proclamação orgulhosa e vingativa do padre Leonardo Botelho de Queirós, Camilo Castelo-Branco explica…
“Aludia (o padre) ao caso escrito nas genealogias de Queirós. Foi uma senhora que amou um primo e depois amou outro primo, com quem se contratou em casamento, infringida a palavra dada ao primeiro. Este desbocou-se malsinando a honra da pérfida, e ela, para se forrar a maiores incómodos e não andar com ditos para cá e para lá, matou-o a tiro. O abade de Espinho gostava muito desta façanhosa.”
E o juiz Varela visivelmente também.
O filho, completamente rendido e prisioneiro dos encantos da família Botelho de Queirós, em vez de assustar-se com os antecedentes, não assim tão longínquos, de Amelinha, quis logo acelerar o matrimónio.
Raul terminava a carta para Manuel anunciando-lhe o presente de noivado que decidira oferecer à noiva: um retrato a pintar por José Maria Veloso Salgado que, embora pouco mais que adolescente, lhe haviam indicado na capital como uma extraordinária e recentíssima revelação, na modalidade retrato a óleo.
“Achas bem Manuel?”
“Já falei com o pintor que me levou ao seu estúdio, para mostrar-me uma boa dezena de retratos quase prontos para entrega, além de mais alguns acabados, só à espera que lhos paguem.”
“Durante um mês, antes de casarmos, virá o pintor instalar-se em Arganil, na melhor estalagem – substituiu a que ardeu uma noite há quase cem anos, lembras-te, lembras-te?, dormiam lá os nossos bisavós Cruz em viagem de núpcias…”
“A estalagem é perto da casa de Amelinha que posará para o artista quantos dias for necessário, porque queremos apresentar o retrato aos convidados durante a boda.”
“E também por já termos percebido que o artista precisa de dinheiro.”
“Já lhe adiantei algum.”
“É o primeiro galego, filho de imigrantes galegos, que se destaca na pintura portuguesa. Também isso me seduziu no homem!”
“Achas bem Manuel?”
Manuel achava bem e apressou-se a dizer-lho por carta que só conseguiu deitar no correio de Basankusu, quase a meio caminho entre Matadi e Kinshasa, dois meses depois.
Ainda tentou o telégrafo, mas o empregado luso-belga da estação dos correios informou-o de que a sua instalação não estava prevista senão para daí a três anos, se tudo corresse bem. Mas tudo correrá muito melhor em matéria de telégrafos, como se verá.
A.C.R.
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Aqui Raul perdia-se bastante nos meandros da sua nova família e, talvez para demonstrar como já estava inserido na história e personagens dela, alongava-se na carta para Manuel a escrever sobre as raízes amarantinas da noiva de Alexandre Varela, seu futuro cunhado.
Alexandre Varela era filho do juiz de Tábua que em 1851 condenara à pena de morte, logo pelo Rei comutada em degredo perpétuo para Angola, o mais famoso guerrilheiro liberal dentre 1835 e 1847, o ardilosíssimo João Brandão.
Mas o juiz Varela, antes de ser colocado em Tábua, fizera a sua estreia na Magistratura Judicial como delegado do Ministério Público em Amarante, onde conhecera e fizera grandes amizades na família Botelho de Queirós ilustríssima estirpe da lindíssima vila do Tâmega e de São Gonçalo.
Esse relacionamento muito amistoso esmoreceu um tanto com o distanciamento entre Amarante e Arganil, quando o delegado do M.P. foi promovido juiz para Tábua, vila vizinha de Arganil. Mas restabeleceu-se, tornado ainda mais íntimo e mais vivo, depois que Artur Varela e Pedro Botelho de Queirós, filho de um dos contemporâneos de seu pai, em Amarante, se encontraram como colegas de estudos e rapazes da mesma idade, na Universidade de Coimbra, a ponto de Pedro ter convidado Artur, imediatamente após o primeiro contacto, para passar férias consigo e a família no solar de Amarante.
Foi a ocasião de Artur conhecer e logo se deixar fulminar de amores por Amelinha.
“Cuidado! – advertiu sorrindo o pai juiz, encantado da aliança em perspectiva. – Cuidado que ela pode sair à bisavó Botelho de Queirós, não sei se Amélia também, que viveu no séc. XVIII…”
E contou ao filho a história camiliana da donzela traída e vingada, em termos que também traíam o verdadeiro fascínio de juventude que lhe ficara por Amarante, vila sedutora como mais nenhuma, tanto como por aquela família, ainda mais sedutora e inesquecivelmente simpática de convívio tão simples e espontâneo, aberto e familiar que não tinha qualquer comparação com o relacionamento que julgava mais tosco dos seus meios sociais da Beira-Serra.
Vem o caso referido por Camilo em “O Retrato de Ricardina”, que é fundamentalmente o retrato da vida muito acidentada, com nenhuns escrúpulos e frequentemente criminosa, do abade de Espinho, no concelho de Mangualde, padre Leonardo Botelho de Queirós, que a certo ponto escouceia nestes termos contra os seus inimigos…
“Esta gentalha de brasão e sem brasão há-de afinal saber quem são Botelhos de Queirós – bradou o padre. – Roubaram-me as filhas? Perverteram-mas, fizeram-lhes odioso seu pai que as enriqueceu? Pois bem: hão-de pagar-mas caras eles e elas. Enquanto tiver gota de sangue, hei-de cuspi-lo na cara de quem envergonhou a minha. Olé, se hei-de!... Eu sou Botelho de Queirós por pai e mãe. Vão a Amarante saber como até as mulheres da minha família se vingam… Os covardes, se começaram nesta ilustre linhagem, não há-de ser por mim.”
Em nota de fundo de página à proclamação orgulhosa e vingativa do padre Leonardo Botelho de Queirós, Camilo Castelo-Branco explica…
“Aludia (o padre) ao caso escrito nas genealogias de Queirós. Foi uma senhora que amou um primo e depois amou outro primo, com quem se contratou em casamento, infringida a palavra dada ao primeiro. Este desbocou-se malsinando a honra da pérfida, e ela, para se forrar a maiores incómodos e não andar com ditos para cá e para lá, matou-o a tiro. O abade de Espinho gostava muito desta façanhosa.”
E o juiz Varela visivelmente também.
O filho, completamente rendido e prisioneiro dos encantos da família Botelho de Queirós, em vez de assustar-se com os antecedentes, não assim tão longínquos, de Amelinha, quis logo acelerar o matrimónio.
Raul terminava a carta para Manuel anunciando-lhe o presente de noivado que decidira oferecer à noiva: um retrato a pintar por José Maria Veloso Salgado que, embora pouco mais que adolescente, lhe haviam indicado na capital como uma extraordinária e recentíssima revelação, na modalidade retrato a óleo.
“Achas bem Manuel?”
“Já falei com o pintor que me levou ao seu estúdio, para mostrar-me uma boa dezena de retratos quase prontos para entrega, além de mais alguns acabados, só à espera que lhos paguem.”
“Durante um mês, antes de casarmos, virá o pintor instalar-se em Arganil, na melhor estalagem – substituiu a que ardeu uma noite há quase cem anos, lembras-te, lembras-te?, dormiam lá os nossos bisavós Cruz em viagem de núpcias…”
“A estalagem é perto da casa de Amelinha que posará para o artista quantos dias for necessário, porque queremos apresentar o retrato aos convidados durante a boda.”
“E também por já termos percebido que o artista precisa de dinheiro.”
“Já lhe adiantei algum.”
“É o primeiro galego, filho de imigrantes galegos, que se destaca na pintura portuguesa. Também isso me seduziu no homem!”
“Achas bem Manuel?”
Manuel achava bem e apressou-se a dizer-lho por carta que só conseguiu deitar no correio de Basankusu, quase a meio caminho entre Matadi e Kinshasa, dois meses depois.
Ainda tentou o telégrafo, mas o empregado luso-belga da estação dos correios informou-o de que a sua instalação não estava prevista senão para daí a três anos, se tudo corresse bem. Mas tudo correrá muito melhor em matéria de telégrafos, como se verá.
A.C.R.
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