2007/02/23
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 03
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Não pode dizer-se que estas boas novas não tenham contribuído para o sucesso da expedição de Stanley-Manuel Cruz, ao provocarem ou reanimarem no português uma forte nostalgia criativa dele pelas suas raízes europeias e expansionistas, à luz dos conceitos e propósitos que dinamizavam a sociedade dessa altura.
Difusamente, talvez, o americano e o português bebiam na cultura do tempo a ideologia do super-homem e eram já, mesmo que sem o saberem, discípulos ambos de Nietzsche, conciliado embora com o inegável cristianismo que também os dois praticavam.
Quando, quase um anos depois de deixarem Matadi, Stanley e Manuel Cruz chegaram ao pool de Kinshasa, levavam a sua tropa reduzida a pouco mais de metade. Azares de um que outro combate ou emboscada, embora principalmente, de longe, por causa das febres e pelo esgotamento ou pelo “martírio do sexo”… como adiante se perceberá.
Mas haviam acumulado resultados compensadores, se tudo friamente considerado e bem pesado.
Necessidade mais urgente era substituir, de pressa e bem, os efectivos de combate perdidos. Embora contrariado, a princípio, Zé Gomes encarregou-se disso.
E que homem se revelou!
Não pode dizer-se que foi uma revelação, porque revelação foi ele desde o começo, desde a partida de Matadi.
Mas, na sua nova missão, revelou ainda outras e surpreendentes capacidades de trato dos homens e de lhes arrancar quanto tivessem para dar.
Em troca de quê?
De nada ou de muito pouco.
E sendo implacável sempre.
Em geral, favorecia as oportunidades de sexo para os homens do destacamento mas organizava as surtidas para o efeito sistematicamente e sempre em grupos armados, com instruções rigorosas para só actuarem depois de conseguido o essencial das negociações dos chefes com os sobas locais, isto é, depois de os sobas terem “subscrito as fichas” de adesão ao protectorado da AIC, a Associação Internacional do Congo, a partir de Bruxelas dirigida por Leopoldo II da Bélgica.
Nisso era Zé Gomes, como em tudo, de um rigor implacável, não hesitando em fazer liquidar sumariamente quem infringisse as determinações do “comando” e as dele próprio.
Era a essas vítimas dos seus rigores disciplinares que Zé Gomes chamava os seus “mártires do amor”. “Mártires” em que incluía os homens, os noivos ou namorados, os prometidos e outros que tentassem proteger das violações em massa rigorosamente organizadas e premeditadas as “pobres” mulheres das sanzalas por onde passava a terrível caravana.
O cinismo vai ser, até ao fim, seguramente o sentimento dominante que ficou da liderança de Gomes, em toda a trajectória da primeira grande aventura de Stanley, dos portugueses e de alguns belgas, na criação da futura colónia designado por Estado Livre do Congo.
Cinismo que muitos não esquecerão e há-de valer-lhes as circunstâncias da sua morte, nada natural, quase quarenta anos depois em Bruxelas.
Houve, porém, ainda nesta fase e paralelamente às suas responsabilidades na pequena “grande marcha” ao longo do Zaire, um outro feito que haveria de render-lhe grande prestígio, ponto de partida para enormes proveitos a longo prazo.
Zé Gomes era filho de um dos capatazes que trabalharam na construção da linha do Norte, entre Lisboa e o Porto. Mais tarde, já com o filho em plena febre das suas ambições africanas, trabalhou Gomes pai na construção da linha da Beira alta que, entre a Figueira da Foz e a fronteira era a nossa primeira grande ligação à Europa. Europa que começava para alguns portugueses em Espanha, do lado de lá de Vilar Formoso, logo ali, mas para a grande maioria só em Hendaia, à beira dos Pirinéus.
O pai Gomes era natural do Vimieiro, pertinho de Santa Comba Dão, e casara com uma rapariga de Vila Nova de Tazem, a servir como criada numa casa afidalgada do seu terrunho naquela castiça e tristonha Beira Alta.
Tinha ele descoberto a sua vocação profissional como operário indiferenciado na construção da linha Lisboa-Porto, a chamada Linha do Norte. Indiferenciado não tanto por não possuir nenhuma verdadeira especialização, mas porque em pouco tempo revelara capacidades, de que ele próprio não suspeitava, para todos os ofícios que os trabalhos da linha exigiam.
Em pouco tempo lhe descobriram os engenheiros fortes disposições para ajudar os topógrafos a carregar e colocar os seus instrumentos e, logo depois, para ajudar no apontamento dos resultados das observações e até nalgumas leituras da aparelhagem, bem como na descoberta dos pontos de mira mais apropriados e mesmo em cálculos muito simples, para o que ele começou por oferecer-se aos seus chefes e encarregados. Rapidamente foi adoptado por todos como um caso especialíssimo. O leitor não poderá deixar de aceitar o juízo dos contemporâneos, se imaginar o reflexo dos talentos do pai nos enormes talentos que também o filho virá a revelar e desenvolver aplicadamente, como já se viu e ainda veremos muito mais.
A.C.R.
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Não pode dizer-se que estas boas novas não tenham contribuído para o sucesso da expedição de Stanley-Manuel Cruz, ao provocarem ou reanimarem no português uma forte nostalgia criativa dele pelas suas raízes europeias e expansionistas, à luz dos conceitos e propósitos que dinamizavam a sociedade dessa altura.
Difusamente, talvez, o americano e o português bebiam na cultura do tempo a ideologia do super-homem e eram já, mesmo que sem o saberem, discípulos ambos de Nietzsche, conciliado embora com o inegável cristianismo que também os dois praticavam.
Quando, quase um anos depois de deixarem Matadi, Stanley e Manuel Cruz chegaram ao pool de Kinshasa, levavam a sua tropa reduzida a pouco mais de metade. Azares de um que outro combate ou emboscada, embora principalmente, de longe, por causa das febres e pelo esgotamento ou pelo “martírio do sexo”… como adiante se perceberá.
Mas haviam acumulado resultados compensadores, se tudo friamente considerado e bem pesado.
Necessidade mais urgente era substituir, de pressa e bem, os efectivos de combate perdidos. Embora contrariado, a princípio, Zé Gomes encarregou-se disso.
E que homem se revelou!
Não pode dizer-se que foi uma revelação, porque revelação foi ele desde o começo, desde a partida de Matadi.
Mas, na sua nova missão, revelou ainda outras e surpreendentes capacidades de trato dos homens e de lhes arrancar quanto tivessem para dar.
Em troca de quê?
De nada ou de muito pouco.
E sendo implacável sempre.
Em geral, favorecia as oportunidades de sexo para os homens do destacamento mas organizava as surtidas para o efeito sistematicamente e sempre em grupos armados, com instruções rigorosas para só actuarem depois de conseguido o essencial das negociações dos chefes com os sobas locais, isto é, depois de os sobas terem “subscrito as fichas” de adesão ao protectorado da AIC, a Associação Internacional do Congo, a partir de Bruxelas dirigida por Leopoldo II da Bélgica.
Nisso era Zé Gomes, como em tudo, de um rigor implacável, não hesitando em fazer liquidar sumariamente quem infringisse as determinações do “comando” e as dele próprio.
Era a essas vítimas dos seus rigores disciplinares que Zé Gomes chamava os seus “mártires do amor”. “Mártires” em que incluía os homens, os noivos ou namorados, os prometidos e outros que tentassem proteger das violações em massa rigorosamente organizadas e premeditadas as “pobres” mulheres das sanzalas por onde passava a terrível caravana.
O cinismo vai ser, até ao fim, seguramente o sentimento dominante que ficou da liderança de Gomes, em toda a trajectória da primeira grande aventura de Stanley, dos portugueses e de alguns belgas, na criação da futura colónia designado por Estado Livre do Congo.
Cinismo que muitos não esquecerão e há-de valer-lhes as circunstâncias da sua morte, nada natural, quase quarenta anos depois em Bruxelas.
Houve, porém, ainda nesta fase e paralelamente às suas responsabilidades na pequena “grande marcha” ao longo do Zaire, um outro feito que haveria de render-lhe grande prestígio, ponto de partida para enormes proveitos a longo prazo.
Zé Gomes era filho de um dos capatazes que trabalharam na construção da linha do Norte, entre Lisboa e o Porto. Mais tarde, já com o filho em plena febre das suas ambições africanas, trabalhou Gomes pai na construção da linha da Beira alta que, entre a Figueira da Foz e a fronteira era a nossa primeira grande ligação à Europa. Europa que começava para alguns portugueses em Espanha, do lado de lá de Vilar Formoso, logo ali, mas para a grande maioria só em Hendaia, à beira dos Pirinéus.
O pai Gomes era natural do Vimieiro, pertinho de Santa Comba Dão, e casara com uma rapariga de Vila Nova de Tazem, a servir como criada numa casa afidalgada do seu terrunho naquela castiça e tristonha Beira Alta.
Tinha ele descoberto a sua vocação profissional como operário indiferenciado na construção da linha Lisboa-Porto, a chamada Linha do Norte. Indiferenciado não tanto por não possuir nenhuma verdadeira especialização, mas porque em pouco tempo revelara capacidades, de que ele próprio não suspeitava, para todos os ofícios que os trabalhos da linha exigiam.
Em pouco tempo lhe descobriram os engenheiros fortes disposições para ajudar os topógrafos a carregar e colocar os seus instrumentos e, logo depois, para ajudar no apontamento dos resultados das observações e até nalgumas leituras da aparelhagem, bem como na descoberta dos pontos de mira mais apropriados e mesmo em cálculos muito simples, para o que ele começou por oferecer-se aos seus chefes e encarregados. Rapidamente foi adoptado por todos como um caso especialíssimo. O leitor não poderá deixar de aceitar o juízo dos contemporâneos, se imaginar o reflexo dos talentos do pai nos enormes talentos que também o filho virá a revelar e desenvolver aplicadamente, como já se viu e ainda veremos muito mais.
A.C.R.
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