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2007/02/16

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte III – N.º 18 

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Manuel julgava estar a perceber tudo.

A Associação Internacional do Congo seria, pois, uma ficção eficaz, espécie de Estado sem verdadeiro reconhecimento internacional que se preparava para funcionar com as prerrogativas de Estado formalmente de pleno direito, para oferecer ao Rei dos belgas a soberania sobre quase toda a África Central.

A sua criação e funcionamento eram antes de mais a prova de como o Ocidente, EUA incluídos, punham e dispunham do mundo inteiro a seu belo prazer.

Posto isto, sem ilusões, a AIC era também uma invenção de génio, mas só possível e eficaz porque alguma grande potência estava a dar cobertura às ambições e projectos de Leopoldo II.

Viria Manuel a descobrir, por palavras de Stanley, que não era uma mas que eram duas as grandes potências que serviam de aval e protecção ao Rei Leopoldo II. Porquê? Também lho disse Stanley.

É que nem ingleses nem americanos queriam que caísse nas mãos de franceses ou de alemães essa África Central ou Bacia do Zaire/Congo, de cujas excepcionais riquezas naturais já então havia notáveis indícios e que, estrategicamente, era porta aberta para o controlo de toda a África sub-saariana.

“Safa!”

Em que grande sarilho ou em que grande empresa, dependendo dos resultados, se tinha Manuel deixado embarcar, exclamou ele baixinho, só para si próprio.

Afinal, porque a tudo e a todos convinha ter Portugal do seu lado, ou pelo menos alguns portugueses que soubessem movimentar peões em África. Naturalmente que por beneficiarem da experiência acumulada de umas quinze gerações de navegantes, exploradores, soldados, aventureiros, comerciantes, missionários, empreendedores em geral, chegados ao Congo e Angola desde a descoberta da foz do Zaire gigantesco por Diogo Cão!

Manuel chegava a ter a sensação inquietante, por vezes incontrolável, de sofrer de alucinações.

Coisa passageira, afinal, porque apesar de tudo pôde pensar, como diria depois, que havia coisas a corrigir no esquema de acção do líder, Henry Stanley.

A começar pela “ocupação” da zona da margem direita do rio, ao longo do litoral ribeirinho em frente de Matadi, por Boma até ao Atlântico. Uma faixa suficientemente larga, para manter a zona de ocupação francesa tão longe quanto possível da foz do Zaire e deixando Cabinda aos portugueses, para ajudarem a acantonar os franceses bem acantonados nos limites que se lhes destinavam por ali.

Quem chegar primeiro ocupa e não mais perde o lugar, porque há regras estritas, mesmo que tácitas, sendo uma delas que as potências europeias, em África, unanimemente rejeitam qualquer hipótese de recorrerem à força entre si, para resolver divergências.

Conclusão.

Manuel achava que o destacamento devia seguir pela margem direita do rio, de Matadi até ao Atlântico, quase a Cabinda, intimando de passagem os sobas daquela zona a sujeitar-se ao domínio da AIC.

Mas Stanley esclareceu que os sobas dessa área já estavam todos no “papo”, porque Paris acabava de reconhecer que aquela era uma zona de influência da AIC, zona onde a França garantia não interferir nunca, em troca de a AIC desistir de outra qualquer pretensão territorial na margem direita do Congo.

Simulando esclarecer Manuel, Stanley metia-o discretamente na ordem, fazendo-o reflectir que não lhe competia pensar. Sim, pensar, apesar da imensa confiança que em si depositava o líder da expedição, ele mesmo, Henry Morton Stanley.

Atravessariam imediatamente o rio para Matadi, em pirogas contratadas nas aldeias ribeirinhas mais próximas, que não havia outras embarcações disponíveis. Manuel e os seus adjuntos brancos encarregaram-se de organizar o embarque e depois o desembarque, em Matadi, de animais, homens e materiais.

Uma vez tudo reunido em Matadi, pernas para que vos queremos!

Stanley estava cada vez com mais pressa e mandou logo seguir a tropa para um ponto indicado por Manuel que o considerava mais adequado. Mas eram lembranças suas de vinte e tal anos antes e o local já não existia, submerso pelo crescimento do bairro.

Stanley ficou a pensar que poderiam estar assim desactualizadas as recordações de Manuel quanto aos sobas da região até Kinshasa, que era preciso e fundamental visitarem, para se lhes arrancar a submissão voluntária à autoridade da AIC.

Receio infundado relativamente aos sobas, como tudo iria confirmar.

Explorar simultaneamente o traçado que o futuro caminho-de-ferro deveria seguir, até Kinshasa, tornar-se-ia contudo tão importante como sujeitar os sobas.

A AIC, isto é, o Rei Leopoldo II dos belgas, queria começar as obras rapidamente mal estivesse garantida a ocupação efectiva do território.

Decidido! - assentaram Henry e Manuel Cruz.

Iriam de soba em soba, até Kinshasa, reconhecendo o trajecto para o futuro caminho-de-ferro do “Baixo Congo” e, ao mesmo tempo, obtendo a rendição dos sobas todos, nem menos um.

Por escrito, disse Stanley.

Por escrito, concordou Manuel, sem saber de que falavam.

Soltaram ambos grandes gargalhadas…

Que percebiam eles de caminhos-de-ferro?...

Stanley olhou Manuel fingindo-se ofendido, para não dizer “não há nenhum americano que não saiba bastante de caminhos-de-ferro! Os caminhos-de-ferro, todos os americanos temos um à porta. Com os caminhos-de-ferro estamos a revolucionar o país todo, por dentro e por fora, de alto a baixo e desde baixo até ao alto. É uma tal explosão de caminhos-de-ferro e uma tal circulação permanente de riqueza pelo país inteiro que, em mais vinte anos, seremos de longe a maior potência económica e militar do mundo!”

Breve silêncio, para logo prosseguir ainda com mais entusiasmo.

“Mas digo-te, Manuel Cruz, em África nenhum país será mais poderoso do que este país da Associação Internacional do Congo que eu, tu, o Rei dos belgas e os portugueses de agora ou de há quatrocentos anos começámos a construir!”

Parecia delirar mas compreendia-se que tivesse fascinado e convencido Leopoldo II a enterrar toda a sua imensa fortuna no Congo!

À última hora fez questão de acompanhá-los um português muito jovem, acabado de chegar da Metrópole, dizendo-se natural de Vila Nova de Tazem e que ficara conquistado pelos discursos de Manuel e Stanley.

Chamava-se Chico Gomes e ninguém poderia palpitar os grandes talentos e fúria de vencer que o animavam. Mas este Gomes palpitava e não hesitou, para convencê-los a levarem-no com eles, em garantir-lhes que não se arrependeriam.

A.C.R.

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