2007/02/14
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte III – N.º 17
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Não era esse, de momento, o problema maior de Manuel, mas um outro. Este…
Seria com uma “força” de nem sequer cem homens, elementarmente armados, alimentados e equipados, bem como razoavelmente treinados, também, que Stanley pretendia ocupar para a Associação Internacional do Congo os territórios praticamente ilimitados da margem esquerda do Zaire?
Stanley sorriu, perante as dúvidas do amigo.
Duma forma a que Manuel já chamava os “sorrisos políticos de Henry”.
“Tenho instruções precisas do Rei sobre isso, que vou cumprir sem discussão” – esclareceu finalmente.
O Rei era Leopoldo II da Bélgica, que sonhava vir a governar quase toda a Bacia do Congo como se fosse uma imensa quinta gerida por um Rei absoluto.
Desde que a sua parte da Bacia do Zaire não custasse um tiro sequer, porque, pensava ele, começar ou fazer uma guerra pela posse dela comprometeria talvez para sempre os seus objectivos económicos e… imperiais.
Isto é, a exploração o mais rentável possível do território a favor de brancos e negros igualmente, sobre as bases da civilização europeia ali lançadas durante quatro séculos pelos portugueses e pelos missionários católicos levados de Portugal.
Manuel achou extraordinário o quadro pintado por Stanley da futura colónia da A.I.C., mesmo descontando as últimas palavras, que levou à conta de lisonja a Portugal e à Igreja católica de que o Rei era profundamente fiel praticante, embora pouco respeitasse, por exemplo, a continência em relação às mulheres, do próximo ou não, como manda o Decálogo.
Manuel achava tudo de facto extraordinário, mas, talvez por isso, continuava a não compreender. Ao contrário do que esperava ver clarificado por Henry, Manuel achava agora a situação ainda mais difícil, depois da explicação da política em vista. Sem dar um tiro, mesmo de pólvora seca, como considerar o estranho e diminuto grupo militarizado, de que ele próprio era um dos chefes, capaz de obter a sujeição dos territórios todos da margem esquerda do Zaire?
Teriam Stanley e o Rei, ou o Rei e a Associação, recursos mágicos para comprar as centenas de sobas dispersos nesses territórios, que seria necessário submeter?
Era a seus olhos um plano de lunáticos.
“É pela diplomacia, querido Manuel! É pela pura diplomacia, métodos novos de domínio, inspirados pela mentalidade política expansionista, novíssima, dos mais avançados dirigentes dos Estados Unidos da América. Repara. Dia a dia vão sendo cada vez mais aceites como mentores mesmo políticos do Ocidente, caríssimo…”
“Não consegues explicar melhor?” – respondeu Manuel Cruz.
“Digo-te então um segredo. Só entre nós dois. Juras guardá-lo?...”
“Juro!”
“Juras por Deus, pelas vidas dos teus filhos, pela vitória de Portugal em Angola, neste contexto todo?”
“Juro!”
“Sobre os Evangelhos?”
E Henry Stanley estendeu a Manuel um exemplar dos Evangelhos, completamente ensebado, que trazia permanentemente consigo, desde a sua primeira expedição por África, em busca de Livingstone, e que a própria mãe lhe entregara no cais de Nova Iorque, à partida do barco que o levaria a Londres.
“Sim – disse Manuel – juro pelas vidas dos meus cinco filhos e pela vitória de Portugal em África, ao Sul do rio Zaire, até ao Cunene, que guardarei integralmente os segredos que me vais contar!”
“Ouve então.” – repondeu Henry Stanley com a mesma solenidade. E começou logo a desfiar.
“Sabes como as potências europeias têm posto a ocupação efectiva como primeira condição do reconhecimento internacional da soberania de qualquer delas sobre os territórios reivindicados em África, rejeitando ao mesmo tempo a alegação de direitos históricos de descoberta como título bastante de posse e soberania sobre eles.”
“O que só lixa Portugal…”
“Sabes, evidentemente, tudo isto.”
“Pois bem, em face de tais regras de suposto Direito Internacional – acordadas entre os poderosos – como pode uma Associação Internacional do Congo, coisa meramente privada… como pode ela alegar direitos de soberania sobre a África Central, que não descobriu, de facto, nem tal alega, mas que também não tem nenhum instrumento de «ocupação efectiva» dos territórios? Isto é, nem comércio, nem missões, nem forças armadas com poder militar à altura das circunstâncias… Será então a associação – mas como? – a mera «barriga de aluguer» de qualquer cómodo estado soberano instrumentalizável ou instrumentalizador?...”
A.C.R.
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Não era esse, de momento, o problema maior de Manuel, mas um outro. Este…
Seria com uma “força” de nem sequer cem homens, elementarmente armados, alimentados e equipados, bem como razoavelmente treinados, também, que Stanley pretendia ocupar para a Associação Internacional do Congo os territórios praticamente ilimitados da margem esquerda do Zaire?
Stanley sorriu, perante as dúvidas do amigo.
Duma forma a que Manuel já chamava os “sorrisos políticos de Henry”.
“Tenho instruções precisas do Rei sobre isso, que vou cumprir sem discussão” – esclareceu finalmente.
O Rei era Leopoldo II da Bélgica, que sonhava vir a governar quase toda a Bacia do Congo como se fosse uma imensa quinta gerida por um Rei absoluto.
Desde que a sua parte da Bacia do Zaire não custasse um tiro sequer, porque, pensava ele, começar ou fazer uma guerra pela posse dela comprometeria talvez para sempre os seus objectivos económicos e… imperiais.
Isto é, a exploração o mais rentável possível do território a favor de brancos e negros igualmente, sobre as bases da civilização europeia ali lançadas durante quatro séculos pelos portugueses e pelos missionários católicos levados de Portugal.
Manuel achou extraordinário o quadro pintado por Stanley da futura colónia da A.I.C., mesmo descontando as últimas palavras, que levou à conta de lisonja a Portugal e à Igreja católica de que o Rei era profundamente fiel praticante, embora pouco respeitasse, por exemplo, a continência em relação às mulheres, do próximo ou não, como manda o Decálogo.
Manuel achava tudo de facto extraordinário, mas, talvez por isso, continuava a não compreender. Ao contrário do que esperava ver clarificado por Henry, Manuel achava agora a situação ainda mais difícil, depois da explicação da política em vista. Sem dar um tiro, mesmo de pólvora seca, como considerar o estranho e diminuto grupo militarizado, de que ele próprio era um dos chefes, capaz de obter a sujeição dos territórios todos da margem esquerda do Zaire?
Teriam Stanley e o Rei, ou o Rei e a Associação, recursos mágicos para comprar as centenas de sobas dispersos nesses territórios, que seria necessário submeter?
Era a seus olhos um plano de lunáticos.
“É pela diplomacia, querido Manuel! É pela pura diplomacia, métodos novos de domínio, inspirados pela mentalidade política expansionista, novíssima, dos mais avançados dirigentes dos Estados Unidos da América. Repara. Dia a dia vão sendo cada vez mais aceites como mentores mesmo políticos do Ocidente, caríssimo…”
“Não consegues explicar melhor?” – respondeu Manuel Cruz.
“Digo-te então um segredo. Só entre nós dois. Juras guardá-lo?...”
“Juro!”
“Juras por Deus, pelas vidas dos teus filhos, pela vitória de Portugal em Angola, neste contexto todo?”
“Juro!”
“Sobre os Evangelhos?”
E Henry Stanley estendeu a Manuel um exemplar dos Evangelhos, completamente ensebado, que trazia permanentemente consigo, desde a sua primeira expedição por África, em busca de Livingstone, e que a própria mãe lhe entregara no cais de Nova Iorque, à partida do barco que o levaria a Londres.
“Sim – disse Manuel – juro pelas vidas dos meus cinco filhos e pela vitória de Portugal em África, ao Sul do rio Zaire, até ao Cunene, que guardarei integralmente os segredos que me vais contar!”
“Ouve então.” – repondeu Henry Stanley com a mesma solenidade. E começou logo a desfiar.
“Sabes como as potências europeias têm posto a ocupação efectiva como primeira condição do reconhecimento internacional da soberania de qualquer delas sobre os territórios reivindicados em África, rejeitando ao mesmo tempo a alegação de direitos históricos de descoberta como título bastante de posse e soberania sobre eles.”
“O que só lixa Portugal…”
“Sabes, evidentemente, tudo isto.”
“Pois bem, em face de tais regras de suposto Direito Internacional – acordadas entre os poderosos – como pode uma Associação Internacional do Congo, coisa meramente privada… como pode ela alegar direitos de soberania sobre a África Central, que não descobriu, de facto, nem tal alega, mas que também não tem nenhum instrumento de «ocupação efectiva» dos territórios? Isto é, nem comércio, nem missões, nem forças armadas com poder militar à altura das circunstâncias… Será então a associação – mas como? – a mera «barriga de aluguer» de qualquer cómodo estado soberano instrumentalizável ou instrumentalizador?...”
A.C.R.
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