2007/03/03
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 06
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“Mandam-se vir indianos!”
Aquela exclamação do Rei ficaria célebre e ficaria para a História.
Hei-de explicar porquê e como.
Mas para isso tenho de não precipitar os acontecimentos.
O esquisso do “capitão”, aprofundado e desenvolvido pelo gabinete técnico do Rei, impressionou efectivamente os delegados das potências à Conferência de Berlim dos finais de 1885.
Mesmo os mais recalcitrantes ficaram sensivelmente abalados nas suas dúvidas de que a AIC de Leopoldo II estivesse de facto à altura de se empenhar na ocupação efectiva do enorme território, desacreditando muito presumivelmente os planos expansionistas europeus num continente inteiro, o último “desocupado” na Terra toda, postos de lado os Pólos.
O processo do caminho-de-ferro, entretanto aperfeiçoado e bem polido, e garantido o seu financiamento por capitais poderosos de muitas origens, dava afinal a todos garantias satisfatórias do empenhamento do Rei na concretização do gigantesco projecto colonialista que, de resto, Bismark e o Imperador alemão, como também o governo britânico, avalizavam piedosamente.
Piedosamente é a palavra certa, por rebuscada que possa afigurar-se a alguns de vós. De piedade. No sentido em que eram actos de piedade as participações nas Cruzadas… Tudo indica que também a partilha da África foi feita em espírito de Cruzada. Uma Cruzada laica, especial, que à partida era movida pela grande esperança, para não poucos a certeza, de que seria uma Cruzada incruenta, pelo menos pouco cruenta. Seria mesmo assim uma grande Cruzada, por várias razões de fundo.
Porque a Europa estava toda, mas toda unida num grande propósito de conquista, como nos últimos séculos jamais estivera…
Porque a conquista se pretendia, antes de tudo, civilizacional, isto é, destinada a trazer para a civilização do Ocidente – a mais avançada e prometedora de sempre – povos que se tinham deixado atrasar milénios.
Porque esses povos, entregues a si próprios, cada vez se distanciariam mais da civilização, comprometendo-se de morte a si próprios e, pelo seu atraso em crescendo acelerado, impedindo os outros povos de ter acesso e valorizar devidamente o património material previsivelmente grandioso que os seus territórios guardavam, pois que os recursos humanos, esses, tudo levava a crer serem irrelevantes.
Porque, enfim, o programa dessa conquista voltava a unificar o Ocidente, no sentido mais profundo de recompor as rupturas que o tecido social e cultural da Europa sofrera com a Revolução Francesa, anti-tradicionalista, anti-cristã e anti-católica…
Sobretudo este último “porquê” definia uma força irresistível. Quase não impunha nem carecia de alianças expressas ou mesmo tácitas. Espontaneamente, sem cálculos prévios nem assinatura de pactos muito ou pouco sofridos, a Europa caminhava para a ocupação efectiva da África. Lado a lado, ombros com ombros, numa só frente, os Estados, as forças armadas, os grandes capitais, os empresários, os aspirantes a colonos, as diversas Internacionais, as maçonarias, as Igrejas, as Missões, as Universidades, o ensino e a investigação, a meteorologia, a ciência médica, etc., tudo o que era activo e contava na Europa, tudo marchava sem hesitar à conquista da África, sem muito sangue mas mesmo assim heróica, por causa das moscas e das febres.
Um sonho de construir, enfim, algo de absolutamente novo era o motor mais profundo do movimento gigantesco e em massa do que havia de mais grandioso, glorioso, utopista e mobilizador na Europa, inteira ou quase.
Para muitos rapidamente vieram as desilusões.
Para muitos outros e, em particular, para Portugal e os portugueses, foi a revelação duma nova ideia de Império.
Talvez ninguém tenha compreendido melhor e agido em tão perfeita conformidade, como o Rei D. Carlos.
A nação assumiu até às raízes mais fundas os propósitos do Rei.
Os republicanos tiveram de matar o Rei, mas a República nasceria mesmo assim, inexplicavelmente em contra-ciclo.
Adivinhavam-se os sentimentos de triunfo e euforia que as notícias da Conferência (aqui, reparem, pela primeira vez com maiúscula) difundiram por toda a Europa e por entre todos os europeus mais sensibilizados.
Não obstante, quantos entenderiam que estava destinada a ficar como um daqueles acontecimentos que modificam radicalmente ou consolidam definitivamente um certo sentido da História?
Muitos se sentiram compensados de imensos riscos, sacrifícios e esforços gigantescos, reais ou imaginários.
Muitos também sentiram ter contribuído para “aquilo” pessoalmente, de modo efectivo e sem se haverem minimamente poupado na colossal roleta da vida e da morte.
O que a “partilha” significava em concreto, só na África Central, era a definição das fronteiras de territórios maiores que meia Europa e de que já se adivinhavam recursos do solo e sub-solo bem maiores do que todos aqueles que alguma vez a Europa contara dentro dos seus próprios limites.
Além de um campo de gente imensa para atrair à civilização e para pôr ao serviço da civilização e do seu futuro, ao menos aos olhos da grande força moral da conquista, as Igrejas cristãs.
Durante a conferência, os famosos mais de quinhentos documentos de sujeição dos sobas do Congo à soberania da AIC foram objecto de muitos sorrisos discretos e mesmo de uma ou outra ironia indiscreta, logo abafada.
Mas o Rei ofereceu-lhes um pretexto irrecusável, o projecto do caminho-de-ferro e – não se entenda como ironia – logo tudo carrilou de novo a favor dos propósitos do Rei, em cuja firmeza e viabilidade quase todos os delegados desde a primeira hora desejavam acreditar.
Construir a nova África, como um Stanley a imaginara, exigia a concertação de todos os esforços. Todos os Estados e todos os estadistas associados à “partilha” foram indispensáveis. Mas Leopoldo da Bélgica era mais que indispensável, era o próprio símbolo maior da unidade conseguida e da audácia irresistível dos meios utilizados.
Os colonos portugueses de finais do séc. XIX, no Congo, nas duas margens do rio, entenderam-no cedo e desde cedo trabalharam para o seu sucesso, sem poupar riscos nem sacrifícios… nem ambições.
Enfim todos tinham razões para sentir-se orgulhosos.
Mas talvez ninguém – cá vem ele de novo! – talvez ninguém como Zé Gomes.
E porquê?
Porque aquelas centenas de cartas de cedência pelos sobas da sua soberania à Associação Internacional do Congo pouco ou quase nada custaram ao Rei e à sua AIC, fosse em pagamentos previsíveis fosse em subornos!
Resultado de mais um feliz achado de Zé Gomes.
Foi ele, na véspera da partida da milícia de Boma, na direcção de Kinshasa, quem lembrou ao próprio Stanley que levassem saquetas de sal, simples sal de cozinha para a comida.
Foi um sucesso!
A maioria dos sobas e sobetas renderam-se em troca apenas de alguns punhados de sal.
Zé Gomes não quis contar a ninguém como descobrira o “ovo de Colombo”, nem das indescritíveis cenas de “fome” de sal a que assistira nas sanzalas visitadas.
Mas explicou pela História.
Muito depois de chegarem ao Congo, os portugueses descobriram a falta que o sal fazia aos indígenas, ao perceberem os sacrifícios que eles faziam para obtê-lo.
Deitavam fogo à erva da savana e aproveitavam as cinzas do capim como sal, mesmo assim em quantidades muito insuficientes e sempre com risco de pegarem incêndios incontroláveis.
Depois foi só a arte de organizarem as transacções. Cada vez que precisavam de um favor, os brancos davam ao indígena uns punhados de sal. Algumas compras de escravos a mandar para o Brasil foram feitas assim, quando a concorrência não era grande…
A.C.R.
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“Mandam-se vir indianos!”
Aquela exclamação do Rei ficaria célebre e ficaria para a História.
Hei-de explicar porquê e como.
Mas para isso tenho de não precipitar os acontecimentos.
O esquisso do “capitão”, aprofundado e desenvolvido pelo gabinete técnico do Rei, impressionou efectivamente os delegados das potências à Conferência de Berlim dos finais de 1885.
Mesmo os mais recalcitrantes ficaram sensivelmente abalados nas suas dúvidas de que a AIC de Leopoldo II estivesse de facto à altura de se empenhar na ocupação efectiva do enorme território, desacreditando muito presumivelmente os planos expansionistas europeus num continente inteiro, o último “desocupado” na Terra toda, postos de lado os Pólos.
O processo do caminho-de-ferro, entretanto aperfeiçoado e bem polido, e garantido o seu financiamento por capitais poderosos de muitas origens, dava afinal a todos garantias satisfatórias do empenhamento do Rei na concretização do gigantesco projecto colonialista que, de resto, Bismark e o Imperador alemão, como também o governo britânico, avalizavam piedosamente.
Piedosamente é a palavra certa, por rebuscada que possa afigurar-se a alguns de vós. De piedade. No sentido em que eram actos de piedade as participações nas Cruzadas… Tudo indica que também a partilha da África foi feita em espírito de Cruzada. Uma Cruzada laica, especial, que à partida era movida pela grande esperança, para não poucos a certeza, de que seria uma Cruzada incruenta, pelo menos pouco cruenta. Seria mesmo assim uma grande Cruzada, por várias razões de fundo.
Porque a Europa estava toda, mas toda unida num grande propósito de conquista, como nos últimos séculos jamais estivera…
Porque a conquista se pretendia, antes de tudo, civilizacional, isto é, destinada a trazer para a civilização do Ocidente – a mais avançada e prometedora de sempre – povos que se tinham deixado atrasar milénios.
Porque esses povos, entregues a si próprios, cada vez se distanciariam mais da civilização, comprometendo-se de morte a si próprios e, pelo seu atraso em crescendo acelerado, impedindo os outros povos de ter acesso e valorizar devidamente o património material previsivelmente grandioso que os seus territórios guardavam, pois que os recursos humanos, esses, tudo levava a crer serem irrelevantes.
Porque, enfim, o programa dessa conquista voltava a unificar o Ocidente, no sentido mais profundo de recompor as rupturas que o tecido social e cultural da Europa sofrera com a Revolução Francesa, anti-tradicionalista, anti-cristã e anti-católica…
Sobretudo este último “porquê” definia uma força irresistível. Quase não impunha nem carecia de alianças expressas ou mesmo tácitas. Espontaneamente, sem cálculos prévios nem assinatura de pactos muito ou pouco sofridos, a Europa caminhava para a ocupação efectiva da África. Lado a lado, ombros com ombros, numa só frente, os Estados, as forças armadas, os grandes capitais, os empresários, os aspirantes a colonos, as diversas Internacionais, as maçonarias, as Igrejas, as Missões, as Universidades, o ensino e a investigação, a meteorologia, a ciência médica, etc., tudo o que era activo e contava na Europa, tudo marchava sem hesitar à conquista da África, sem muito sangue mas mesmo assim heróica, por causa das moscas e das febres.
Um sonho de construir, enfim, algo de absolutamente novo era o motor mais profundo do movimento gigantesco e em massa do que havia de mais grandioso, glorioso, utopista e mobilizador na Europa, inteira ou quase.
Para muitos rapidamente vieram as desilusões.
Para muitos outros e, em particular, para Portugal e os portugueses, foi a revelação duma nova ideia de Império.
Talvez ninguém tenha compreendido melhor e agido em tão perfeita conformidade, como o Rei D. Carlos.
A nação assumiu até às raízes mais fundas os propósitos do Rei.
Os republicanos tiveram de matar o Rei, mas a República nasceria mesmo assim, inexplicavelmente em contra-ciclo.
Adivinhavam-se os sentimentos de triunfo e euforia que as notícias da Conferência (aqui, reparem, pela primeira vez com maiúscula) difundiram por toda a Europa e por entre todos os europeus mais sensibilizados.
Não obstante, quantos entenderiam que estava destinada a ficar como um daqueles acontecimentos que modificam radicalmente ou consolidam definitivamente um certo sentido da História?
Muitos se sentiram compensados de imensos riscos, sacrifícios e esforços gigantescos, reais ou imaginários.
Muitos também sentiram ter contribuído para “aquilo” pessoalmente, de modo efectivo e sem se haverem minimamente poupado na colossal roleta da vida e da morte.
O que a “partilha” significava em concreto, só na África Central, era a definição das fronteiras de territórios maiores que meia Europa e de que já se adivinhavam recursos do solo e sub-solo bem maiores do que todos aqueles que alguma vez a Europa contara dentro dos seus próprios limites.
Além de um campo de gente imensa para atrair à civilização e para pôr ao serviço da civilização e do seu futuro, ao menos aos olhos da grande força moral da conquista, as Igrejas cristãs.
Durante a conferência, os famosos mais de quinhentos documentos de sujeição dos sobas do Congo à soberania da AIC foram objecto de muitos sorrisos discretos e mesmo de uma ou outra ironia indiscreta, logo abafada.
Mas o Rei ofereceu-lhes um pretexto irrecusável, o projecto do caminho-de-ferro e – não se entenda como ironia – logo tudo carrilou de novo a favor dos propósitos do Rei, em cuja firmeza e viabilidade quase todos os delegados desde a primeira hora desejavam acreditar.
Construir a nova África, como um Stanley a imaginara, exigia a concertação de todos os esforços. Todos os Estados e todos os estadistas associados à “partilha” foram indispensáveis. Mas Leopoldo da Bélgica era mais que indispensável, era o próprio símbolo maior da unidade conseguida e da audácia irresistível dos meios utilizados.
Os colonos portugueses de finais do séc. XIX, no Congo, nas duas margens do rio, entenderam-no cedo e desde cedo trabalharam para o seu sucesso, sem poupar riscos nem sacrifícios… nem ambições.
Enfim todos tinham razões para sentir-se orgulhosos.
Mas talvez ninguém – cá vem ele de novo! – talvez ninguém como Zé Gomes.
E porquê?
Porque aquelas centenas de cartas de cedência pelos sobas da sua soberania à Associação Internacional do Congo pouco ou quase nada custaram ao Rei e à sua AIC, fosse em pagamentos previsíveis fosse em subornos!
Resultado de mais um feliz achado de Zé Gomes.
Foi ele, na véspera da partida da milícia de Boma, na direcção de Kinshasa, quem lembrou ao próprio Stanley que levassem saquetas de sal, simples sal de cozinha para a comida.
Foi um sucesso!
A maioria dos sobas e sobetas renderam-se em troca apenas de alguns punhados de sal.
Zé Gomes não quis contar a ninguém como descobrira o “ovo de Colombo”, nem das indescritíveis cenas de “fome” de sal a que assistira nas sanzalas visitadas.
Mas explicou pela História.
Muito depois de chegarem ao Congo, os portugueses descobriram a falta que o sal fazia aos indígenas, ao perceberem os sacrifícios que eles faziam para obtê-lo.
Deitavam fogo à erva da savana e aproveitavam as cinzas do capim como sal, mesmo assim em quantidades muito insuficientes e sempre com risco de pegarem incêndios incontroláveis.
Depois foi só a arte de organizarem as transacções. Cada vez que precisavam de um favor, os brancos davam ao indígena uns punhados de sal. Algumas compras de escravos a mandar para o Brasil foram feitas assim, quando a concorrência não era grande…
A.C.R.
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