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2007/03/09

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 09 

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O comandante do contingente militar europeu era um coronel flamengo, belga, com pouco mais de trinta anos, mal sabendo falar francês, mas geralmente reconhecido pelas suas qualidades militares e de liderança. Teve o Rei Leopoldo de fazer-lhe dar três saltos sucessivos na hierarquia dos oficiais do exército belga, para poder nomeá-lo comandante das primeiras tropas destinadas ao Congo, tão certos estavam, Rei e chefias militares da AIC, de que Mckenzie seria efectivamente o comandante mais indicado para o chamado Estado Livre do Congo.

Mas o “capitão” Gomes, convocado por ele, abordou-o serenamente disposto a tirar o maior proveito possível da situação.

E gostou logo francamente do coronel.

Mesmo antes de Mckenzie, já à saída, duas horas depois, lhe haver perguntado com um sorriso de ironia a disfarçar o interesse, se continuava a resolver os problemas do cio da tropa da mesma forma como lhos resolvia durante a “grande marcha”…

Por segundos, o “capitão” embatucou.

Depois deu-lhe uma gargalhada na cara, para não ter de explicar nada, e safou-se a galope no cavalo que um soldado flamengo lhe trouxe pelas rédeas ao portão.

Foi nesse instante que Zé Gomes decidiu que tinha de aprender flamengo, aquela “língua de trapos” da maioria dos belgas, em que eram faladas e escalpelizadas, pareceu-lhe de súbito, as informações mais interessantes de quanto ali acontecia, naquele mundozinho novo fervilhante, seguramente cheio de surpresas, como de grandes e pequenas “suposições” que talvez não circulassem senão entre flamengos e em flamengo.

Mckenzie é que não gostou nada, mesmo nada do àvontade e sem cerimónia do “capitan Gomez”, que também o percebeu, mas pouco se importou, e foi dali direito ao hotelito onde o coronel lhe dissera que havia de procurar o tal engenheiro, encarregado pelo Rei de deitar mãos à obra do caminho-de-ferro, ao qual ouviria pela primeira vez chamar “do Baixo Congo” à linha que viria a ligar Matadi a Kinshasa.

Gomes perceberia também, depois de falarem, que esse engenheiro é que seria de então em diante o seu verdadeiro chefe. Porquê? Porque, acima de tudo, era o caminho-de-ferro que mais interessava ao Rei, o qual, por sua vez, muito teria recomendado ao engenheiro que se entendesse bem com “o português”, porque ele “é que sabia”… Como se no fundo dissesse… “ele é que percebe tudo!”

Por que mistério conseguira o Rei saber tanto do “português”?

Isto foi mais importante para Zé Gomes que qualquer outra coisa que já lhe tivessem dito na vida.

Porque vinha do Rei?

Sim, mas nem tanto.

Antes e sobretudo, porque lhe abria portas com que nem sonhara.

Não sonhara, mas sentiu-se completamente preparado para atravessá-las.

Talvez o eng.º Rombout não lhe devesse ter contado as disposições do Rei, mas estava feito, as portas escancaradas e ele não teria a menor hesitação em agarrar a oportunidade de passar além.

Zé Gomes não perdeu tempo.

Perguntou a vários portugueses e comerciantes seus conhecidos; foi às tascas menos manhosas; correu as estalagens menos porcas; foi à missão portuguesa; foi à paróquia de Boma, onde o pároco era ainda um português de passagem, o missionário Padre António Barroso, vindo de Luanda e preparando-se para realizar o seu grande sonho de ir fundar uma grande missão em São Salvador do Congo, do outro lado do Zaire, em território de Angola.

Ninguém lhe sabia dizer nada, onde pararia o último português que teria desempenhado de algum modo o papel imaginário de agente das autoridades portuguesas em Boma.

Zé Gomes não conhecia os moços Nogueira e, ao que se lembrava, nem nunca estivera na loja deles, mas alguém lhe garantiu que, se ninguém sabia, talvez só eles pudessem adiantar-lhe algo de útil, porque eram gente verdadeiramente bem informada de tudo e “levados do diabo”, como mais ninguém.

E com efeito…

Não lhe deram eles certezas, mas julgavam que “o homem” ainda viveria com uma mulher negra e os filhos mulatos numa sanzala à saída de Boma, para o lado nascente. Tinham esquecido o nome dele, mas, chegando à sanzala certa, não haveria que errar porque não encontrariam com certeza, em todo o Congo, outro português a viver, de tanga, numa sanzala só de negros, com uma família de mulher negra e filhos mulatos.

Bateu tudo certo!

O compatriota recebeu Zé Gomes com um cerimonial perfeito.

De tanga, de facto, mas à volta de uma mesa baixa, bem posta e bem servida, no meio da cubata espaçosa, com tudo o que a mulher negra preparara num ápice, como se já esperassem a visita dele e Amâncio, assim disse chamar-se o dono da casa, quisesse revelar-se bem à altura do seu antigo status de representante em Boma do Rei de Portugal e do seu Governo.

E tinha sentido de humor, naturalmente.

“Não, não fui demitido nem dispensado, meu caro, pode estar certo. Como hei-de dizer?... Bem… Apenas caí em desuso!”

“E refugiei-me aqui, no seio da família, como vê. Mas não me tornei insociável. Se me emprestar um fato limpo e passado a ferro… Ah! E uns sapatos… Estou decidido a acompanhá-lo em visita às novas autoridades que quiser. Não farei má figura, nem o comprometerei. Limitar-me-ei a transmitir aos representantes da A.I.C. os meus velhos poderes. Será como uma rendição formal, mas sem condições. Em face de tudo o que me relatou… E se Portugal assinou também a partilha de África da Conferência de Berlim, como me contou, será apenas uma formalidade que tranquiliza os belgas e a mim me deixa de todo sossegado com a minha consciência. Assino tudo o que for preciso!...”

Os miúdos e a mãe deviam estar habituados ao tipo de discurso, porque desataram todos a dar palmas e a cantar, de pé, o hino de Portugal que então se cantava.

A.C.R.

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