2007/03/14
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 11
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Mas os negros não estavam interessados, pelo menos em número bastante para ser possível construir a via férrea nos dois ou três anos que o Rei pretendia.
Bem insistiam os responsáveis aliciados, para convencê-los, de que o trabalho seria mais leve do que fora carregar quase aos ombros um barco enorme por terra, de Boma, a capital, até Kinshasa.
Não deu senão resultados medíocres essa campanha simplesmente palavrosa.
Os salários prometidos também pouco adiantavam porque, mesmo pagos em libras de ouro inglesas, os hábitos de consumo dos negros eram ainda nulos, além de quase nada haver no raro comércio ao longo do percurso, para estimulá-los, enquanto o barco avançava penosamente sobre terra, pelo que as libras em ouro pouco mais valiam por então do que como objectos decorativos…O trabalho fora demasiado duro para tão pequeno efeito e mesmo a comida assegurada, se matava a fome pela abundância e a regularidade, não tinha o sabor da mandioca, com carne de hipopótamo, por exemplo, apimentada pelo dendém e o óleo de palma…
O coronel e Zé Gomes acabaram por perceber que com negros não iam lá. Como é que o Rei, a milhares de milhas de distância e sem nunca ali ter vindo, descobrira a solução?
Seria efectivamente necessário mandar vir indianos?
“De qualquer modo e para já, desculpa que to diga, Zé Gomes, mas o mais urgente será evitar que alguns comerciantes teus compatriotas se preparem para vender-lhes por preços exorbitantes os poucos artigos que têm para vender…” – sentenciou o coronel, inteligente e atento observador.
Os comerciantes portugueses iam, porém, chegando e instalando-se em número consideravelmente crescente, parece que ao cheiro do que constava ir ser o grande negócio de abastecer o pessoal da construção do caminho-de-ferro a começar em breve, dizia-se.
Vinham eles sobretudo de Angola e principalmente da zona do Ambriz, até ao Ambrizete, e mesmo dos arredores de Luanda.
Não eram, porém, poucos os que vinham acima de tudo movidos ao anúncio de paz e segurança que se dava como estabelecida no Congo do Rei dos Belgas. Ao passo que no Norte de Angola a paz das vitórias da ocupação do território pelo exército português ainda não conseguira restaurar a confiança das populações, indispensável ao florescer dos negócios.
Esses que – dizia-se – vinham a “fugir” de Angola eram vistos com sobranceria pelos portugueses que já estavam no Congo, de longa ou curta data, por considerarem, não se sabe com que razões, que em Angola não se trabalhava, ou só pouco e não muito bem ou mesmo nada bem.
Era uma etiqueta, com a ligeireza, mesmo leviandade, de muitas etiquetas, mas que, uma vez atribuída, não era fácil alterar fossem quais viessem a ser os desmentidos das realidades, ao longo de muitas décadas para vir, possivelmente agravando-se até, pelo contrário.
A verdade, contudo, é que, em geral, todos vieram a triunfar, congoleses da metrópole e congoleses de Angola.
Não só pelos méritos dos próprios portugueses mas também por tudo o mais ter corrido pelo melhor.
De facto, confirmou-se, houve que desistir da mão-de-obra negra, barata mas inexistente, para o efeito, mas também não foram os “indianos” que vieram para o Congo.
Foram os indochineses.
O Rei Leopoldo mandara a tempo dizer que “afinal, indianos não!”. Tinham fama de calaceiros. Ao passo que os franceses na Indochina, colónia sua de longa data, estavam a fazer daquela gente, sobretudo dos vietnamitas, ao que parecia, gente tão capaz como brancos. Isto é, gente ocidentalizada, assimilando excelentemente o espírito europeu e muito pobre, mão-de-obra abundante, dócil, bem dotada e pouco exigente, que os colonizadores franceses não conseguiam ocupar suficientemente mas estavam dispostos a exportar para o Congo, com uma pequena taxa de intermediação, com que aliás o governo francês na Indochina garantia o pagamento das passagens por mar até ao Congo e volta.
Foi assim – e, mais uma vez, por um esclarecimento e iniciativa a tempo do Rei Leopoldo, sito em Bruxelas… – que os indochineses sobretudo recrutados nos subúrbios miseráveis de Saigão e Hanói, a mais de vinte e cinco mil quilómetros, por mar, do seu destino, o Congo/Zaire dos belgas, da A.I.C., dos portugueses interventivos e intrometidos, por necessidade, destino e vocação. Mas acima de tudo o Congo/Zaire do rei absoluto Leopoldo II de Bruxelas, dotado dum espantoso faro para os novos tempos da Europa e do Mundo.
“Como o Rei, apesar do seu espírito retrógrado e absolutista e sendo ele descendente só de reis absolutistas e absolutos… Como o Rei assimilou inteligentemente o espírito das Luzes!” – exclamavam entre si, completamente rendidos, os maçons da sua roda.
Ora… Também os missionários das missões católicas que rapidamente se foram fixando ao longo do percurso do caminho-de-ferro, também eles louvavam o Rei pelas Luzes que o iluminavam. Com a diferença de que, para eles, eram verdadeiramente Luzes de Cristo.
Os comerciantes e obreiros portugueses da foz do Zaire não pensavam nisso.
Salvo se…
A.C.R.
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