2007/03/26
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 16
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Mas, ao fim e ao cabo, todos ficaram a ganhar.
Chegou mesmo a dizer-se que a arrumação trazida pelo grupo dos três às contas e transferências dos vietnamitas, para a Indochina, marcou o verdadeiro arranque do Congo para a colónia de grande sucesso, realmente modelar que efectivamente veio a ser, sob alguns aspectos.
Ninguém admirou, por isso, que um ou dois anos mais tarde, pelo menos dois deles dessem inegáveis provas de fartos cabedais ganhos nesse projecto, pelos três concebido mas executado principalmente por estes dois, aliás com o maior merecimento, por muita gente reconhecido.
O outro elemento, o coronel, é que não podia deixar-se confundir com os companheiros como beneficiário também dos lucros da acção empreendida em conjunto pelos três.
Era um militar, portanto independente de qualquer poder que não fosse a hierarquia militar e política do seu País, a AIC/Bélgica.
Sempre perfeitamente coerente com a sua posição de princípio, jamais alguém pôde acusá-lo de beneficiar do seu estatuto para obter lucros ou rendimentos doutra fonte qualquer, que não a sua profissão e o seu arreigado militarismo.
Não deixou, apesar disso, de tornar-se fortemente vulnerável aos ataques dos comerciantes portugueses, sobretudo.
Porquê continuava ele parado com a sua tropa, em Boma e Matadi, em vez de avançar à frente da activíssima coluna portuguesa de empreendedores comerciais, a abrir-lhes, e às missões também, o caminho para a ocupação objectiva do território e defendendo-as de eventuais reacções inamistosas de sobas e seus guerreiros indígenas?
Na verdade, diziam os comerciantes portugueses, eles é que estavam a pagar por inteiro os custos duma ocupação que aproveitaria ao Rei e à Bélgica, mais que a quaisquer outros.
E tanto mais alto o proclamavam e faziam chegar às altas instâncias responsáveis, quanto mais para Norte iam conseguindo instalar as suas lojas e estaminés e alargar as suas redes de comércio de retalho e por grosso.
Realmente, o avanço da ocupação militar até teria acabado por ser totalmente dispensável, se os portugueses tivessem descoberto mais cedo como levar os negros a interessar-se muito mais pela agricultura e pela simples colheita de certos produtos vegetais espontâneos da natureza, que os brancos passaram a comprar aos indígenas por dinheiro que eles voltavam a gastar na compra de mais quinquilharia e utilidades à venda nas lojas e armazéns instalados onde cheirava a negócio certo.
Parecia ter-se perdido a memória do que mais de trinta anos antes haviam feito no Ambriz os irmãos Cruz…
Mas surgira aqui, no Baixo Congo, uma nova geração de peritos particularmente especializados na mesma arte, e em tão pouco tempo que parecia nunca terem feito outra coisa.
Dos Nogueira, sobretudo Evaristo, como dos Pimentel, dos Silveira, dos Teles, dos Silva Pinto e de alguns outros, dizia-se que nunca falhavam um desses “tiros” comerciais!
Mas já nessa altura os Nogueira de São Romão eram incontestavelmente os mais certeiros, os mais audazes, os mais práfrentistas, os mais visionários e empreendedores.
E os primeiros também a tirar partido da descoberta de que os indígenas deveriam ser estimulados habilmente a dispor de artigos para vender, exportáveis para a Europa, através deles, irmãos e primos Nogueira, todo o clã, com o que mais dinheiro teriam para comprar nas lojas “brancas” ainda mais utilidades e mais quinquilharia!
Com grande visão, foram os Nogueira os primeiros a instalar fazendas agrícolas e pecuárias que exploravam pelos métodos mais avançados, importados da Europa, para empregar negros e lhes ensinar agricultura moderna com que cultivariam os “bocados”, de que os negros mais espertos se iam apoderando gradualmente, à medida que descobriam o valor e utilidade da propriedade pessoal privada.
E o valor e utilidade também do trabalho e da iniciativa, talvez mais que tudo!
Dupla ou tripla revolução social que os Nogueira, os Pimentel, os Silva Ribeiro, os Teles, os Sousa Pinto, por ali, por aquele “Congo acima!”, foram rapidamente promovendo e efectivando, sem talvez se darem conta do formidável que era aquilo que estavam a criar.
No meio do seu entusiasmo e do seu empenhamento nos negócios e no trabalho, os portugueses do Congo não esqueciam porém o que consideravam como sendo a inacção do coronel comandante do contingente belga.
Tinham eles espalhado mesmo que o coronel descobrira o argumento mais hábil de todos para justificar o arrastar da sua demora em Boma e Matadi.
Claro que não podiam deixar de admirar-lhe a habilidade, mas não lhe perdoavam o sofisma, que foram os primeiros a tentar desmascarar e desmontar.
Fazia o coronel constar que a tropa belga, por ele comandada, não poderia sair de acolá enquanto não houvesse novo contingente para substitui-la.
É que o perigo seria grande de, desguarnecendo militarmente os portos da foz – Matadi e Boma, sobretudo – se perderem de facto as portas de entrada no Congo. Delas poderiam então os sobas ser tentados a apossar-se, assim deixando na verdade cercadas as poucas forças militares de que os europeus ainda dispunham.
Ainda, porém, mais hábil, e que deixou os comerciantes portugueses quase definitivamente calados…
Foi o coronel deixar-se ficar com a tropa branca sossegada nos portos, enquanto não recebesse reforços da Europa…
Mas, para tapar os olhos aos desconfiados, mandar à frente a “milícia”, o contingente do “capitão” Zé Gomes e seus nativos, muito experiente já e enquadrado exemplarmente por portugueses brancos…
Sim, mandá-lo confiadamente avançar a abrir e limpar caminho aos comerciantes também portugueses, prontos para todo o trabalho que os belgas não sabiam fazer e talvez jamais viessem a saber, isso é que foi o supremo requinte de hábil cinismo!
Na verdade, os comerciantes continuaram a queixar-se da inacção do coronel, mas apenas para não darem o braço a torcer… Porque mesmo a segurança corrente do dia-a-dia não podia correr-lhes melhor.
A.C.R.
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