2003/09/25
NACIONALISMO E DEMOCRACIA: SÍNTESE POSSÍVEL? (II)
Comunicação ao I Congresso Nacionalista Português - Lisboa, 13 e 14 de Outubro de 2001
Eng.º Francisco Ferro
2. Democracia: as definições possíveis
Afinal, meus senhores, em que consiste a Democracia, não aquela que Aristóteles definiu, de acordo com o “elemento portador da soberania”, como o regime em que o poder “reside em todos os membros da comunidade” mas sim a democracia de hoje? O que nos interessa agora não é o esquema aristotélico (sem embargo de constituir uma referência histórica) – monarquia, aristocracia e democracia – mas antes os princípios fundamentais que caracterizam a democracia actual, ou seja a democracia liberal e parlamentar que vigora no Ocidente, que exalta e defende os “imortais princípios” da Revolução Francesa e assenta em meia dúzia (ou pouco mais) de ideias base. São estas que vou indicar, de início, citando um pequeno trabalho que escrevi em 1995 e está publicado no livro “Salazar sem máscaras”:
a) a soberania reside no povo, entendendo por povo o conjunto de pessoas às quais o Estado reconhece capacidade eleitoral;
b) o instrumento utilizado para se conhecer a vontade do povo soberano é o voto, expresso através do sufrágio universal individualista;
c) todos os votos são iguais e têm o mesmo peso, residindo aqui o que Mussolini chamava “a absurda mentira do igualitarismo político”,
d) a democracia reconhece o pluralismo da sociedade e este manifesta-se na existência de “partidos políticos” teoricamente tantos quantas as correntes de opinião. No contexto ocidental, não há democracia sem partidos;
e) o poder deve ser exercido pelo partido ou coligação deles, que obtiver maioria dos votos, mesmo que a abstenção exceda 50% dos eleitores inscritos;
f) é reconhecido o direito à greve como forma de defesa do direito dos trabalhadores;
g) a validade do sistema é universal e não há nenhum melhor, independentemente dos povos a que se aplica e das suas tradições, crenças, culturas e níveis de desenvolvimento;
h) não existem regras éticas ou morais invioláveis: tudo o que a maioria aprova é “bom”, mesmo que seja péssimo; tudo o que a maioria reprova é “mau”, mesmo que respeitador dos sentimentos mais profundos do tal “povo soberano”. Tudo o mais é secundário ou acessório: isto é a democracia e só ela defende a liberdade, garante a justiça e promove a solidariedade, embora se saiba que todas as formas de organização do poder político assumem tais objectivos e haja muitas democracias onde estes valores não são respeitados.
Este é o quadro com que nos deparamos e as características apontadas não podem ser desmentidas: estão aí à vista de todos, na Europa de Maastricht ou Amsterdão e da que se prepara para nela entrar, nos Estados Unidos e no Canadá, também no Japão, certamente com diferenças mas sem negação dos princípios enunciados. Há, no entanto, outros entendimentos da Democracia, com o mérito de terem sido enunciados por grandes figuras que escreveram sobre a Política – a Política com letra grande e não este “salve-se quem puder” em que infelizmente vivemos. Vejamos alguns.
Que tal começar por Fernando Pessoa? O genial poeta da “Mensagem” definia-se a si mesmo como “um nacionalista místico, um sebastianista racional”1.
Concretizando o seu pensamento, Pessoa define a Democracia através de três características: o sufrágio, o liberalismo e o pacifismo, para concluir que o sufrágio não passa de uma burla, que o liberalismo não é uma solução adequada e que o pacifismo lhe permite considerar a Democracia como “radicalmente inimiga do sentimento patriótico, radicalmente anti?patriótica e antinacional”.
Pessoa escreveu há muitos anos, as alterações que o mundo sofreu foram imensas, mas a sua crítica deve ser objecto de observação rigorosa pois entendemos que mantém uma grande actualidade, por um lado, e, por outro, fica-nos a satisfação de verificar que os tais princípios apresentados inicialmente não foram objecto de nenhuma contestação. Ter Pessoa do nosso lado (do lado nacionalista) é importante e verificar que não acredita na bondade das bases democráticas reforça as posições dos que partilham esse ponto de vista; claro que Pessoa é um Poeta e ele mesmo declarou que “o poeta é um fingidor” não sendo de admirar que os democratas rejeitem a sua análise. Mas terão esses democratas, que têm passado a vida a enganar os povos que governam e até às vezes lhes falta a capacidade para fingir, alguma autoridade moral para pôr restrições aos juízos de quem quer que seja? Acreditamos que não. Mas há muitos testemunhos de enorme valia. As limitações de tempo levam-nos a encurtar as citações, e teremos que diminuir o número de outros depoimentos.
Vamos lembrar agora algumas considerações de António Sardinha, também ele poeta mas, para além disso, doutrinador político da melhor água, figura cimeira do Integralismo Lusitano, expoente difícil de igualar do Nacionalismo Português.
Escolhemos algumas frases capitais, colhidas sem nenhuma sistematização rigorosa em livros como “A Prol do Comum”, “Durante a Fogueira”, “Na feira dos mitos”, todas retiradas de um trabalho de selecção (mas também de esclarecimento), organizado por Alberto Araújo Lima, ele próprio nosso camarada na divulgação dos ideais nacionalistas. Vamos a isso.
- “A democracia é, consequentemente, o regime das lutas internas permanentes, em que os argentários predominam com a corrupção arvorada em arma do triunfo”.
- “A democracia é o estado inorgânico duma sociedade primária ou, na hipótese pior, a queda irremediável de uma civilização já sem estímulo de vida...”
- “São as democracias impotentes, por pecado original, para solucionar a crise que geraram com o seu advento. O duelo do Trabalho com o Capitalismo testemunha-o claramente. A liberdade política é um embuste com que se desvirtuam e se sofismam as reclamações inalienáveis dos que produzem e nada conseguem. Não é de liberdade política que se trata. Trata-se mas é de liberdade económica. A liberdade económica, pela sua própria índole, é incompatível com os sistemas parlamentares, que importam, como consequência, as oligarquias políticas e financeiras que atiraram a Europa para a guerra e nela a mantêm. É imperioso apear o Capital do seu poderio abusivo para o tornar num acessório dos dois factores que naturalmente o antecedem – a Terra e a Produção. Exterminando a supremacia dos argentários e o cosmopolitismo da Alta Finança, a sociedade retomará, pela emancipação económica, o caminho perdido das antigas liberdades, cujo consistia somente num vigoroso espírito associativo (...)”
- Sendo contra os princípios funestos da Revolução Francesa, nós somos necessariamente contra a organização económica da sociedade moderna. O Trabalho e a Propriedade sofreram com a obra da revolução a influência de uma nova ordem de coisas, donde deriva imediatamente a crise que a todos nos toca e que escurece o horizonte com tão cerradas interrogações. O proletário, que nós vemos enfeudado ao cortejo dos agitadores políticos, deve à democracia a sua situação miseranda; a desorganização individualista da revolução aboliu os quadros corporativos em que o Trabalho se protegia e defendia dos acasos da concorrência em que o trabalho deixou o produtor entregue ao arbítrio da plutocracia, que é sem dúvida a única e verdadeira criação do espírito revolucionário. Enganam-se os humildes se nas promessas falaciosas do erro democrático supõem encontrar a realização das suas reivindicações justíssimas! Um século inteiro de experiências dolorosas mostra-nos que nunca a sorte das classes pobres pode ser tratada e minorada pelos governos saídos do voto, que são estruturalmente governos sujeitos, por defeito de origem, à venalidade e à corrupção.
Já chega. Monárquico, anti-democrata e por isso inimigo dos princípios revolucionários de 89, também Sardinha não confiava no sufrágio universal e defendia um sistema orgânico e corporativo. Morreu muito novo, no início de 1925, e não chegou a ver concretizadas algumas das suas aspirações, mesmo essas perdidas com a Revolução de Abril. É interessante verificar como a sua crítica feroz ao domínio da alta finança é uma visão profética do que se passa hoje com a gestão do socialismo dito democrático onde o dinheiro é quem tudo manda, e também com a corrupção que as instituições permitem ou fingem não ver, a bem do consenso e do diálogo; e é igualmente interessante notar como os democratas que se sentam agora na cadeira do poder criticavam o predomínio dos grandes grupos económicos no Regime anterior (embora tivessem obrigação de saber que o Presidente do Conselho os metia na ordem quando o exigisse o interesse nacional) e agora se calam perante o ressurgir de novos grupos, mais poderosos e mais influentes junto do governo, escudados na competitividade exigida pela União Europeia. Mas nós somos competitivos em quê, a não ser na incapacidade de nos sabermos governar?
Vai longo este texto, o tempo aperta, há muito para dizer ainda, mas não queria deixar de referir, para evitar ser acusado de sectário, a célebre frase de Churchill sobre a Democracia: “A democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros”. Devo dizer honestamente que, com grande compreensão pelo dito do chamado “leão britânico”, a frase se resume a uma meia verdade. De facto, depende das circunstâncias e dos países que a democracia, apesar de reconhecidamente péssima, seja sempre melhor que qualquer outro sistema; assim, não pode ser negado que foi Ataturk – que não era democrata – o pai da Turquia moderna e fez melhor que os seus antecessores mais ou menos democráticos; não pode também ser negado que o salazarismo – que não era democrático – serviu Portugal em nível substancialmente superior ao da I República, democrática e maçónica; está igualmente provado que o generalíssimo Franco – que não era democrata – fez da Espanha a 8ª potência industrial do mundo, proporcionou o aparecimento de uma sólida classe média e seria perfeitamente estúpido comparar a sua gestão governativa à do Sr. Manuel Azaña; por fim, a noção de autoridade e justicialismo introduzida na Argentina por Peron – que não era democrata, mas sim grande admirador de Mussolini – deu àquele país uma independência e uma liberdade de movimentos até então desconhecidas. Podia ainda falar em Pinochet e na recuperação económica do Chile, arruinado até ao extremo pelo democratíssimo Allende, mas não o farei pois não desejo ferir alguns ouvidos porventura sensíveis.
Resumindo: a presunção de que a democracia, em qualquer tempo e condicionalismo, é sempre melhor que qualquer outro regime, não passa de uma imbecilidade manifesta: até um capitão de Abril sabe que é problemático aplicar o regime que vigora na Inglaterra à Somália, ou impor o modelo democrático nórdico a Bornéu ou ao Afeganistão. A validade universal da democracia nunca foi provada até hoje e as probabilidades de isso acontecer são baixíssimas: não só a democracia não é um facto científico (como as leis da mecânica celeste ou da gravitação universal), nem a história tem demonstrado a existência de regimes universais. Bem pelo contrário. Muito mais modesto que Churchill, o filósofo Norberto Bobbio contenta-se em verificar que a democracia é “um sistema melhor do que aqueles que o precederam e lhe sucederam até ao momento”; perante esta contenção, apetece-nos dizer que a humildade nunca fez mal a ninguém, sem prejuízo da afirmação de Bobbio ser, também ela, altamente discutível, como anteriormente se procurou justificar.
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1. Todas as referências a Fernando Pessoa são retiradas do livro “Fernando Pessoa, o antidemocrata pagão” da autoria de Ruy Miguel, edição da “Nova Arrancada” de Janeiro de 1999.
(continua num próximo post)
Eng.º Francisco Ferro
2. Democracia: as definições possíveis
Afinal, meus senhores, em que consiste a Democracia, não aquela que Aristóteles definiu, de acordo com o “elemento portador da soberania”, como o regime em que o poder “reside em todos os membros da comunidade” mas sim a democracia de hoje? O que nos interessa agora não é o esquema aristotélico (sem embargo de constituir uma referência histórica) – monarquia, aristocracia e democracia – mas antes os princípios fundamentais que caracterizam a democracia actual, ou seja a democracia liberal e parlamentar que vigora no Ocidente, que exalta e defende os “imortais princípios” da Revolução Francesa e assenta em meia dúzia (ou pouco mais) de ideias base. São estas que vou indicar, de início, citando um pequeno trabalho que escrevi em 1995 e está publicado no livro “Salazar sem máscaras”:
a) a soberania reside no povo, entendendo por povo o conjunto de pessoas às quais o Estado reconhece capacidade eleitoral;
b) o instrumento utilizado para se conhecer a vontade do povo soberano é o voto, expresso através do sufrágio universal individualista;
c) todos os votos são iguais e têm o mesmo peso, residindo aqui o que Mussolini chamava “a absurda mentira do igualitarismo político”,
d) a democracia reconhece o pluralismo da sociedade e este manifesta-se na existência de “partidos políticos” teoricamente tantos quantas as correntes de opinião. No contexto ocidental, não há democracia sem partidos;
e) o poder deve ser exercido pelo partido ou coligação deles, que obtiver maioria dos votos, mesmo que a abstenção exceda 50% dos eleitores inscritos;
f) é reconhecido o direito à greve como forma de defesa do direito dos trabalhadores;
g) a validade do sistema é universal e não há nenhum melhor, independentemente dos povos a que se aplica e das suas tradições, crenças, culturas e níveis de desenvolvimento;
h) não existem regras éticas ou morais invioláveis: tudo o que a maioria aprova é “bom”, mesmo que seja péssimo; tudo o que a maioria reprova é “mau”, mesmo que respeitador dos sentimentos mais profundos do tal “povo soberano”. Tudo o mais é secundário ou acessório: isto é a democracia e só ela defende a liberdade, garante a justiça e promove a solidariedade, embora se saiba que todas as formas de organização do poder político assumem tais objectivos e haja muitas democracias onde estes valores não são respeitados.
Este é o quadro com que nos deparamos e as características apontadas não podem ser desmentidas: estão aí à vista de todos, na Europa de Maastricht ou Amsterdão e da que se prepara para nela entrar, nos Estados Unidos e no Canadá, também no Japão, certamente com diferenças mas sem negação dos princípios enunciados. Há, no entanto, outros entendimentos da Democracia, com o mérito de terem sido enunciados por grandes figuras que escreveram sobre a Política – a Política com letra grande e não este “salve-se quem puder” em que infelizmente vivemos. Vejamos alguns.
Que tal começar por Fernando Pessoa? O genial poeta da “Mensagem” definia-se a si mesmo como “um nacionalista místico, um sebastianista racional”1.
Concretizando o seu pensamento, Pessoa define a Democracia através de três características: o sufrágio, o liberalismo e o pacifismo, para concluir que o sufrágio não passa de uma burla, que o liberalismo não é uma solução adequada e que o pacifismo lhe permite considerar a Democracia como “radicalmente inimiga do sentimento patriótico, radicalmente anti?patriótica e antinacional”.
Pessoa escreveu há muitos anos, as alterações que o mundo sofreu foram imensas, mas a sua crítica deve ser objecto de observação rigorosa pois entendemos que mantém uma grande actualidade, por um lado, e, por outro, fica-nos a satisfação de verificar que os tais princípios apresentados inicialmente não foram objecto de nenhuma contestação. Ter Pessoa do nosso lado (do lado nacionalista) é importante e verificar que não acredita na bondade das bases democráticas reforça as posições dos que partilham esse ponto de vista; claro que Pessoa é um Poeta e ele mesmo declarou que “o poeta é um fingidor” não sendo de admirar que os democratas rejeitem a sua análise. Mas terão esses democratas, que têm passado a vida a enganar os povos que governam e até às vezes lhes falta a capacidade para fingir, alguma autoridade moral para pôr restrições aos juízos de quem quer que seja? Acreditamos que não. Mas há muitos testemunhos de enorme valia. As limitações de tempo levam-nos a encurtar as citações, e teremos que diminuir o número de outros depoimentos.
Vamos lembrar agora algumas considerações de António Sardinha, também ele poeta mas, para além disso, doutrinador político da melhor água, figura cimeira do Integralismo Lusitano, expoente difícil de igualar do Nacionalismo Português.
Escolhemos algumas frases capitais, colhidas sem nenhuma sistematização rigorosa em livros como “A Prol do Comum”, “Durante a Fogueira”, “Na feira dos mitos”, todas retiradas de um trabalho de selecção (mas também de esclarecimento), organizado por Alberto Araújo Lima, ele próprio nosso camarada na divulgação dos ideais nacionalistas. Vamos a isso.
- “A democracia é, consequentemente, o regime das lutas internas permanentes, em que os argentários predominam com a corrupção arvorada em arma do triunfo”.
- “A democracia é o estado inorgânico duma sociedade primária ou, na hipótese pior, a queda irremediável de uma civilização já sem estímulo de vida...”
- “São as democracias impotentes, por pecado original, para solucionar a crise que geraram com o seu advento. O duelo do Trabalho com o Capitalismo testemunha-o claramente. A liberdade política é um embuste com que se desvirtuam e se sofismam as reclamações inalienáveis dos que produzem e nada conseguem. Não é de liberdade política que se trata. Trata-se mas é de liberdade económica. A liberdade económica, pela sua própria índole, é incompatível com os sistemas parlamentares, que importam, como consequência, as oligarquias políticas e financeiras que atiraram a Europa para a guerra e nela a mantêm. É imperioso apear o Capital do seu poderio abusivo para o tornar num acessório dos dois factores que naturalmente o antecedem – a Terra e a Produção. Exterminando a supremacia dos argentários e o cosmopolitismo da Alta Finança, a sociedade retomará, pela emancipação económica, o caminho perdido das antigas liberdades, cujo consistia somente num vigoroso espírito associativo (...)”
- Sendo contra os princípios funestos da Revolução Francesa, nós somos necessariamente contra a organização económica da sociedade moderna. O Trabalho e a Propriedade sofreram com a obra da revolução a influência de uma nova ordem de coisas, donde deriva imediatamente a crise que a todos nos toca e que escurece o horizonte com tão cerradas interrogações. O proletário, que nós vemos enfeudado ao cortejo dos agitadores políticos, deve à democracia a sua situação miseranda; a desorganização individualista da revolução aboliu os quadros corporativos em que o Trabalho se protegia e defendia dos acasos da concorrência em que o trabalho deixou o produtor entregue ao arbítrio da plutocracia, que é sem dúvida a única e verdadeira criação do espírito revolucionário. Enganam-se os humildes se nas promessas falaciosas do erro democrático supõem encontrar a realização das suas reivindicações justíssimas! Um século inteiro de experiências dolorosas mostra-nos que nunca a sorte das classes pobres pode ser tratada e minorada pelos governos saídos do voto, que são estruturalmente governos sujeitos, por defeito de origem, à venalidade e à corrupção.
Já chega. Monárquico, anti-democrata e por isso inimigo dos princípios revolucionários de 89, também Sardinha não confiava no sufrágio universal e defendia um sistema orgânico e corporativo. Morreu muito novo, no início de 1925, e não chegou a ver concretizadas algumas das suas aspirações, mesmo essas perdidas com a Revolução de Abril. É interessante verificar como a sua crítica feroz ao domínio da alta finança é uma visão profética do que se passa hoje com a gestão do socialismo dito democrático onde o dinheiro é quem tudo manda, e também com a corrupção que as instituições permitem ou fingem não ver, a bem do consenso e do diálogo; e é igualmente interessante notar como os democratas que se sentam agora na cadeira do poder criticavam o predomínio dos grandes grupos económicos no Regime anterior (embora tivessem obrigação de saber que o Presidente do Conselho os metia na ordem quando o exigisse o interesse nacional) e agora se calam perante o ressurgir de novos grupos, mais poderosos e mais influentes junto do governo, escudados na competitividade exigida pela União Europeia. Mas nós somos competitivos em quê, a não ser na incapacidade de nos sabermos governar?
Vai longo este texto, o tempo aperta, há muito para dizer ainda, mas não queria deixar de referir, para evitar ser acusado de sectário, a célebre frase de Churchill sobre a Democracia: “A democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros”. Devo dizer honestamente que, com grande compreensão pelo dito do chamado “leão britânico”, a frase se resume a uma meia verdade. De facto, depende das circunstâncias e dos países que a democracia, apesar de reconhecidamente péssima, seja sempre melhor que qualquer outro sistema; assim, não pode ser negado que foi Ataturk – que não era democrata – o pai da Turquia moderna e fez melhor que os seus antecessores mais ou menos democráticos; não pode também ser negado que o salazarismo – que não era democrático – serviu Portugal em nível substancialmente superior ao da I República, democrática e maçónica; está igualmente provado que o generalíssimo Franco – que não era democrata – fez da Espanha a 8ª potência industrial do mundo, proporcionou o aparecimento de uma sólida classe média e seria perfeitamente estúpido comparar a sua gestão governativa à do Sr. Manuel Azaña; por fim, a noção de autoridade e justicialismo introduzida na Argentina por Peron – que não era democrata, mas sim grande admirador de Mussolini – deu àquele país uma independência e uma liberdade de movimentos até então desconhecidas. Podia ainda falar em Pinochet e na recuperação económica do Chile, arruinado até ao extremo pelo democratíssimo Allende, mas não o farei pois não desejo ferir alguns ouvidos porventura sensíveis.
Resumindo: a presunção de que a democracia, em qualquer tempo e condicionalismo, é sempre melhor que qualquer outro regime, não passa de uma imbecilidade manifesta: até um capitão de Abril sabe que é problemático aplicar o regime que vigora na Inglaterra à Somália, ou impor o modelo democrático nórdico a Bornéu ou ao Afeganistão. A validade universal da democracia nunca foi provada até hoje e as probabilidades de isso acontecer são baixíssimas: não só a democracia não é um facto científico (como as leis da mecânica celeste ou da gravitação universal), nem a história tem demonstrado a existência de regimes universais. Bem pelo contrário. Muito mais modesto que Churchill, o filósofo Norberto Bobbio contenta-se em verificar que a democracia é “um sistema melhor do que aqueles que o precederam e lhe sucederam até ao momento”; perante esta contenção, apetece-nos dizer que a humildade nunca fez mal a ninguém, sem prejuízo da afirmação de Bobbio ser, também ela, altamente discutível, como anteriormente se procurou justificar.
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1. Todas as referências a Fernando Pessoa são retiradas do livro “Fernando Pessoa, o antidemocrata pagão” da autoria de Ruy Miguel, edição da “Nova Arrancada” de Janeiro de 1999.
(continua num próximo post)
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