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2003/09/15

Novas Considerações sobre a Arte de Governar - “Sorte” ou azar “queimam” a classe dos engenheiros civis 

O sucesso dos governos não depende só, é óbvio, do carisma, do talento, da visão e capacidades políticas, ou estratégicas, ou administrativas, ou de gestão e previsão dos seus agentes máximos.
Depende ainda da sorte, para começarmos.
Chamemos sorte a esse factor imprevisível e indefinível em absoluto que, por exemplo, terá feito cair a ponte pedonal do IC 19, em Queluz, quando nem debaixo dela, nem por cima passavam carros ou peões, ou poucos, porque era domingo.
Tivesse havido mortos, como em Entre-os-Rios, e o Governo passaria um mau bocado. Talvez nem a pronta demissão do presidente do IEP – Instituto Português das Estradas lhe evitasse o perigoso impacto político daquele betão a desabar.
A alguém que lhe dizia uma vez, a propósito de alguns dos seus sucessos: “O Senhor Presidente (do Conselho de Ministros) tem muita sorte”, o Doutor Salazar terá respondido: “Pois é... Dá-me muito trabalho ter sorte!...”
Não foi, evidentemente, o caso da ponte pedonal , que aqui a “sorte” foi azar e o que aí houve foi, sim, falta de trabalho, trabalho competente, de qualidade técnica, de execução e de planeamento, a avaliar pelos resultados do inquérito, aliás muito prontamente levado a cabo, do tipo de coisas que entre nós costumam levar um tempo indefinido.
Alguma coisa estará efectivamente a mudar em Portugal?
Talvez a frase de Salazar não seja um acto gratuito de orgulho e talvez não queira dizer, no fundo, senão isto: que, quando se trabalha muito e bem, o mais natural é as coisas não saírem mal. A “sorte” ou o azar, verdadeiramente, só vêm ao de cima como desculpa, quando não se trabalhou ou se trabalhou pouco e mal. Caso nitidamente do desabamento da ponte de peões do IC 19.
Pior é, porém, o desprestígio que o “feliz” acidente traz ou revela, para toda uma classe social e profissional de primeira importância, a dos engenheiros civis portugueses, no seguimento de casos como o de Entre-os-Rios, o das obras do Metro do Terreiro do Passo, o dos viadutos em construção nas auto-estradas novas.
Escreveu o director do “Público” no seu editorial de 9 do mês corrente, intitulado “Não foi só mais uma ponte que caiu”:
“Durante muitos anos a engenharia civil portuguesa — e em especial a engenharia de pontes — era motivo de orgulho. Para além de nomes como Edgar Cardoso, o país possuía um laboratório de investigação de renome internacional — o LNEC —, cujos serviços e competência eram reconhecidos em todo o mundo. Acresce que empresas portuguesas de projectistas e de construção eram consideradas internacionalmente e trabalhavam com regularidade nalgumas das maiores obras públicas do planeta. Por fim, havia um sentido de serviço público nos organismos do estado que fazia com que fosse impensável realizar obras de forma descuidada.
Este quadro geral degradou-se enormemente nos últimos anos. Os organismos do estado viram os seus quadros envelhecer e confrontaram-se com a dificuldade de contratar técnicos novos e competentes por não lhes oferecerem condições atractivas. No sector particular das estradas, o desmembramento da JAE agravou a situação, pois facilitou a saída de muitos quadros históricos. Quanto ao LNEC, o instituto é hoje uma sombra do que foi no passado asfixiado por falta de verbas e envelhecido por incapacidade de renovar os seus quadros. Até a autoridade de fiscalização que se lhe reconhecia foi em grande parte diminuída.
A tudo isto junta-se um quadro geral de desresponsabilização. Os desastres sucedem-se, mas nada acontece aos seus responsáveis. Os inquéritos morrem sem conclusões e os processos judiciais fenecem na penumbra dos tribunais. Pior, instalou-se um sistema de trabalho em que o Estado perde o controlo da obra que encomenda, pois a empresa com quem contrata a obra subcontrata-a a outra empresa, que, por sua vez, a subcontrata a outra ainda. Quando se chega ao local do acidente, às vezes nem se sabe qual o empreiteiro que lá estava a trabalhar.
É por isso que não foi apenas a passagem superior do IC 19 a cair ontem: com ela caiu também a confiança dos portugueses na qualidade das nossas obras públicas."

O que aí fica com clareza expresso é que não se destroem ou deixam destruir impunemente os melhores corpos “orgânicos” de uma sociedade .
Os governos e governantes responsáveis por tais crimes — talvez muito mais graves que tantos outros crimes previstos e castigados no Código Penal — têm pelo menos de perceber e reconhecer esses crimes, para que outros não venham a repeti-los e não cometam ou deixem cometer certos gestos impensadamente ou por pura estupidez e irresponsabilidade.
Não foi só o PREC a destruir tanto do que havia de melhor no tecido social e profissional português. Também certos governos que vieram depois do PREC, alguns dos quais deram provas inequívocas de repudiarem o PREC e os aleijões que este causou, também esses — não por revolucionalismo, antes por inconsciência mas inconsciência culposa — acrescentaram as suas destruições profundas, e menos visíveis, às destruições nacionais imperdoáveis, cometidas de Setembro de 1974 a Novembro de 1975.
A sociedade portuguesa está frágil e fluida, sem esses corpos orgânicos.
Substituí-los ou reconstruí-los é fundamental para a saúde da nossa sociedade e para a retoma do nosso desenvolvimento em geral.
É uma tarefa muito demorada, mas em que alguns indícios fazem supor que se pode estar a tentar ir por bom caminho.
O efeito multiplicador de alguns simples exemplos de boa governação, sobre a dinâmica do tecido social, pode revelar-se espectacular. Para que outros corpos orgânicos da sociedade não sejam ou venham ainda a ser “queimados” e o das nossas obras públicas possa renascer.
Haja esperança e convicções!

ACR

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