2007/04/16
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 02
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Depois de tudo minuciosamente negociado, nem prazo do empréstimo nem juros foram assim tão convenientes como isso.
Isto do ponto de vista dos devedores, como é natural, que tinham de pagar os juros.
Mas o juízo dos conhecedores independentes, em geral, foi verdadeiramente lisonjeiro para os negociadores da Casa das Obras e para a sua habilidade negocial, uma vez que, dizia-se, não só o prazo era suficientemente longo para a CO ter tempo de desenvolver planos eficazes de recuperação económica e financeira; como, sobretudo, o esquema de pagamento dos juros redundava em poupança de quase cinquenta por cento, relativamente aos encargos menos elevados que o mercado lhes tinha proposto.
Especulava-se mesmo sobre as artimanhas de que os negociadores da CO se teriam valido para conseguir tão surpreendente resultado.
Chegou-se até a falar de mezinhas suspeitas que teriam sido administradas ao capitão comendador durante as conversações havidas na CO, algumas até altas horas da madrugada.
Face aos boatos, que todos lhe chegavam aos ouvidos, o comendador bico rigorosamente fechado…
Não queria abrir-se sobre o assunto com ninguém, mas para si próprio não deixava de repetir o comentário que a seus olhos exprimia tudo…
“São piores que os pretos!”
Mas não sabia como explicar o “amolecimento” dos seus mais conhecidos e reconhecidos instintos predadores que lhe dera e fora crescendo ao longo das demoradas negociações.
Tudo partira duma constatação rigorosa formada ao longo do inquérito conduzido no mais rigoroso segredo e, convencera-se o “capitão”, com as maiores cautelas e a firme certeza de ninguém estar a ser enganado, em tudo aquilo, particularmente ele próprio.
Valera-se ele, para o efeito, especialmente do advogado de Viseu e do Pároco de Seia, conhecido na sua pessoa e nas pessoas dos seus antecessores, desde sempre, como “o Reitor”, simplesmente, resíduo da velhíssima colegiada de Santa Maria, criada talvez pouco depois do ano 1000.
Convenceu primeiro o advogado de Viseu – com o pretexto de não querer pedir demais aos seus clientes, em questão de juros – a fazer-lhe uma estimativa dos rendimentos certos do visconde da CO.
Depois, com esses dados, cujo rigor avaliou por discretas sondagens aqui e ali, foi ao Reitor de Seia tentar saber donde vinha, qual seria a origem ou causa mais pesada do evidente estado de ruína das finanças dos “fidalgos” de Seia.
Quase em entrelinhas, o Reitor contou que na origem de tudo, mais de cinquenta anos antes, estava um supremo acto de generosidade e amor à Igreja do Visconde de então e do irmão que se lhe seguia, os quais se propuseram custear a construção da nova igreja matriz de Seia, para substituir a matriz que fora destruída pelos franceses em 1812, em terreno esplendidamente situado no centro da vila, também propriedade da CO.
Mas o Visconde entendera que era ponto de honra seu e de toda a família provar por um gesto público grande a sua devoção a Deus e à Igreja, algumas vezes posta em dúvida. E porquê?... Porque o visconde estivera no cerco do Porto ao lado dos liberais de D. Pedro, contra as forças legitimistas de D. Miguel.
O Visconde chegara mesmo a comandar um corpo de exército liberal que se bateu com os miguelistas em Valongo, no esforço de romper o cerco miguelista ao Porto.
Valer-lhe-iam esses feitos o título de Visconde de Valongo e, muito mais tarde, o posto de marechal de campo.
Dessas máculas todas nunca o Visconde conseguira limpar-se completamente perante os vencidos, militarmente vencidos mas, de facto, dominantes em muito do tecido social e político do País e no seu dia-a-dia.
A não ser através de correntes e sucessivos actos de generosidade públicos de toda a família das Obras, o maior dos quais a construção da matriz que, além da sua grandiosidade arquitectónica, se tornara falada também pelo valor das pinturas e esculturas encomendadas a alguns dos pintores mais prestigiados do tempo, igualmente pagas pelo Visconde e seus sucessores.
Como arranjaram eles o dinheiro que, de facto, não tinham?
Não de reduções das despesas correntes, que essas eram também pontos de honra, mas simplesmente empréstimos que, com os juros, seria preciso pagarem ao longo dos anos.
De anos durante os quais, aliás, nada evoluiria num sentido favorável ao crescimento dos rendimentos da CO, que eram fundamentalmente rendas agrícolas. Não obstante a importância dos rendimentos dos lagares de vinho e de azeite e dos moinhos de cereais, como das vendas de aguardente e jeropiga, tudo desleixadamente explorado, como não era raro.
Assim se instalou na CO o desequilíbrio financeiro crónico, que o comendador capitão não conseguiu inverter, apesar dos esforços que nesse sentido empenhou, com pesados sacrifícios pagos do seu bolso.
A.C.R.
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