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2006/02/17

Memórias da minha Aldeia (21) 

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Pelas quatro horas dessa tarde, o cónego já os esperava, com ar muito compenetrado, que os fez imediatamente perceber que as notícias que iam conhecer, boas ou más, eram pelo menos sérias e de confiança.

Ficariam a saber pela conversa que almoçara com o fidalgo Albuquerque, Senhor da Casa do Arco, uma das mais ilustres, talvez a mais ilustre, da cidade de Viseu. Mas não chegaram a saber se fora esse importante chefe miguelista quem o esclarecera ou se o cónego tinha sido obrigado a ir colher informações “no campo inimigo”, como admitira, isto é, entre chefes liberais, que também frequentavam a Igreja com a assiduidade e convicção aparente dos outros.

Em suma, confirmava-se tudo o que os seus visitantes antes tinham ouvido - resumiu-lhes.

Voltavam a estar de parabéns pelo rigor das suas fontes informativas, comentou o cónego lisonjeiramente.

E repetiu ponto por ponto o que lhe tinham confirmado, para conferir as informações com as do casal.

- Mas não é tudo… - disse – Os liberais de Viseu não esperam poder sair daqui com mais de cem operacionais, talvez só setenta ou sessenta. Vão tentar recrutar mais gente antes de chegarem à Guarda, que também é onde pensam encontrar forte resistência e ter, portanto, os primeiros embates sérios. Ora então…

- Isso quer dizer… - exclamou Feliciano interrompendo o cónego de pronto. – Isso quer dizer que temos de dar cabo deles pelo caminho, se possível logo à ponte do Pindelo que é apertada e a única passagem, porque o rio, a vau, nesta altura, de cheio que vai, não dá hipóteses, como já fui averiguar no lugar.

- Isso é com os estrategas e o senhor capitão parece-me dominar bem a arte… Ainda queria dizer-lhe mais…

- E o dia da partida dos guerrilheiros liberais para esta missão? – tornou a interromper Feliciano, que começava a enervar-se.

- Era isso mesmo que ia revelar-lhe. - explicou o cónego levemente agastado - Partem na madrugada de quarta-feira da próxima semana. Hesitaram muito, mas agora é certo. Foi-me confirmado por duas fontes que considero insuspeitas. Querem estar na Guarda domingo, se não encontrarem obstáculos na sua marcha. Vão bem equipados e bem armados, com carabinas de últimos modelos, inglesas, e só usam cavalos para puxar as carroças da comida, do trem de cozinha, das tendas e dos doentes ou feridos.

Despediram-se com muitos agradecimentos, acompanhados à porta pelo cónego, que de súbito os fez voltar atrás para perguntar, como se naquele momento mesmo lhe tivesse ocorrido:

- Conhecem uma família Veiga Santos?

- Não… – responderam distraidamente.

- Então averigúem. São negreiros em Angola, com muito dinheiro…

- Ah! Então já sabemos de quem se trata!

- Pois muito cuidado! Ele – o chefe da tribo – não pode saber que os senhores sabem. É quem está encarregado de recrutar carne para carabinas, no vosso concelho e à volta. É um homem duma eficácia infernal! Liberal esturrado!

- Esteja descansado, senhor cónego Xavier – sossegou-o Ana Emília, com um fugidio sorriso de cumplicidade.

Com efeito, o mais rapidamente que lhes foi possível, logo no dia seguinte, o chefe da tribo Veiga Santos foi detido e remetido para os cárceres da Guarda, porque o presidente da câmara municipal, a quem tinham de contar o que sabiam do homem, não quis perder nem deixar perder tempo com meias medidas.

Todas as demais cautelas foram tomadas.

Na véspera do dia marcado para surpreender os guerrilheiros liberais, os soldados das milícias aliciadas por Feliciano marcharam noutra direcção, dando uma larga volta para irem passar a última noite acampados e escondidos já nas proximidades do local do previsto recontro, rodeado de pequenas elevações donde, pela madrugada, já o sol clareava, surpreenderam com cerrado tiroteio os liberais que iam passando completamente desprevenidos e lá ficaram estendidos, na sua larga maior parte, tão certeira foi a pontaria da tropa do capitão Feliciano.

Ninguém percebeu como, mas um dos raros tiros disparados ao acaso pelos liberais completamente desorientados e já em fuga – os incompetentes! – acertou em cheio no coração de Feliciano que seguramente nem teve tempo de surpreender-se.

Nem um ai! – repetiam os que o rodeavam.

Havia lágrimas nos rostos de quase todos aqueles homens de aço e sangue frio comprovadíssimo. O desespero fez mesmo um deles desabafar sem se conter.

Que terem perdido o chefe era muito pior do que se perdessem o combate e não tivessem conseguido travar a marcha dos jacobinos para a Guarda. Destacou-se então outro, dos que mais arduamente se haviam batido e o melhor e mais decidido organizador que se revelara junto do capitão Feliciano.

Pediu ele a todos que se juntassem à volta do capitão, que jazia por terra, para rezarem por sua alma, unidos no pensamento de que, se o preço pago por aquela vitória fora grande, mesmo demasiado grande, é porque Deus a tinha por extraordinariamente importante.

"Rezemos, queridos camaradas, pelo eterno descanso da alma do nosso capitão - acrescentou - e demos graças a Deus pela vitória que acaba de conceder-nos, para jamais esquecermos, pelas nossas vidas fora, a glória e a honra que todos hoje e aqui alcançámos, seguindo como um só homem o exemplo glorioso do nosso capitão."

Alguns não rezavam desde a catequese.

Mas o próprio Deus terá achado empolgante vê-los e ouvi-los rezar perfeitamente em uníssono com os mais fiéis de sempre, movidos com certeza pelo modelo de vida que lhes deixava o seu capitão, mas mais ainda por se sentirem a rezar por Portugal.

Uma coisa é certa.

As tentativas dos guerrilheiros liberais, durante muito tempo, no distrito da Guarda, acabaram por ali. E daqueles milicianos miguelistas tomou conta um homem, também um verdadeiro chefe, que Feliciano já admirava e se chamou Estanislau Xavier de Pinto e Pina, de Várzea de Meruge, futuro líder da “guerrilha da Serra” que, já instalado o liberalismo, fez frente às guerrilhas afectas ao novo regime, com grande talento, suma energia e uma coragem que ficaria lendária.

Muitos do seu tempo costumavam dizer dele… “mas em que terrinha foi nascer um gigante assim!”

Foi ele o homem que, no próprio chão do combate acabado de travar e de vencer, empolgou os seus companheiros fazendo-os rezar junto ao corpo do capitão Feliciano Cruz Fonseca, de quem, nos poucos dias que passaram juntos, se havia tornado profundamente amigo e cuja imagem foi talvez a última que lhe ocorreu, antes de morrer, atacado à traição, alguns anos depois.

A.C.R.

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