2006/02/15
Memórias da minha Aldeia (19)
A partir destes sucessos de genuína mobilização popular, poucos meses passariam até que Feliciano viesse a encontrar-se envolvido no combate da Ponte do Pindelo, ali onde miguelistas e liberais teriam sangrento recontro pelo domínio daquela passagem sobre o Dão, entre a Beira-Viseu e a Beira-Guarda, em plena Região Demarcada dos vinhos do nome do rio.
O que se escreveu no número anterior não foi senão um abrir de portas para o super-PREC que esperava os Portugueses de Oitocentos, naqueles anos que iriam de 1828 a 1850, pelo menos.
Nas cartas de convocação dos Três Estados para decidirem sobre o regime político do País e o estatuto real do senhor Dom Miguel, recomendava-se às câmaras municipais que não escolhessem para procuradores do povo senão pessoas insuspeitas de opiniões liberais, sendo que numa circular da mesma altura, do Intendente-Geral da Polícia, se classificavam de “subornados” os votos dos afectos a D. Pedro e à Carta constitucional.
Começava também por essa altura a tornar-se furibunda a perseguição de miguelistas aos liberais.
D. Miguel é declarado Rei absoluto e o absolutismo oficializado pelos Três Estados reunidos no Paço da Ajuda a 23.06.1828, decisões que foram juradas por D. Miguel, aclamado Rei a 11 de Agosto.
Tropas miguelistas completam o avanço sobre o Norte de Portugal, tomando a cidade do Porto e o restante do País, até às fronteiras setentrionais, com as forças liberais em retirada a refugiar-se na Galiza e, daí, em Inglaterra.
Desencadeia-se o terror com nova violência, depois de nomeado o conde de Basto, encarregado por D. Miguel de fazer funcionar a alçada que imediatamente abriria “exacta e minuciosa devassa, sem limitações de tempo nem determinado número de testemunhas”; devendo formar-se “os processos verbal e sumariamente, sem outras formalidades que não sejam as indispensáveis ao direito natural”.
“Trabalharam a forca e o cacete, atulharam-se os cárceres de prisioneiros, tratados com sádica crueldade. Consoante as palavras de Oliveira Lima, `triunfou a política do conde de Basto, e a perseguição estendeu-se a um crescendo de liberais inteiramente passivos.”
O embaixador norte-americano em Lisboa informava o seu governo de que “a mera circunstância de serem conhecidos como adeptos ou suspeitos, sequer, de simpatias pelo constitucionalismo, tem-nos exposto a constantes injúrias, a assassínios frequentes, a espancamentos, a cacete nas ruas, a encarceramento, aos tratos mais ignominiosos; também por efeito de vinganças particulares, ou do vil intento de extorquir-lhes dinheiro pela sua libertação.”
Não se limitou esta vaga de perseguições aos grandes centros.
Também às Beiras ela chegou, a ponto de constar que, nos cárceres de Viseu, da Guarda, de Castelo Branco, do Fundão, já não cabiam mais suspeitos ou acusados, e ainda a “procissão não ia a meio” ou muito menos “chegara ao adro”.
O coronel Alarcão foi apanhado na rede, desde logo como suspeito de “indignas simpatias”, mas posteriormente as suspeitas foram transformadas em acusação oral de ter estabelecido ao longo de vários anos e das suas muitas deslocações entre a Beira e Lisboa, e vice-versa, fortes e muito assíduas ligações entre os comandos centrais de constitucionalistas e cartistas e a rede de agentes liberais da Beira Interior, em especial.
Feliciano sentiu-se como fulminado.
Não podia acreditar, embora não deixassem de ocorrer-lhe ocasiões de menos firmeza ou segurança nas opiniões e tomadas de posição do velho amigo e seu orientador em tantos e decisivos passos da sua vida. Nada disso, em todo o caso, podia responsabilizá-lo como agente subversor activo da sociedade, dos seus valores e instituições. Jurá-lo-ia Feliciano, que tinha muitos amigos entre miguelistas e ex-carlotistas, mas poucos entre liberais e quase exclusivamente liberais cartistas, supostamente moderados.
Talvez isto lhe tenha valido ser útil ao amigo em muitos contactos que fez na Guarda, onde Alarcão estava preso, aguardando formação do processo e julgamento, como os que também fez em Coimbra e em Lisboa.
Muitos destes contactos fizeram-no acreditar mesmo, nalguma altura, que o amigo seria pura e simplesmente libertado em breve, por falta de provas. A principal fonte dessa convicção foi o emissário miguelista que tanto o louvara, pela drástica eficácia revelada por Feliciano e os filhos na organização das manifestações em apoio ao Rei D. Miguel e ao absolutismo.
De facto Alarcão não foi julgado nem sequer acusado, mas saiu do cárcere, onde esteve meses sem culpa formada nem processo aberto, num estado lastimoso, mais que lastimoso, miserável, não se acreditando sequer que pudesse sobreviver muitos dias.
Feliciano criou terríveis sentimentos de culpa pelo estado do amigo. Pela primeira vez na vida, teve pesadelos assustadores, como não imaginaria que pudesse havê-los, e sempre começavam com o coronel Alarcão cheio de saúde, vivacidade e fé, como fora antes do encarceramento. Ana Emília, nas duas semanas que isso durou, forçava-o estremunhada a acordar dando-lhe safanões cada vez mais fortes, de tal modo eram assustadores os seus roncos e gritos durante os pesadelos. A última vez, quase não conseguia acordá-lo, apesar de mais safanões e mais fortes que nunca.
Ana Emília insistiu dessa feita por saber que terríveis pesadelos eram aqueles, que ela começava seriamente a pensar que podiam pô-lo louco.
E ele, violentado, como temendo que, se não contasse, enlouqueceria de certeza, acabou por contar.
Era todas as vezes o mesmo pesadelo, de facto, e não vários e incertos como tinha chegado a fazê-la acreditar.
Levava o amigo, o coronel Alarcão, ao alto da Serra, à Torre, aonde nunca fora, e dali empurrava-o à força, fazendo-o despenhar-se com o cavalo pela garganta de Loriga abaixo, que alguém lhe descrevera como um espectáculo dantesco, até o amigo cair morto lá no fundo.
Feliciano puxou mais alguma, bastante coragem mais, e contou a Ana Emília a sua explicação para o pesadelo.
Logo no princípio do encarceramento, Feliciano pedira a D. Mariana de Alarcão que desse um recado ao marido: que ele Feliciano estava disposto a ir buscá-lo a qualquer saída da prisão, desde que o amigo conseguisse fugir à vigilância, e que dali correriam em dois cavalos para o esconderijo mais fácil e seguro, que pensava ser perto do Sabugal, onde permaneceriam até as coisas mudarem em Lisboa ou, se piorassem, donde fugiriam para Espanha, que lá seguramente não haveria queixas contra nenhum dos dois.
Com grande alegria sua, Feliciano ouviu de Dona Mariana o assentimento completo do coronel, que era só acertarem pormenores e disse quais.
Mas quando ela conseguiu voltar a visitar o marido, na prisão, o coronel mudara de opinião. Deviam esperar mais algum tempo – dizia ele – uma vez que havia boas perspectivas de ser em breve libertado, segundo lhe havia dito, lá dentro, alguém muito responsável.
E Feliciano não insistira, deixara-se iludir. Pelo contrário, começara ele próprio um processo de auto-convencimento, feito dos sucessivos empenhos que metera junto de safados altamente colocados, em quem tanto mais acreditava quanto mais mentiam.
Os pesadelos eram agora o preço dos seus terríveis remorsos.
Mas não voltou a tê-los, desde que os confessou a Ana Emília como nem ao confessor os diria.
A.C.R.
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