2006/02/13
Memórias da minha Aldeia (17)
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Sim, o Vintismo veio mudar quase tudo.
Mas antes da Revolução de 1820 tinha havido a conspiração, também liberal, de 1817, que valeu ao general Gomes Freire de Andrade ser executado.
Feliciano andava em 1817 já demasiado preocupado com os seus negócios privados, devido à quebra crescente do comércio em geral, ou fosse a crise, que se ia instalando sem se lhe ver remédio.
Resultava isso principalmente da falta de autoridade da Junta de Regência; da falta de estabilidade política daí derivada; da intervenção abusiva dos Ingleses nos negócios do País; da falta de recursos que antes vinham do Brasil; do enorme esforço de mobilização militar que trouxe falta de braços na agricultura; do desvio acentuado de recursos para a guerra; de três invasões e respectivos saques sofridas de 1807 a 1812, pelo menos; etc.
Razões bastantes, suponho, para Feliciano não ter dado grande atenção à intentona de 1817, mas o facto é que só com o vintismo se lhe abriram de todo os olhos ou pensou que se lhe abriam.
Não havia agora outro governo em Portugal senão o da Junta vintista, formado pelos revolucionários do Porto e de Lisboa, apoiados pelos regimentos aí aquartelados.
Instaurada a sua ditadura, a Junta proclamou a Constituição de 1822, radicalmente revolucionária, à imagem da constituição espanhola de Cádiz, de 1817.
O poder real passava a ser em grande parte meramente simbólico; eram suprimidos os privilégios da nobreza e do clero, nomeadamente os privilégios fiscais; eram expropriados os bens da Igreja e das ordens religiosas; acabavam os morgadios…
Aos olhos de Feliciano, aquilo não podia ter nada a ver com Portugal e com as tradições portuguesas de que ele era fiel respeitador.
Tudo agora passava a ser claro para si.
Não apreciava a política, nunca fora político, tinha raras ideias políticas, mas agora sabia uma coisa: o seu partido era Portugal; logo, não podia seguir os liberais que queriam pôr tudo do avesso…
Perguntava-se: qual seria a reacção da Corte?
Com enorme surpresa sua, a Corte resignou-se e aceitou os acontecimentos, regressando a Portugal menos de um ano depois do golpe de Estado vintista.
Nos dois anos que se seguiram, a desordem política foi-se reflectindo cada vez mais na vida das gentes e o descontentamento alastrando a toda a classe de prejudicados com as novas disposições constitucionais, ao mesmo passo que a insegurança de pessoas e bens começava a generalizar-se.
Perante o clamor público e das classes preponderantes da sociedade portuguesa, com o silêncio das outras, o Rei D. João VI dirige-se a Vila Franca de Xira onde há forças militares revoltadas a que D. Miguel se juntara. Reforçadas com o regimento que D. João VI levara consigo, em 31.05.1823 essas unidades militares entram em Lisboa, cuja guarnição adere ao movimento que ficou conhecido como Vilafrancada.
D. João VI nomeia D. Miguel comandante do exército e a 04 de Junho é publicado o Decreto real abolindo a Constituição de 1822.
Feliciano tem dificuldade em acreditar que tudo, como se fosse magia, possa voltar ao que era dantes.
Inicia-se nele um processo de pessimismo político de que nunca mais se curará completamente, mas que o salvará das tentações e hesitações mais perigosas.
Por exemplo, de embarcar no aventureirismo de D. Miguel, que viria a redundar no fiasco da Abrilada, em Abril de 1824. Isso não obstante ter muito discretamente sido convidado para casa do vereador mais influente do município, que quis sondá-lo sobre as possibilidades que havia de Feliciano mobilizar as milícias do concelho a favor do Infante. Mas Feliciano, ao fim duma hora de muito perguntar, acabou por perceber que o movimento miguelista em questão era, essencialmente, contra D. João VI cujas hesitações e contemporizações desagradavam cada vez mais aos absolutistas puros e duros.
“Morram os pedreiros-livres!” – começava a ser o slogan mais repetido e de mais sucesso entre radicais, o qual no entanto não encontrava ainda eco entre o círculo mais moderado que rodeava o Rei.
D. João VI teve por essa altura um dos mais dedicados zeladores seus no coronel Alarcão, que então prestava serviço exactamente na guarnição de Lisboa.
Quando D. João VI faleceu subitamente, não se sabe se envenenado, em Março de 1826, os membros desse círculo, sentindo-se desliderados, passaram-se na sua maioria para o círculo da Rainha D. Carlota Joaquina, mas alguns, entre os quais o coronel Alarcão, continuaram a “esperar para ver”, visto chegarem a Portugal constantemente ecos das movimentações do Infante D. Pedro no Brasil.
Depressa se soube que D. Pedro assumira a sucessão de D. João VI, como D. Pedro IV, tendo, nessa qualidade, apenas menos de dois meses depois da morte do pai, promulgado a nova constituição do reino de Portugal, a que chamou Carta Constitucional, que conquistou muitos Portugueses para o constitucionalismo, por ser muito menos extremista e revolucionária que a Constituição de 1822, produto do radicalismo vintista.
O coronel Alarcão aproximou-se então dos círculos aderentes a D. Pedro IV, mas Feliciano aderiu aos que, por sua vez, ficaram agora a “esperar para ver”.
O que não lhe era difícil, no distanciamento, quase isolamento, a que a Beira o condenava, mas sobretudo o envolvimento na sua própria actividade agrícola e nas transacções comerciais que – por Deus! – lhe levavam o tempo todo.
Feliciano vai resistindo a todos os cantos de sereia.
Mesmo quando D. Pedro IV abdica na filha de sete anos, futura D. Maria II.
Mesmo quando lhe chega a notícia segura de que D. Miguel, em Viena de Áustria e na presença do todo poderoso Metternich e dos ministros plenipotenciários de Portugal e do Brasil, jura a Carta Constitucional, em Outubro de 1826.
Era talvez o preço para poder regressar a Portugal. Como de facto regressou, desembarcando em Lisboa que o recebe triunfalmente, idolatricamente mesmo, quase ano e meio depois, no fim de Fevereiro de 1828.
Retirado inteiramente nas suas ocupações familiares e negócios, Feliciano permite-se ignorar tudo, recusa-se teimosamente a compreender o que quer que seja do mundo novo em revolução permanente.
A.C.R.
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Sim, o Vintismo veio mudar quase tudo.
Mas antes da Revolução de 1820 tinha havido a conspiração, também liberal, de 1817, que valeu ao general Gomes Freire de Andrade ser executado.
Feliciano andava em 1817 já demasiado preocupado com os seus negócios privados, devido à quebra crescente do comércio em geral, ou fosse a crise, que se ia instalando sem se lhe ver remédio.
Resultava isso principalmente da falta de autoridade da Junta de Regência; da falta de estabilidade política daí derivada; da intervenção abusiva dos Ingleses nos negócios do País; da falta de recursos que antes vinham do Brasil; do enorme esforço de mobilização militar que trouxe falta de braços na agricultura; do desvio acentuado de recursos para a guerra; de três invasões e respectivos saques sofridas de 1807 a 1812, pelo menos; etc.
Razões bastantes, suponho, para Feliciano não ter dado grande atenção à intentona de 1817, mas o facto é que só com o vintismo se lhe abriram de todo os olhos ou pensou que se lhe abriam.
Não havia agora outro governo em Portugal senão o da Junta vintista, formado pelos revolucionários do Porto e de Lisboa, apoiados pelos regimentos aí aquartelados.
Instaurada a sua ditadura, a Junta proclamou a Constituição de 1822, radicalmente revolucionária, à imagem da constituição espanhola de Cádiz, de 1817.
O poder real passava a ser em grande parte meramente simbólico; eram suprimidos os privilégios da nobreza e do clero, nomeadamente os privilégios fiscais; eram expropriados os bens da Igreja e das ordens religiosas; acabavam os morgadios…
Aos olhos de Feliciano, aquilo não podia ter nada a ver com Portugal e com as tradições portuguesas de que ele era fiel respeitador.
Tudo agora passava a ser claro para si.
Não apreciava a política, nunca fora político, tinha raras ideias políticas, mas agora sabia uma coisa: o seu partido era Portugal; logo, não podia seguir os liberais que queriam pôr tudo do avesso…
Perguntava-se: qual seria a reacção da Corte?
Com enorme surpresa sua, a Corte resignou-se e aceitou os acontecimentos, regressando a Portugal menos de um ano depois do golpe de Estado vintista.
Nos dois anos que se seguiram, a desordem política foi-se reflectindo cada vez mais na vida das gentes e o descontentamento alastrando a toda a classe de prejudicados com as novas disposições constitucionais, ao mesmo passo que a insegurança de pessoas e bens começava a generalizar-se.
Perante o clamor público e das classes preponderantes da sociedade portuguesa, com o silêncio das outras, o Rei D. João VI dirige-se a Vila Franca de Xira onde há forças militares revoltadas a que D. Miguel se juntara. Reforçadas com o regimento que D. João VI levara consigo, em 31.05.1823 essas unidades militares entram em Lisboa, cuja guarnição adere ao movimento que ficou conhecido como Vilafrancada.
D. João VI nomeia D. Miguel comandante do exército e a 04 de Junho é publicado o Decreto real abolindo a Constituição de 1822.
Feliciano tem dificuldade em acreditar que tudo, como se fosse magia, possa voltar ao que era dantes.
Inicia-se nele um processo de pessimismo político de que nunca mais se curará completamente, mas que o salvará das tentações e hesitações mais perigosas.
Por exemplo, de embarcar no aventureirismo de D. Miguel, que viria a redundar no fiasco da Abrilada, em Abril de 1824. Isso não obstante ter muito discretamente sido convidado para casa do vereador mais influente do município, que quis sondá-lo sobre as possibilidades que havia de Feliciano mobilizar as milícias do concelho a favor do Infante. Mas Feliciano, ao fim duma hora de muito perguntar, acabou por perceber que o movimento miguelista em questão era, essencialmente, contra D. João VI cujas hesitações e contemporizações desagradavam cada vez mais aos absolutistas puros e duros.
“Morram os pedreiros-livres!” – começava a ser o slogan mais repetido e de mais sucesso entre radicais, o qual no entanto não encontrava ainda eco entre o círculo mais moderado que rodeava o Rei.
D. João VI teve por essa altura um dos mais dedicados zeladores seus no coronel Alarcão, que então prestava serviço exactamente na guarnição de Lisboa.
Quando D. João VI faleceu subitamente, não se sabe se envenenado, em Março de 1826, os membros desse círculo, sentindo-se desliderados, passaram-se na sua maioria para o círculo da Rainha D. Carlota Joaquina, mas alguns, entre os quais o coronel Alarcão, continuaram a “esperar para ver”, visto chegarem a Portugal constantemente ecos das movimentações do Infante D. Pedro no Brasil.
Depressa se soube que D. Pedro assumira a sucessão de D. João VI, como D. Pedro IV, tendo, nessa qualidade, apenas menos de dois meses depois da morte do pai, promulgado a nova constituição do reino de Portugal, a que chamou Carta Constitucional, que conquistou muitos Portugueses para o constitucionalismo, por ser muito menos extremista e revolucionária que a Constituição de 1822, produto do radicalismo vintista.
O coronel Alarcão aproximou-se então dos círculos aderentes a D. Pedro IV, mas Feliciano aderiu aos que, por sua vez, ficaram agora a “esperar para ver”.
O que não lhe era difícil, no distanciamento, quase isolamento, a que a Beira o condenava, mas sobretudo o envolvimento na sua própria actividade agrícola e nas transacções comerciais que – por Deus! – lhe levavam o tempo todo.
Feliciano vai resistindo a todos os cantos de sereia.
Mesmo quando D. Pedro IV abdica na filha de sete anos, futura D. Maria II.
Mesmo quando lhe chega a notícia segura de que D. Miguel, em Viena de Áustria e na presença do todo poderoso Metternich e dos ministros plenipotenciários de Portugal e do Brasil, jura a Carta Constitucional, em Outubro de 1826.
Era talvez o preço para poder regressar a Portugal. Como de facto regressou, desembarcando em Lisboa que o recebe triunfalmente, idolatricamente mesmo, quase ano e meio depois, no fim de Fevereiro de 1828.
Retirado inteiramente nas suas ocupações familiares e negócios, Feliciano permite-se ignorar tudo, recusa-se teimosamente a compreender o que quer que seja do mundo novo em revolução permanente.
A.C.R.
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