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2006/02/06

Memórias da minha Aldeia (14) 

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E eu a divagar, quando no que todos estaremos interessados, nesta altura, é em saber das personagens cujas vidas estão como que suspensas das histórias que as “memórias da minha Aldeia” vêm reconstituindo.

Peço-lhes que reparem numa coisa. Desde 1760, quando começa a germinar a família em que até aqui temos concentrado atenções, tem ela, a família, andado como que de andas para bolandas, quase se diria à mercê dos reflexos e efeitos de grandes acontecimentos históricos nacionais e europeus, sobre a gente duma ínfima aldeia das Beiras, como se essa gente e essa aldeia não tivessem vida própria, só a vida dos altos desígnios nacionais e internacionais e dos grandes movimentos colectivos.

E não era tal o meu objectivo essencial mas os acontecimentos impuseram-se-me, porque verdadeiramente aquilo que teria gostado de provar era que a vida das gentes poderia ter decorrido inteiramente à margem dos sucessos mundiais ou europeus, e mesmo assim uma vida plena e em cheio.

Revelou-se-me, no mínimo, impossível.

Perdoai se vos desiludi, mas o primeiro desiludido fui eu.

E para vo-lo provar, vou contar-vos o episódio que se segue da vida de Feliciano que o revela igualmente desiludido.

Nos primeiros dias do rescaldo da invasão comandada por Massena, Feliciano recebeu de Coimbra uma carta do Capitão-General Alarcão, em que este o convidava para acompanhá-lo como seu adjunto, no posto de capitão do exército português regular, que ia sair do País em perseguição dos Franceses, através de Espanha, sob o comando de Wellington. Fora este que pessoalmente o convidara e lhe pedira que, como major, escolhesse o seu adjunto. Tinha Feliciano de decidir-se imediatamente, porque a sub-unidade em que iria integrado passava na Catraia de São Romão daí a três dias, ao amanhecer.

A primeira reacção de Feliciano foi entusiástica: “Vou!”

A segunda foi desgostosa: “Não vou, não posso, não quero ir…”

A terceira foi timorata: “Tenho de aconselhar-me com a Ana Emília, não farei o que ela não quiser.”

Três dias depois, Feliciano aguardava que o destacamento passasse, como efectivamente passou, ainda o sol ia baixo.

Entregou as rédeas do cavalo à mulher, abraçaram-se pudicamente, porque os olhos deles diziam tudo um ao outro, e ele montou o cavalo do destacamento, que passava a ser o seu.

Contactariam a retaguarda do exército de Massena mais de uma semana depois. Nas escaramuças que se seguiram, Feliciano foi ferido, gravemente à primeira vista, e tratado num hospital espanhol de campanha, onde Alarcão o visitou por várias vezes. A conversa que tiveram na última acabou por ser a mais íntima de sempre até então. Em síntese, Feliciano descobrira que estava farto de ser joguete da História, ainda podia admiti-lo na sua terra, como até aí, disse ele; mas agora queria viver simplesmente com a sua mulher, ajudá-la na criação e educação dos filhos, sobretudo dos mais novos, e cultivar as terras da família, a herdar dos sogros, por estar convencido de que sabia fazê-lo como ninguém. De resto, já sabia que ia ser dado como incapacitado, pelo que por aí não ia haver obstáculos, mas isto não disse ao amigo.

Alarcão estranhou-o mas compreendeu, quase lhe apeteceu fazer o mesmo. Talvez quando chegassem a Paris…

Separaram-se com repetidos abraços, como dois irmãos de peito que pouco a pouco se tinham tornado, embora só agora percebessem como isso era uma verdade límpida e simples.

Em poucos dias, Feliciano voltou às “suas Beiras” electivas, iniciando, segundo acreditava, um longo período de tranquila vida doméstica.

Fartara-se.

Não seria a última vez.

António da Cruz Rodrigues (A.C.R.)

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