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2006/02/02

Memórias da minha Aldeia (12) 

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Feliciano entendeu que as populações da Folgosa e de Santa Comba deviam abandonar as aldeias e refugiar-se nalgum sítio das grandes matas de carvalhos, castanheiros e pinheiros, bravos e mansos, que abundavam nos seus arredores, ao longo das duas margens do Seia, entre a ponte de Santiago e a do Salto, distantes umas duas léguas e meia, em linha recta, uma da outra. Sentinelas armadas ficariam escondidas nos telhados, em determinadas casas de cada uma das povoações, para o caso de bandos franceses desesperados virem ali tentar as suas consabidas malfeitorias.

Todos reconheciam que maior desespero, talvez de suicídio garantido, era o gesto extremo das sentinelas que ficavam nas aldeias, assim se expondo à fúria e treino militar dos bandos franceses à solta, sem disciplina nem deontologia militar alguma.

Mas também todos concordavam que o primeiro dever das milícias era porem a salvo, com o devido resguardo, as populações civis.

Toda a companhia de milícias de Santa Comba estava empenhada nessas tarefas, com mais de cem homens, incluindo os milicianos no activo e boa parte dos que, ao longo dos anos, lá haviam feito serviço mas já haviam ultrapassado a idade da mobilização compulsiva.

Armas foram igualmente distribuídas a todos.

Muitas das quais não passariam de espingardas caçadeiras, boas quando muito para matar raposas, lobos e javalis, a pequenas distâncias.

Mas desempenharam bem o seu papel, estando como estavam em boas mãos.

Ah! É verdade, faltou dizer que, nas três pontes estrategicamente chaves daquele troço do rio, a de Santiago, a da Folgosa e a do Salto, também foi julgado indispensável colocar sentinelas. Escondidos, lá ficaram desde madrugada bem cedo, os milicianos suficientes e em boas posições para surpreender Franceses que ousassem tentar atravessar.

Junto à da Folgosa, por exemplo, havia a “cova da moura”, ou “pedra furada”, cavada na muralha de xisto que cortava um monte sobranceiro. Diz a lenda…

Não nos adiantemos…

As matas nas proximidades da Folgosa, sobretudo, de tão povoadas de arvoredo denso e muito alto, metiam medo, com caminhos apertados, desertos e raros, sombrios, que se cruzavam de longe em longe, dificultando a orientação, distantes das povoações mais próximas, por tudo isso afiguravam-se logo como os sítios ideais e mais tenebrosos para refúgio de grupos que se queriam muito difíceis de referenciar.

Pelas oito da manhã, já todos os deslocados da Folgosa estavam concentrados no sítio julgado mais recôndito das matas do Muchano e aquele que mais difícil seria de descobrir pelos Franceses, que nestas suas marchas raramente usavam cães para os ajudarem a descobrir gente escondida ou objectos suspeitos.

Os habitantes de Santa Comba foram orientados pelos responsáveis para um local distante dos da Folgosa, por se ter receado que uma concentração excessiva se tornasse demasiado detectável. Ainda, mesmo assim, se quis dividir o grupo da Folgosa em dois, mas logo se manifestaram fortes protestos contra os que queriam separá-los uns dos outros. E o capitão Feliciano em pessoa, entendeu não insistir, reconhecendo-lhes razão.

Depois fez-lhes algumas recomendações mais.

“Ninguém sabe onde vossemecês estão, porque ninguém disse nada a ninguém. Daqui também não pode sair ninguém, a não ser para fazer as necessidades. Tento, muito tento nas crianças, para não se perderem por aí. Juro-vos que seria quase impossível encontrá-las nesta escuridão, que o sol desaparece depressa para lá das copas altas das árvores. Ninguém faz lume, hein! Porque poderia deitar fogo à floresta e porque assinalaria ao longe as nossas posições aos Franceses – e o esconderijo deixaria de o ser. Uma tragédia para todos nós. Percebem que qualquer descuido, de um só que seja, basta para pôr-nos em perigo de morte a todos. A todos, repito. Cuidado também com os lobos. Montai guardas contra os lobos. Não atacam de dia, em geral, e de noite fogem das fogueiras acesas. Mas não podeis acender nenhuma, já sabeis porquê. Só nessas casas dispersas por aí, onde os donos nos deixam utilizar as cozinhas. Se cumprirdes rigorosamente o que vos disse, tudo correrá bem, porque os Franceses não vos descobrirão e lá fora tomamos nós conta deles, vereis. Outra coisa. Quando puder, ainda esta manhã, passo por casa do senhor Morgado Calheiros. Para a senhora D. Alda ficar sossegada com as notícias dele que espero trazer” – disse ainda mais alto, quase gritando, para o fundo do agrupamento, onde D. Alda se mantinha encolhida e sentada, transida de medo e remorso por ter acabado por consentir em deixar o pai abandonado na casa onde viviam com três criados que tinham ido em reforço das milícias.

Com isto, Feliciano afastou-se logo, a cavalo, para visitar de passagem todos os postos de sentinelas das aldeias e pontes, mas demorou-se mais no local de concentração e refúgio dos de Santa Comba, para repetir as recomendações feitas aos da Folgosa, verificando em toda a parte normalidade completa e os ânimos preparados para tudo.

A certa altura do percurso, veio ter com ele, a cavalo, o mensageiro das más notícias da véspera, para lhe dizer o que apurara, uma hora antes, na zona do Ervedal. Isto apenas, que pelo meio-dia ainda os Franceses não tinham abandonado a zona, onde haviam passado a noite a descansar dos desacatos e crimes dum dia inteiro.

Não passara o mensageiro do Ervedal, pelo que não podia garantir ao “meu Capitão” que nas outras aldeias martirizadas pelos jacobinos, até ao Seixo, mesmo até Felgueira Velha, não permanecessem os Franceses também por lá, pois não vira rastos deles em outro lado algum.

Feliciano pediu ao mensageiro que fizesse nova ronda por esses lados, para confirmar, mas que passasse também por Oliveira do Hospital e regressasse pela estrada da Beira, pois achava inacreditável que também por ali o movimento de tropas francesas fosse zero.

Pensou Feliciano consigo que, a arrastar-se assim o tempo, nem aos milicianos nem aos civis poderia dar ordem para voltarem a suas casas. Aquela noite já se sabia que não e já todos contavam com isso, mas arriscavam-se a ter de passar por lá também a noite a seguir, o que não era simples com o relento que os esperava.

Já passava das duas/três horas da tarde, quando Feliciano bateu à porta do senhor Morgado. Achou o velho paralítico, sentado como sempre na sua cadeira de rodas. Com um brilho nos olhos como nunca lhe vira, desfiou-lhe o Morgado alegremente os truques de que planeara servir-se para trocar as voltas aos Franceses e passar-lhes completamente despercebido.

A.C.R.

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