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2006/01/26

Memórias da minha Aldeia (8) 

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Um dos seus primeiros domingos de casados, depois de voltarem da “lua de mel” em Coimbra e Arganil, Ana Emília quis mostrar a Feliciano a
ponte, romana, de que o pai tanto falava, porque orientara a recuperação dela e fora isso o ponto de partida para uma vida nova dele.

Antes de chegarem à ponte, apenas um pouco antes e acima, na margem esquerda e já com a ponte bem à vista, Ana Emília quis mostrar-lhe o padrão que regista o ano do termo das obras e algumas informações mais.

Não sem preveni-lo de que não se admirasse da rapidez dela a ler a inscrição lá gravada, o que não era fácil à primeira, mas que lha decifrara o “nosso Prior” um dia que viemos aqui com os garotos da Catequese. “Sabias que sou catequista?”

- Sim, já tinha percebido… Então mostra lá.

Assente o padrão de granito num rochedo, rasteiro à pequena encosta donde podiam ver a ponte em baixo e a pequena veiga bem cultivada, do lado de lá do rio, abeiraram-se ambos da inscrição nela gravada toscamente, que rezava assim, pelo menos parecia.

O f da ponte
1764
POR DMAD
fAIR
FELIP
E IOIe
DA fOL
gOIA

O que ela leu deste modo depois de algumas tentativas mais ou menos infrutíferas de Feliciano:

O fecho da ponte
1764
Por Deus mandaram
fazer
Felipe e José
Da Folgosa.

Esclareceu. “Felipe era o meu avô materno – o “Senhor Felipe da Folgosa” – José o meu tio que também já conheces, da nossa boda, para o resto tens de perguntar ao senhor Prior…”

- Não percebo – disse ele – estas letras DMAD…

- O Sr. Prior diz que são abreviaturas, percebes?…

Talvez. Mas este f? – e apontou para o 1º f, a seguir ao O inicial.

- Ah! – respondeu – essa foi o meu pai quem ma decifrou, ninguém mais o sabia, só alguém da construção de pontes era mesmo capaz de descobri-lo. É o f inicial de fecho, o fecho da ponte, o seu acabamento…

- Já percebi. E porque não está cá o nome do teu pai, se foi o “engenheiro” da obra, todos o dizem?

- Porque só puseram os nomes de quem encomendou a obra e a pagou, o meu avô Felipe e o tio José.

O meu pai diz que se pusessem o nome dele, tinham de pôr também os nomes dos trabalhadores todos que cá andaram do princípio ao fim. Alguns nem sabiam como se chamavam, só tinham alcunhas. E vieram até de bastante longe, não poucos, não eram da terra, isto foi feito só para registar gente da terra. E sabe Deus o trabalho que deu, que o pedreiro gravador quase nem sabia escrever. Quero dizer, pelo menos conta o meu pai, o homem nem sabia ler nem escrever; teve o meu pai de lhe escrever as letras num papel, letra a letra, para não haver confusões, e ele copiou sem saber o que copiava.

- Era preciso que estas coisas ficassem esclarecidas por quem as pensou e escreveu – disse Feliciano com ar pensativo. – Daqui a cem anos ninguém percebe nada destas garatujas!…

- Ora! – riu Ana Emília, abraçando-o – E tu a preocupares-te com isso!

- Não preocupo nada, foi só uma ideia pateta! Não acrescentaram mais nada porque começaram a beijar-se, escondidos entre os cavalos de ambos, que não se mexeram, como se já estivessem habituados a tornar-se cúmplices daquelas efusões, escondendo-os e servindo-lhes de encosto seguro também. Se aos noivos lhes apetecia estenderem-se na terra ou na relva, os cavalos, já tinha acontecido, os cavalos abaixavam-se também, para melhor os esconderem e aconchegarem.

- Sou catequista mas também sou casada, não posso deixar de satisfazer o meu homem! Já li nos livros da Igreja, que é um dever moral das mulheres.

- E os homens, não têm também esse dever para com as suas mulheres?... – tentou ele ironizar.

- Claro que têm e tu, graças a Deus, cumpres tão bem que… Não receies nem te arrependas! – completou ela, já montada e correndo a galope atrás do cavalo do marido que se ia distanciando, como a desafiá-la outra vez.

Foi a galope que atravessaram a aldeia, por ruas tortuosas até chegarem a um pequeno terreiro, onde ela subitamente estacou, chamando e acenando a Feliciano para que voltasse atrás.

- Queria mostrar-te uma coisa – disse quando ele parou junto dela -. Olha para aquela data ali, na pedra, por cima do portão do solar do morgado Calheiros.

- Sim, diz 1772. Construído faz 20 anos…

- Agora vamos ali, à porta lateral da
capela

Ele seguiu-a e ela parou uns metros adiante, do lado esquerdo da capela.

Na porta da capela, também de granito, Ana Emília mandou-o ler.

- 1794! – disse ele.

Enganaram-se! – respondeu a rapariga.

- Disse-me o pai que queriam gravar 1784 e se enganaram. Agora não sabem como remediar. Vai ficar assim. Daqui a duzentos anos ainda assim continuará – assegurou ela, antecipando-se ao cepticismo e pessimismo crítico nacional de duzentos e tal anos depois.

A.C.R.

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