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2006/01/25

Memórias da minha Aldeia (7) 

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Depois, durante toda a semana, Ana Emília não lhe saiu um momento da cabeça, mas não conseguiu pôr-lhe a vista em cima.

É certo que mal teve algum tempo para tentar vê-la, porque o capitão o ocupou em cheio com a preparação do primeiro exercício da milícia e com o planear da formação a darem aos milicianos, bem como com a renovação, armazenagem e classificação dos equipamentos, armas, munições, mesmo merendas ou rações de campanha, etc.

Em todo o caso e em rápidas fugidas, não deixou Feliciano de passar-lhe à porta, a cavalo, várias vezes, ao fim do dia, sem sequer conseguir avistar, mesmo de relance, quem ele tanto queria, na Quinta onde viviam, ela, os irmãos, os pais e a empregadagem.

Até que, no último dia dessa semana, encontrou a passagem na rua defronte da casa de repente barrada por cinco cavaleiros armados que o intimaram a parar e o obrigaram a desmontar.

Quando as coisas pareciam prestes a azedar mesmo, porque eles – dois dos quais já desmontados também, os mais entroncados – teimavam e ameaçavam que Feliciano tinha de jurar que não tornava a passar por ali, fosse que dia ou hora fosse e fosse qual fosse o motivo… surgiu subitamente de dentro de casa a magnífica causadora de todo aquele inesperado levantamento, à beira da violência mais agressiva.

Como se Ana Emília trouxesse um chicote em cada mão, mas apenas com o olhar furioso e alguns gestos decididos, entremeados de meia dúzia de palavras, ditas em tal tom, quase sussurrado, que Feliciano não conseguiu ouvir distintamente uma só, os cinco cavaleiros intrépidos desapareceram dali pouco lestos e muito contrariados, mal disfarçando a ira, mas sem recalcitrarem.

Nem eles nem os cavalos, que nem mesmo precisaram de rédea para obedecerem à intimativa…

Tudo correu alucinantemente depressa dali em diante, para Feliciano e Ana Emília.

Descobriram afinidades que os espantavam sem os surpreenderem, em cada dia, a cada instante.

Descobriam-se, um no outro e cada um em si próprio, uma maturidade de que não suspeitavam.

Falando e estando calados, beijando-se ou distanciados.

E, descobrindo-se mutuamente, afigurava-se-lhes tudo o mais claro e inteligível à sua volta, nas pessoas, nas coisas e nos próprios bichos.

Ao fim de seis meses de namoro, casaram.

Foi o melhor que conseguiram, porque na verdade queriam ter casado logo duas semanas depois de se terem conhecido.

Pois o pai e a mãe dela, segundo a lenda familiar, não haviam casado de um dia para o outro? – argumentavam.

Mas aceite uma decisão de compromisso por todos que lhes importava, a serenidade de ambos tornou-se perfeita.

Apenas os assustava, às vezes, um pouco, um certo sentimento de irrealidade de tudo quanto estavam a viver, logo ultrapassado quando se beijavam.

O romantismo ainda mal atravessara as fronteiras da Alemanha e já chegara ali, uma ínfima aldeia da Beira!

Para “viagens de núpcias” e “lua de mel”, escolheram uma ida a Coimbra, vinte léguas dali, que decidiram fazer a cavalo, para aquela Coimbra que, aos olhos e nos pensamentos de tantos jovens, era uma espécie de Terra Prometida, nesses tempos.

Passaram dois dias na cidade, sem afinal saírem do albergue onde se instalaram. No regresso, foram direitos a Arganil, porque o mestre do agrupamento, que tocou na missa do casamento e depois na boda de estalo – as famílias nada pouparam para o brilho do matrimónio, nem sequer o melhor fogo de artifício – era de Arganil e incitara-os a passarem por lá, que era um pequeno desvio e a vila uma terra linda, linda e muito acolhedora, numa curva larga do Alva.

Alojaram-se no único albergue que havia e no dia seguinte, um domingo, já a manhã ia alta acordaram assarapantados porque debaixo das janelas tinham todo o agrupamento musical do casamento, com o maestro, a tocar-lhes as boas-vindas, numa grande, altissonante festa.

Por pouco não deixaram a vida lá.

Cansados da turbulenta recepção dos do agrupamento, que todo o santo dia os arrastaram por aqui e por ali e acolá – tiveram de almoçar três vezes! – chegaram já tarde ao albergue para passarem a última noite.

Tão tarde, de facto, que a moça que os esperava para apagar as candeias e velas, logo foi deitar-se sem, talvez de tão ensonada, as apagar todas. De madrugada, os noivos acordaram com um extraordinário cheiro e esgazeamento de fumo e fogo. Levantaram-se a correr, vestiram o que lhes foi possível e fugiram ou saltaram, nunca souberam, para a rua, porque a casa já ardia de ponta a ponta. Feliciano ainda quis voltar atrás, porque lhe disseram que ninguém conseguira tirar de lá a velha dona do albergue. Em vão, porque tudo ardia e não achou passagem pelo meio do fogo.

Afinal, a velha senhora tinha fugido a tempo, logo no princípio do incêndio, para pedir socorro. Uma nota feliz daquela noite desastrosa para os noivos, não fora as grandes amizades que ali fizeram e fortaleceram.

A.C.R.

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