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2006/01/24

Memórias da minha Aldeia (6) 

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O senhor Filipe da Folgosa nunca se arrependeu de ter intimado o “engenheiro”, é um facto, a casar com a sua filha, levando-o ao altar pela gola.

O “engenheiro” viria, com efeito, a dar provas, ao longo de toda a sua vida, de marido bom como poucos.

Foi bom marido e bom amante porque nunca faltou com nada à mulher, em todos os sentidos, e porque lhe fez meia dúzia de filhos, todos lindos, todos de bom carácter e trabalhadores.

Não contribuiu, é certo, para a educação deles com prédicas e açoites, porque não era preciso; a mulher tinha mais jeito e sentido das oportunidades para isso que ele, mas, por outro lado, também nunca ele deixou de dar-lhes abundantes exemplos de vida útil, honesta, activa e até piedosa.

No fim da sua vida de trabalho, tinha juntado um património que seria pelo menos vinte a trinta vezes aquele que deu a conhecer ao sogro, logo a seguir ao casamento e antes de começar a noite de núpcias, quando o genro chamou o sogro de parte para falarem a sós, enquanto os convidados, comida a boda, conversavam e dançavam animadamente.

Foi então que o “engenheiro” informou o senhor Filipe da Folgosa da sua intenção de continuar com a construção de pontes uma vez – disse ele – que “todo o Interior” estava a “pedir pontes por todos os cantos”. Mas iria simultaneamente dedicar-se a emprestar dinheiro. “Se o senhor meu sogro souber de quem precise…” – acrescentou com humildade e respeito.

O senhor Filipe da Folgosa arregalou os olhos como quem não percebia ou não queria perceber, que para ele a usura era o pecado mais torpe de todos, mesmo mais que matar ou que a luxúria.

O “engenheiro” apressou-se a tranquilizá-lo, declarando que o seu negócio estava ainda na infância da arte e que ele próprio jamais chegaria ao nível dos verdadeiros artistas que andavam naquilo havia muitos anos e depois de fortes “escaldões”.

Modéstia.

Depressa chegou o “engenheiro” à mestria mais refinada do negócio.

Chegaram a chamar-lhe pejorativamente “o Judeu”, mas não fazia caso, porque considerava isso um elogio, e ele bem sabia porquê.
Oh! Se sabia...

Assim deixou crescer a sua lenda.

Levava juros mais baixos que qualquer usurário e, ao mesmo tempo, fazia questão de não levar nenhum devedor ou devedora à falência nem ao suicídio ou a prostituir-se.

Mas toda a gente sabia que era muito duro, às vezes implacável, na execução das hipotecas dos bens que exigira como garantia dos empréstimos.

Nesse tempo a Justiça era menos lenta…

Por isso tudo, raras vezes teve de chegar às últimas com os devedores. Antes desse ponto, exercia a sua arte suprema, a sua arte de negociar, caso a caso, tanto quanto possível sem pressas nem ameaças.

Criou tal fama de homem sério, contemporizador e comedido, mas sempre prestável, que não tinha mãos a medir e se tornou geralmente respeitado.

Entre a fidalguia principalmente.

Até por serem sobretudo fidalgos os que recorriam aos empréstimos dele.

Os tempos eram difíceis para a nobreza da Província, que vivia apenas dos rendimentos das terras, longe do acesso às benesses e suprimentos da Coroa. Os rendimentos das rendas eram em geral fixados em espécie – alqueires de milho ou rasa de centeio, por exemplo – cujo valor de venda não acompanhava a subida do preço dos outros produtos e serviços, que os fidalgos tinham de comprar no mercado.

Também era cada vez mais caro fazer a conservação dos velhos solares e mandar os filhos estudar para Coimbra…

Sem estudos, por outro lado, era cada vez mais difícil encontrarem emprego na Corte, desde Pombal, que não gostava por aí além de fidalgos, ou os fidalgos dele.

De modo que eram muitos os da pequena e média nobreza a terem de recorrer ao crédito e a acabarem por ir vendendo propriedades para pagarem os empréstimos, se não tinham já condições de contrair novos empréstimos para pagarem os velhos.

A seara era vasta e os usurários aproveitaram-na bem.

O “engenheiro” fez a diferença.

Quando, acompanhado pela filha, lhes foi apresentado Feliciano, na festa da posse do novo capitão de milícias e do novo sargento de milícias, colocados pela rainha na milícia de Santa Comba, o rapaz não fazia a mínima ideia de tudo isso.

Mas quando ambos se afastaram, por serem constantemente solicitados por outros convivas, Feliciano já sabia que aquele tinha sido o momento mais feliz e o mais importante da sua vida, até ali.

E, de perto ou de longe, não tornou a perder Ana Emília de vista, em toda a noite, até o serão acabar.

A.C.R.

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