2006/01/20
Memórias da minha Aldeia (4)
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Feliciano apressou-se no dia seguinte para chegar cedo ao solar dos senhores fidalgos de Santiago, porque o capitão lhe pedira que aparecesse o mais cedo possível, que precisaria dele para lhe dar uma ajuda nalguns dos últimos arranjos preparatórios.
Além de ser necessário – dissera-lhe também com o melhor sorriso – que os vissem juntos o mais possível, para “se habituarem a respeitar-te”.
Feliciano ficou lisonjeado, mas não estranhou muito, porque já começara a perceber de fidalgos, acreditava.
O pai tinha-lhe explicado um dia…
“Têm sempre qualquer intenção escondida na manga…” – dissera-lhe o pai, sem explicar mais que isso, mas sorrindo, com um ar de amizade como nunca lha exprimira com aquela simplicidade.
E Feliciano não pensou mais nisso, sobretudo porque a surpresa da festa ultrapassou tudo o mais.
Principalmente a partir do momento em que deu por entrar na sala, onde a recepção decorria, a rapariga que lhe pareceu a mais linda que alguma vez tinha visto e, logo que lha apresentaram, com o nome mais condizente que jamais soara aos seus ouvidos, Ana Emília.
Na verdade, sentiu-se completamente tolo ao murmurar-lhe o seu próprio nome, Feliciano, em troca do dela que fora dito sem nenhum constrangimento, Ana Emília como se o cantasse.
De tal modo que ela, de novo sem qualquer embaraço, teve de pedir-lhe que repetisse o dele.
“Ah! É o novo sargento da milícia! Tão novo… vejam lá!”
“Já hoje o vimos passar a cavalo, à nossa porta. Não vimos pai?” – perguntou, sem esperar resposta do pai, que entrara com ela, e sem tirar os olhos do rapaz que começava a parecer-lhe um verdadeiro “study case” como depois se diria.
“Onde?” – disse Feliciano, olhando-a de frente, pela primeira vez.
“Na Folgosa, onde havia de ser?” – como se ele tivesse obrigação ou não pudesse deixar de saber onde moravam.
- Desculpa! Mas não conheço ainda os nomes das povoações… Só cheguei anteontem – respondeu Feliciano, já em taco a taco.
- Andas bem a cavalo! – sorriu-lhe Ana Emília -. Sabes que conheço bem aquele cavalo?... Montei-o já algumas vezes, de empréstimo, quando o pai não me tinha ainda comprado o que agora tenho.
Aquilo começava a agradar a Feliciano e a pô-lo à vontade, só porque ela lhe devolvera, sem a mais pequena hesitação ou cerimónia, o “tu” com que ousara impensadamente tratá-la.
“Em Vagos não é tão fácil. Será sempre assim na Beira?” – interrogou-se. – “Dizem que foi cá inventada a igualdade democrática…”
Feliciano só depois da festa se apercebeu de com quem se tinha metido.
Disseram-lhe que a rapariga tinha um feitio tramado, conhecido em dez léguas ao redor. Chamavam-lhe até a “mulher eléctrica”, quando coisa de que mal começava a falar-se na ficção científica do tempo, era de electricidade.
O pai de Ana Emília, depois de dois ou três proprietários de casas fidalgas da freguesia e de meia dúzia de freguesias à volta, era o maior proprietário do concelho, com a vantagem de as suas propriedades andarem bem geridas e as dos fidalgos não, nem mais ou menos.
Ele nascera do outro lado da Serra, entre Belmonte e a Covilhã. Como tinha vindo ali parar, a esta encosta virada ao mar e ao Caramulo e Buçaco?
Tinham-no chamado para dirigir a construção da ponte sobre o Alva, na Senhora do Desterro, por onde ficara a passar o caminho mais curto para se ir de Viseu à Covilhã, pelo alto da Torre, que viria a ser construída no tempo de D. João VI Rei, para completar com nove metros, em altura, os que faltavam à Serra para ter o número redondo de dois mil. Forte capricho! Mania de grandezas a qualquer preço, o ridículo incluído…
Um dia, acabada a ponte do Desterro, montou o fazedor de pontes a cavalo e foi dar uma volta pela zona baixa do concelho que quase não conhecia.
Resolveu seguir um pequeno curso de água a que chamavam "a Ribeira" e também rio Seia, disseram-lhe, e a certo ponto teve de atravessá-lo a vau, porque o tabuleiro da ponte que ali havia tinha sido varrido no último Inverno, por uma cheia fortíssima, como lhe explicaram uns trabalhadores do grupo de mais de vinte que ali andavam a tentar pôr pedra sobre pedra, com as que a cheia mudara de sítio.
Praticamente, só tinham resistido, e continuavam no seu lugar, os velhos arcos da velhíssima ponte romana, romana mesmo, que ali teria sido construída havia mais de 1500 anos.
Passou-se o que contei sobre a vinda do pai de Ana Emília para este lado da Serra, por 1760.
A.C.R.
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Feliciano apressou-se no dia seguinte para chegar cedo ao solar dos senhores fidalgos de Santiago, porque o capitão lhe pedira que aparecesse o mais cedo possível, que precisaria dele para lhe dar uma ajuda nalguns dos últimos arranjos preparatórios.
Além de ser necessário – dissera-lhe também com o melhor sorriso – que os vissem juntos o mais possível, para “se habituarem a respeitar-te”.
Feliciano ficou lisonjeado, mas não estranhou muito, porque já começara a perceber de fidalgos, acreditava.
O pai tinha-lhe explicado um dia…
“Têm sempre qualquer intenção escondida na manga…” – dissera-lhe o pai, sem explicar mais que isso, mas sorrindo, com um ar de amizade como nunca lha exprimira com aquela simplicidade.
E Feliciano não pensou mais nisso, sobretudo porque a surpresa da festa ultrapassou tudo o mais.
Principalmente a partir do momento em que deu por entrar na sala, onde a recepção decorria, a rapariga que lhe pareceu a mais linda que alguma vez tinha visto e, logo que lha apresentaram, com o nome mais condizente que jamais soara aos seus ouvidos, Ana Emília.
Na verdade, sentiu-se completamente tolo ao murmurar-lhe o seu próprio nome, Feliciano, em troca do dela que fora dito sem nenhum constrangimento, Ana Emília como se o cantasse.
De tal modo que ela, de novo sem qualquer embaraço, teve de pedir-lhe que repetisse o dele.
“Ah! É o novo sargento da milícia! Tão novo… vejam lá!”
“Já hoje o vimos passar a cavalo, à nossa porta. Não vimos pai?” – perguntou, sem esperar resposta do pai, que entrara com ela, e sem tirar os olhos do rapaz que começava a parecer-lhe um verdadeiro “study case” como depois se diria.
“Onde?” – disse Feliciano, olhando-a de frente, pela primeira vez.
“Na Folgosa, onde havia de ser?” – como se ele tivesse obrigação ou não pudesse deixar de saber onde moravam.
- Desculpa! Mas não conheço ainda os nomes das povoações… Só cheguei anteontem – respondeu Feliciano, já em taco a taco.
- Andas bem a cavalo! – sorriu-lhe Ana Emília -. Sabes que conheço bem aquele cavalo?... Montei-o já algumas vezes, de empréstimo, quando o pai não me tinha ainda comprado o que agora tenho.
Aquilo começava a agradar a Feliciano e a pô-lo à vontade, só porque ela lhe devolvera, sem a mais pequena hesitação ou cerimónia, o “tu” com que ousara impensadamente tratá-la.
“Em Vagos não é tão fácil. Será sempre assim na Beira?” – interrogou-se. – “Dizem que foi cá inventada a igualdade democrática…”
Feliciano só depois da festa se apercebeu de com quem se tinha metido.
Disseram-lhe que a rapariga tinha um feitio tramado, conhecido em dez léguas ao redor. Chamavam-lhe até a “mulher eléctrica”, quando coisa de que mal começava a falar-se na ficção científica do tempo, era de electricidade.
O pai de Ana Emília, depois de dois ou três proprietários de casas fidalgas da freguesia e de meia dúzia de freguesias à volta, era o maior proprietário do concelho, com a vantagem de as suas propriedades andarem bem geridas e as dos fidalgos não, nem mais ou menos.
Ele nascera do outro lado da Serra, entre Belmonte e a Covilhã. Como tinha vindo ali parar, a esta encosta virada ao mar e ao Caramulo e Buçaco?
Tinham-no chamado para dirigir a construção da ponte sobre o Alva, na Senhora do Desterro, por onde ficara a passar o caminho mais curto para se ir de Viseu à Covilhã, pelo alto da Torre, que viria a ser construída no tempo de D. João VI Rei, para completar com nove metros, em altura, os que faltavam à Serra para ter o número redondo de dois mil. Forte capricho! Mania de grandezas a qualquer preço, o ridículo incluído…
Um dia, acabada a ponte do Desterro, montou o fazedor de pontes a cavalo e foi dar uma volta pela zona baixa do concelho que quase não conhecia.
Resolveu seguir um pequeno curso de água a que chamavam "a Ribeira" e também rio Seia, disseram-lhe, e a certo ponto teve de atravessá-lo a vau, porque o tabuleiro da ponte que ali havia tinha sido varrido no último Inverno, por uma cheia fortíssima, como lhe explicaram uns trabalhadores do grupo de mais de vinte que ali andavam a tentar pôr pedra sobre pedra, com as que a cheia mudara de sítio.
Praticamente, só tinham resistido, e continuavam no seu lugar, os velhos arcos da velhíssima ponte romana, romana mesmo, que ali teria sido construída havia mais de 1500 anos.
Passou-se o que contei sobre a vinda do pai de Ana Emília para este lado da Serra, por 1760.
A.C.R.
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