2006/01/27
Memórias da minha Aldeia (9)
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Em 1808, dezasseis anos depois de nomeado sargento de milícias – tinha ele, pois, já trinta e cinco anos – Feliciano Cruz Fonseca foi pelo Rei Dom João VI, porque D. Maria I fora entretanto declarada incurável, promovido a Capitão de Milícias, para assumir a chefia e toda a responsabilidade da milícia de Santa Comba (de Seia). Em documento com o selo real e assinado pelo Rei, tal qual o da sua nomeação como sargento de milícias, mas então o senhor Dom João sendo Regente apenas.
Acontecia, porém, que as coisas estavam em toda a Europa muito mais negras que em 1792 e Portugal mais minado que nunca. Isto não se notava muito em 1792, ainda que desde 1780 Pina Manique fosse Intendente-Geral da Polícia, com poderes muito especiais, sinal de que maçons e estrangeiros já então começavam a dar preocupações e cuidados ao Estado, isto é, à Coroa.
Mas uma coisa parecia certa, o País estava militarmente melhor preparado e, se Franceses ou Espanhóis viessem por aí adentro, acreditavam pelo menos os milicianos de Santa Comba, fiados em si mesmos e no que sabiam ou lhes palpitava das demais milícias das Beiras, não passariam com certeza da Guarda ou, na pior hipótese, do Alto do Buçaco.
Mas também era certo – mas isso, certo mesmo – embora não estivesse então minimamente divulgado, que nas mais altas Esferas se começara a pôr, meses antes da I Invasão Francesa, a hipótese de, pelo pior, a corte se acolher ao Brasil, podendo ter datado dessa altura os primeiros preparativos nesse sentido, visto como seriam formidáveis os meios a empregar para o efeito, isto é, para pôr a recato os mais importantes órgãos da soberania nacional.
Estaria então dado, pensava criticamente o próprio Rei, sem revelá-lo, o primeiro passo para o reconhecimento ou a interiorização da certeza de que o Brasil seria um dia independente.
Aliás, já em 1792, fora o Tiradentes condenado à morte pelo crime de chefiar a primeira conspiração pela independência do Brasil, a chamada Inconfidência Mineira.
Mas cair nas mãos de Franceses bárbaros, de Espanhóis estúpidos e fúteis ou de Ingleses safados e prepotentes é que nunca, jamais, nunca! – decidira já o Rei.
Ninguém sabia por onde a II Invasão entraria, mas certa todos a consideravam – proclamava insistentemente aos seus auditórios o novo Capitão-General das Milícias das Beiras, o nosso conhecido fidalgo de Santiago.
Em 1792, ainda se pensava – lembrava ele – que a invasão seria de Ingleses e, nesse caso, naturalmente por mar, a título de ocuparem posições decisivas, na costa portuguesa, para instalarem bases navais que lhes assegurassem o domínio do Atlântico e Mediterrâneo.
Mas, entretanto, os Ingleses tinham quase varrido os Franceses desses mares e tal perigo esfumara-se. Desde 1805, mais ou menos por aí, consumada a vitória em Trafalgar dos Ingleses, o que havia a temer em Portugal eram as invasões dos Franceses, necessariamente por terra, para que Portugal, com o Brasil, deixasse de ser fornecedor dos anglos em alimentos e vinho do Porto, roupas e minérios, como o volfrâmio… por causa do urânio, tal qual cento e cinquenta anos depois…
Também não era de pôr de parte a invasão pelos Espanhóis – estúpidos e desorientados tal qual cata-ventos, como sempre – os quais cada vez mais pareciam dispostos a sujeitar-se à aliança com os Francos, jacobinos “iluminados”, na falta de um grande estadista, em Portugal, que lhes abrisse os olhos em rápidos rápidos passeios diplomáticos à fronteira.
Como agora também recordava aos seus auditórios o novo Capitão-General das companhias de Milícias do Centro, o fidalgo padrinho de Feliciano, com sua mulher, a Senhora Dona Mariana de Alarcão (ex-Távora, vagamente), era sua a glória de ter lembrado aos superiores hierárquicos a necessidade imperativa de inverter radicalmente a ordem estratégica das tropas do seu comando.
Viradas na direcção de Viseu e do mar, para enfrentar os Ingleses que pela certa viriam do lado da Figueira ou de Aveiro, fora necessário voltar afanosamente os dispositivos tácticos para o lado de Almeida – Vilar Formoso – Guarda.
Mais flagrante isso no caso da milícia de Santa Comba, que guardava uma posição de passagem altamente estratégica.
Pelo “telégrafo” de lumes acesos durante a noite, nos altos dos montes de Santa Comba até Coimbra, sistema revelado pelos Mouros na Península, mas que era o orgulho da organização miliciana do País, por o ter levado à perfeição, o então ainda capitão da companhia de milícias de Santa Comba consultou as chefias em Coimbra. Para quê? Para o autorizarem a mudar os dispositivos da sua companhia do seu sítio na margem esquerda do rio Seia, à velha Ponte Romana da Folgosa, para mesmo em frente, mas na margem direita.
Como ele explicou às chefias, normalmente um pouco tardas, era indispensável esperar o inimigo com o rio entre este e os Portugueses e trocar-lhe, pois, as voltas, visto que antes se imaginava que o inimigo viesse de poente e agora era certo que viria de nascente.
O brilho e oportunidade da proposta, a rapidez de raciocínio do fidalgo, o seu conhecimento actualizado, que também revelava, dos meandros altamente volúveis da política internacional do País e da Europa, valeram sem dúvida alguma ao Capitão de Milícias de Santa Comba a sua promoção a Capitão-General das Milícias do Centro de Portugal Continental. Passando as Chefias, para promovê-lo, por cima de maiores antiguidades, melhores currículos e mais habilitações académicas de muitos outros Capitães de Milícias.
Mas eram tempos de guerra, e em tempos de guerra não se afiam armas, disse ele ao seu subordinado, afilhado de casamento e velho amigo Feliciano. E, declarou o novo Capitão-General ainda não investido, praticando o mesmo princípio que considerava absolutamente justificado para o seu próprio caso, levantou-se, assumiu gravemente ar da maior solenidade e declarou comovido.
- Vista a emergência e os teus enormes méritos, senhor Sargento de Milícias, vou propor esta noite pelo telégrafo, para Coimbra, que sejas tu nomeado o próximo capitão desta Milícia de Santa Comba, em minha substituição.
- Bravo! Bravo! – gritaram os milicianos ali presentes.
Passados alguns dias, poucos, Feliciano recebeu os novos galões e com eles a notícia dalguns privilégios de nobreza, vitalícios mas não hereditários, que automaticamente lhe eram concedidos com a promoção.
A.C.R.
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Em 1808, dezasseis anos depois de nomeado sargento de milícias – tinha ele, pois, já trinta e cinco anos – Feliciano Cruz Fonseca foi pelo Rei Dom João VI, porque D. Maria I fora entretanto declarada incurável, promovido a Capitão de Milícias, para assumir a chefia e toda a responsabilidade da milícia de Santa Comba (de Seia). Em documento com o selo real e assinado pelo Rei, tal qual o da sua nomeação como sargento de milícias, mas então o senhor Dom João sendo Regente apenas.
Acontecia, porém, que as coisas estavam em toda a Europa muito mais negras que em 1792 e Portugal mais minado que nunca. Isto não se notava muito em 1792, ainda que desde 1780 Pina Manique fosse Intendente-Geral da Polícia, com poderes muito especiais, sinal de que maçons e estrangeiros já então começavam a dar preocupações e cuidados ao Estado, isto é, à Coroa.
Mas uma coisa parecia certa, o País estava militarmente melhor preparado e, se Franceses ou Espanhóis viessem por aí adentro, acreditavam pelo menos os milicianos de Santa Comba, fiados em si mesmos e no que sabiam ou lhes palpitava das demais milícias das Beiras, não passariam com certeza da Guarda ou, na pior hipótese, do Alto do Buçaco.
Mas também era certo – mas isso, certo mesmo – embora não estivesse então minimamente divulgado, que nas mais altas Esferas se começara a pôr, meses antes da I Invasão Francesa, a hipótese de, pelo pior, a corte se acolher ao Brasil, podendo ter datado dessa altura os primeiros preparativos nesse sentido, visto como seriam formidáveis os meios a empregar para o efeito, isto é, para pôr a recato os mais importantes órgãos da soberania nacional.
Estaria então dado, pensava criticamente o próprio Rei, sem revelá-lo, o primeiro passo para o reconhecimento ou a interiorização da certeza de que o Brasil seria um dia independente.
Aliás, já em 1792, fora o Tiradentes condenado à morte pelo crime de chefiar a primeira conspiração pela independência do Brasil, a chamada Inconfidência Mineira.
Mas cair nas mãos de Franceses bárbaros, de Espanhóis estúpidos e fúteis ou de Ingleses safados e prepotentes é que nunca, jamais, nunca! – decidira já o Rei.
Ninguém sabia por onde a II Invasão entraria, mas certa todos a consideravam – proclamava insistentemente aos seus auditórios o novo Capitão-General das Milícias das Beiras, o nosso conhecido fidalgo de Santiago.
Em 1792, ainda se pensava – lembrava ele – que a invasão seria de Ingleses e, nesse caso, naturalmente por mar, a título de ocuparem posições decisivas, na costa portuguesa, para instalarem bases navais que lhes assegurassem o domínio do Atlântico e Mediterrâneo.
Mas, entretanto, os Ingleses tinham quase varrido os Franceses desses mares e tal perigo esfumara-se. Desde 1805, mais ou menos por aí, consumada a vitória em Trafalgar dos Ingleses, o que havia a temer em Portugal eram as invasões dos Franceses, necessariamente por terra, para que Portugal, com o Brasil, deixasse de ser fornecedor dos anglos em alimentos e vinho do Porto, roupas e minérios, como o volfrâmio… por causa do urânio, tal qual cento e cinquenta anos depois…
Também não era de pôr de parte a invasão pelos Espanhóis – estúpidos e desorientados tal qual cata-ventos, como sempre – os quais cada vez mais pareciam dispostos a sujeitar-se à aliança com os Francos, jacobinos “iluminados”, na falta de um grande estadista, em Portugal, que lhes abrisse os olhos em rápidos rápidos passeios diplomáticos à fronteira.
Como agora também recordava aos seus auditórios o novo Capitão-General das companhias de Milícias do Centro, o fidalgo padrinho de Feliciano, com sua mulher, a Senhora Dona Mariana de Alarcão (ex-Távora, vagamente), era sua a glória de ter lembrado aos superiores hierárquicos a necessidade imperativa de inverter radicalmente a ordem estratégica das tropas do seu comando.
Viradas na direcção de Viseu e do mar, para enfrentar os Ingleses que pela certa viriam do lado da Figueira ou de Aveiro, fora necessário voltar afanosamente os dispositivos tácticos para o lado de Almeida – Vilar Formoso – Guarda.
Mais flagrante isso no caso da milícia de Santa Comba, que guardava uma posição de passagem altamente estratégica.
Pelo “telégrafo” de lumes acesos durante a noite, nos altos dos montes de Santa Comba até Coimbra, sistema revelado pelos Mouros na Península, mas que era o orgulho da organização miliciana do País, por o ter levado à perfeição, o então ainda capitão da companhia de milícias de Santa Comba consultou as chefias em Coimbra. Para quê? Para o autorizarem a mudar os dispositivos da sua companhia do seu sítio na margem esquerda do rio Seia, à velha Ponte Romana da Folgosa, para mesmo em frente, mas na margem direita.
Como ele explicou às chefias, normalmente um pouco tardas, era indispensável esperar o inimigo com o rio entre este e os Portugueses e trocar-lhe, pois, as voltas, visto que antes se imaginava que o inimigo viesse de poente e agora era certo que viria de nascente.
O brilho e oportunidade da proposta, a rapidez de raciocínio do fidalgo, o seu conhecimento actualizado, que também revelava, dos meandros altamente volúveis da política internacional do País e da Europa, valeram sem dúvida alguma ao Capitão de Milícias de Santa Comba a sua promoção a Capitão-General das Milícias do Centro de Portugal Continental. Passando as Chefias, para promovê-lo, por cima de maiores antiguidades, melhores currículos e mais habilitações académicas de muitos outros Capitães de Milícias.
Mas eram tempos de guerra, e em tempos de guerra não se afiam armas, disse ele ao seu subordinado, afilhado de casamento e velho amigo Feliciano. E, declarou o novo Capitão-General ainda não investido, praticando o mesmo princípio que considerava absolutamente justificado para o seu próprio caso, levantou-se, assumiu gravemente ar da maior solenidade e declarou comovido.
- Vista a emergência e os teus enormes méritos, senhor Sargento de Milícias, vou propor esta noite pelo telégrafo, para Coimbra, que sejas tu nomeado o próximo capitão desta Milícia de Santa Comba, em minha substituição.
- Bravo! Bravo! – gritaram os milicianos ali presentes.
Passados alguns dias, poucos, Feliciano recebeu os novos galões e com eles a notícia dalguns privilégios de nobreza, vitalícios mas não hereditários, que automaticamente lhe eram concedidos com a promoção.
A.C.R.
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