2006/02/03
Memórias da minha Aldeia (13)
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Afinal, os habitantes daquelas aldeias – Ervedal da Beira, Vila Franca da Beira, Aldeia Formosa, Seixo da Beira, Felgueira Velha - tinham tirado dura vingança dos horrores ali cometidos pelos bandos armados gauleses.
Os que escaparam à chacina, aos saques, às violações, à tortura, aos incêndios, a toda a sorte de destruições, conseguiram reunir-se e armar-se para, na mesma noite do dia de todas as vilanias, surpreenderem os Franceses a descansar, dormindo sem pesadelos, incluindo as supostas sentinelas, que terão sido os primeiros abatidos, e logo liquidaram quantos puderam dos restantes, apenas deixando fugir alguns dos que acordaram a tempo.
Boa parte destes foram vistos passar, em fuga, pelas sentinelas da Pedra Furada – a que já chamámos Cova da Moura – as quais sentinelas, do seu esconderijo, atiraram a matar, deixando estendidos, no areal em frente do Ribeiro Velho, pelo menos dez soldados franceses, logo sepultados ali mesmo, suficientemente fundo para só cinquenta anos depois as suas ossadas terem sido postas a descoberto por uma grande enchente do rio Seia.
No exterior da Pedra Furada, ainda são bem visíveis as marcas dos tiros dos Franceses contra os milicianos escondidos lá dentro. Mas os milicianos escaparam a tempo do buraco-armadilha em que tinham estado escondidos e a tempo procuraram outro sítio para melhor atirarem sobre os fugitivos franceses, que, sem perceberem então donde eram alvejados, continuaram a atirar cada vez mais desesperadamente para a Pedra Furada enquanto os milicianos os apanhavam pelas costas.
Daqui terão escapado ainda dois ou três que, na fuga, utilizaram o caminho da Folgosa que lhes pareceu deserta. Viram uma casa maior, a casa solarenga dos Calheiros, e, cautelosamente, entraram, arrombando a porta. Correram tudo, roubaram o mais que puderam e refastelaram-se com os vinhos da adega. Completamente bêbados, pareceu-lhes ouvir barulho. Foram ver e deparou-se-lhes um velho numa cadeira de rodas, naturalmente farto de esperar. O primeiro tiro deles não demorou mais que alguns segundos e o velho limitou-se a encostar a cabeça no espaldar. Outro atirador não quis mesmo assim poupar segundo tiro, inútil. O velho apenas descompôs ligeiramente a sua postura. Mas não o ligeiríssimo sorriso na boca, ainda de troça pelos truques com que enganara os Franceses...
Nas duas pontes a montante da Pedra Furada, a da Folgosa e a de Santiago, as sentinelas tiveram também oportunidade de atirar sobre os escapados à fúria dos atiradores da Cova da Moura, os quais continuaram a fugir sem olhar para onde, arteiros agora apenas para meter-se nas bocas dos lobos.
Feliciano, apesar de todos os sucessos tácticos das milícias, a sua e a do Ervedal, não perdeu a cabeça e só no dia seguinte, ao fim da tarde, autorizou o regresso às aldeias, mas depois apenas da chegada dos mensageiros com notícias também tranquilizadoras. E mesmo assim conservando junto às pontes as sentinelas da primeira madrugada, agora já rendidas e reforçadas.
Foram muito louvadas na altura as companhias de milícias de Santa Comba, sob o comando de Feliciano, e a do Ervedal. Aquela pelo modo rigoroso como planeou e executou a sua acção; e esta por ter conseguido, com grande astúcia e decisão, reagir à surpresa e derrota iniciais. Fê-lo duma forma que terá estimulado, dali até à fronteira, e para lá, muitos outros actos de vingança, ou de ataque e contra-ataque, que em poucos dias tornaram a vida muito mais difícil aos Franceses e os convenceram definitivamente de que tinham deixado de estar em país conquistado. Dali em diante, digamos, os Franceses em fuga passaram do ataque por sistema à defensiva sistemática. Ao medo paralisante.
Mas nos livros e documentos não se encontra nada sobre aqueles factos duma longa semana, nas nossas aldeias. Como se quisessem esconder tais episódios da resistência portuguesa ao invasor, que alguém poderia considerar bárbaros, como produtos da suposta barbárie nacional congénita.
É também curioso que sejam muito raros e ténues na memória popular os vestígios dos mesmos acontecimentos. Como se essa memória os tivesse varrido e enterrado ou dissimulado, movida por aquele mesmo pudor ou remorso.
Aliás, isto da memória colectiva, em Portugal, tem variações e altos e baixos muito surpreendentes.
Não vejo, por exemplo, praticamente registo algum dos trezentos e tantos anos de domínio romano, mais de quatrocentos, no lendário do povo português. Há muitos monumentos romanos de pedra, mas não aparecem ligados no nosso imaginário corrente à vida e acontecimentos do povo que aqui os construiu.
Não se pode dizer o mesmo dos Mouros, que tendo deixado menos monumentos, continuaram porém muito inseridos nas nossas lendas e imaginário popular e até em versões populares da História efectivamente acontecida. Porque então Portugal já era Portugal, nos últimos 150 anos da presença moura aqui?
Os Castelhanos e Espanhóis, por seu lado, que tantas vezes nos invadiram – e por isso tanto condicionaram o nosso consciente e subconsciente de ódios e desconfianças – ficaram à partida incapazes de desenvolver no nosso imaginário papel mais simpático.
Já é mais difícil de interpretar a quase total ausência dos Descobrimentos e Expansão no nosso imaginário/memória popular.
Estarei enganado?
Talvez, nisto, eu seja apenas um beirão a falar de beirões, isto é, sem conhecimento razoável da memória colectiva nas outras regiões de Portugal.
A.C.R.
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Afinal, os habitantes daquelas aldeias – Ervedal da Beira, Vila Franca da Beira, Aldeia Formosa, Seixo da Beira, Felgueira Velha - tinham tirado dura vingança dos horrores ali cometidos pelos bandos armados gauleses.
Os que escaparam à chacina, aos saques, às violações, à tortura, aos incêndios, a toda a sorte de destruições, conseguiram reunir-se e armar-se para, na mesma noite do dia de todas as vilanias, surpreenderem os Franceses a descansar, dormindo sem pesadelos, incluindo as supostas sentinelas, que terão sido os primeiros abatidos, e logo liquidaram quantos puderam dos restantes, apenas deixando fugir alguns dos que acordaram a tempo.
Boa parte destes foram vistos passar, em fuga, pelas sentinelas da Pedra Furada – a que já chamámos Cova da Moura – as quais sentinelas, do seu esconderijo, atiraram a matar, deixando estendidos, no areal em frente do Ribeiro Velho, pelo menos dez soldados franceses, logo sepultados ali mesmo, suficientemente fundo para só cinquenta anos depois as suas ossadas terem sido postas a descoberto por uma grande enchente do rio Seia.
No exterior da Pedra Furada, ainda são bem visíveis as marcas dos tiros dos Franceses contra os milicianos escondidos lá dentro. Mas os milicianos escaparam a tempo do buraco-armadilha em que tinham estado escondidos e a tempo procuraram outro sítio para melhor atirarem sobre os fugitivos franceses, que, sem perceberem então donde eram alvejados, continuaram a atirar cada vez mais desesperadamente para a Pedra Furada enquanto os milicianos os apanhavam pelas costas.
Daqui terão escapado ainda dois ou três que, na fuga, utilizaram o caminho da Folgosa que lhes pareceu deserta. Viram uma casa maior, a casa solarenga dos Calheiros, e, cautelosamente, entraram, arrombando a porta. Correram tudo, roubaram o mais que puderam e refastelaram-se com os vinhos da adega. Completamente bêbados, pareceu-lhes ouvir barulho. Foram ver e deparou-se-lhes um velho numa cadeira de rodas, naturalmente farto de esperar. O primeiro tiro deles não demorou mais que alguns segundos e o velho limitou-se a encostar a cabeça no espaldar. Outro atirador não quis mesmo assim poupar segundo tiro, inútil. O velho apenas descompôs ligeiramente a sua postura. Mas não o ligeiríssimo sorriso na boca, ainda de troça pelos truques com que enganara os Franceses...
Nas duas pontes a montante da Pedra Furada, a da Folgosa e a de Santiago, as sentinelas tiveram também oportunidade de atirar sobre os escapados à fúria dos atiradores da Cova da Moura, os quais continuaram a fugir sem olhar para onde, arteiros agora apenas para meter-se nas bocas dos lobos.
Feliciano, apesar de todos os sucessos tácticos das milícias, a sua e a do Ervedal, não perdeu a cabeça e só no dia seguinte, ao fim da tarde, autorizou o regresso às aldeias, mas depois apenas da chegada dos mensageiros com notícias também tranquilizadoras. E mesmo assim conservando junto às pontes as sentinelas da primeira madrugada, agora já rendidas e reforçadas.
Foram muito louvadas na altura as companhias de milícias de Santa Comba, sob o comando de Feliciano, e a do Ervedal. Aquela pelo modo rigoroso como planeou e executou a sua acção; e esta por ter conseguido, com grande astúcia e decisão, reagir à surpresa e derrota iniciais. Fê-lo duma forma que terá estimulado, dali até à fronteira, e para lá, muitos outros actos de vingança, ou de ataque e contra-ataque, que em poucos dias tornaram a vida muito mais difícil aos Franceses e os convenceram definitivamente de que tinham deixado de estar em país conquistado. Dali em diante, digamos, os Franceses em fuga passaram do ataque por sistema à defensiva sistemática. Ao medo paralisante.
Mas nos livros e documentos não se encontra nada sobre aqueles factos duma longa semana, nas nossas aldeias. Como se quisessem esconder tais episódios da resistência portuguesa ao invasor, que alguém poderia considerar bárbaros, como produtos da suposta barbárie nacional congénita.
É também curioso que sejam muito raros e ténues na memória popular os vestígios dos mesmos acontecimentos. Como se essa memória os tivesse varrido e enterrado ou dissimulado, movida por aquele mesmo pudor ou remorso.
Aliás, isto da memória colectiva, em Portugal, tem variações e altos e baixos muito surpreendentes.
Não vejo, por exemplo, praticamente registo algum dos trezentos e tantos anos de domínio romano, mais de quatrocentos, no lendário do povo português. Há muitos monumentos romanos de pedra, mas não aparecem ligados no nosso imaginário corrente à vida e acontecimentos do povo que aqui os construiu.
Não se pode dizer o mesmo dos Mouros, que tendo deixado menos monumentos, continuaram porém muito inseridos nas nossas lendas e imaginário popular e até em versões populares da História efectivamente acontecida. Porque então Portugal já era Portugal, nos últimos 150 anos da presença moura aqui?
Os Castelhanos e Espanhóis, por seu lado, que tantas vezes nos invadiram – e por isso tanto condicionaram o nosso consciente e subconsciente de ódios e desconfianças – ficaram à partida incapazes de desenvolver no nosso imaginário papel mais simpático.
Já é mais difícil de interpretar a quase total ausência dos Descobrimentos e Expansão no nosso imaginário/memória popular.
Estarei enganado?
Talvez, nisto, eu seja apenas um beirão a falar de beirões, isto é, sem conhecimento razoável da memória colectiva nas outras regiões de Portugal.
A.C.R.
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