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2006/02/09

Memórias da minha Aldeia (15) 

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Muito simplesmente, Feliciano não tinha ainda percebido – “não realizara ainda” – que a intranquilidade e a inquietação estavam instaladas para muitos anos.

Mesmo recolhido na sua aldeia, a sua, de sua mulher, dos filhos e avós (em breve coexistiriam duas gerações de avós), a intranquilidade e a inquietação não deixaram de lá ir chegando com certa regularidade. Através das gazetas, principalmente. Vinham elas sobretudo de Lisboa, por vezes do Porto, cheias sempre de notícias por vezes do Porto, mas muito mais largamente de Lisboa, Lisboa que não deixava esquecer o óbvio: que era lá o foco dominante da inquietação e da intranquilidade.

Ah! Se fosse possível fazer tábua rasa de Lisboa!...

Quantas vezes o pensava, para logo se corrigir.

“Mas, se não fosse Lisboa, para onde iria o milho, o feijão, o trigo, as batatas, o mel, o queijo, a manteiga, o vinho, a carne, as castanhas, o azeite, o linho, mesmo às vezes o feijão verde, que as terras produzem? E os trabalhadores a quem se paga para as cultivarem e fazerem o queijo, o vinho, a aguardente, a jeropiga, as compotas, o azeite, os panos de linho, como viveriam?...

Lisboa não era má de todo, ao fim de contas; os lisboetas é que seriam maus de roer e ainda piores de tragar…

Porque, regressado de Espanha e inteiramente recuperado do seu ferimento, dedicou-se à exploração intensiva das terras, incluindo as novas que fora adquirindo, com vista à promoção activa em mercados mais vastos, Lisboa e Coimbra, dos seus produtos que os terrenos e os ares pareciam tornar sempre dos mais apetitosos.

Muitas estradas tinham sido abertas ou melhoradas nos últimos anos, para circulação sobretudo dos exércitos e seus trens, que agora eram aproveitadas para circulação corrente de pessoas e mercadorias.

Fora essa facilidade o maior estímulo para que se lançasse à aventura de explorar os mercados de Coimbra e Lisboa – do Porto às vezes, se calhava – com resultados aliás bastante além das expectativas, durante uns relativamente longos primeiros tempos.

Valera-se basicamente dos seus conhecimentos de táctica e estratégia militares e de História das guerras.

Foram bons anos de lucros que enterrou em novas terras.

Todos diziam que tinha mesmo um jeito apurado para a agricultura e para os negócios. E ele com frequência respondia, à maneira dum autor militar de há uns dois mil anos, que o capitão lhe revelara, que a agricultura é o que é, ou seja o que Deus quer, mas que os negócios são apenas a guerra por outros meios.

A verdade é que, com o seu jeito para os negócios, já pudera até mandar estudar para Coimbra os dois filhos mais velhos.

A propósito, um dos mestres dos filhos, em Coimbra, daquele que escolhera direito, mestre a quem o rapaz um dia contara a história do pai, sobre os negócios e a guerra, pedira ao aluno que lho apresentasse um dia que ele viesse a Coimbra, queria conhecer pessoa que imaginanava tão surpreendente.

Feliciano, por sua vez, não ficou surpreendido.

Disse apenas: “Hei-de lá ir um dia que me calhe. Fico satisfeito. Deve ser homem afinado, o teu professor…”

Mas não se apressou.

Quando fosse a Coimbra…

Não, não para matricular as duas raparigas do meio, a terceira e a quarta dos filhos, em idade, que raparigas não precisavam de estudar pois que eram raparigas, destinadas a casar, com elas não haveria grandes despesas, a não ser o enxoval e o dote mais as bodas.

Um balúrdio mesmo assim, em todo o caso.

Os dois mais novos – ao todo seis – eram rapazes, mas ainda correria muito tempo até saber-se o que fariam. Estudos? Negócios?... Gostaria que um fosse padre e um dia bispo, mas…

O dinheiro, na altura própria, não faltaria e havia de chegar para tudo, incluindo vencer as piores resistências dos poderes instalados na Universidade, que desde a primeira hora dos filhos em Coimbra perfeitamente pressentira.

Com quem aprendera a pensar como um burguês?

Com quem aprendera a sua fé grande e cansativa no dinheiro?

Quem lhe ensinara, que o dinheiro “move montanhas”?

Estaria assim tão mudado? – pensava consigo cada vez mais frequentemente.

Não seria isso contaminação de pedreiros-livres e jacobinos, que proliferavam cada vez mais e que se exprimiam cada vez mais alto e sem temor?

Ou fora pelo sogro que lhe chegara o contágio da loucura pelo dinheiro?

Fora também por Alarcão, o seu ídolo nas milícias, o seu padrinho amigo e mestre, fora por ele que tudo se completara, fazendo de si um burguês, como o Prior já insinuara?

Ou fora contaminação de mil lições e maus exemplos de França?

Ou seria do ódio com que a “ocupação” inglesa de Portugal estava a corromper os melhores Portugueses?

A.C.R.

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