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2006/02/10

Memórias da minha Aldeia (16) 

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Mais ainda que pelas gazetas, a partir de certa altura as novidades políticas portadoras de inquietação e intranquilidade chegavam a Feliciano pelo coronel Alarcão.

Este fizera toda a Guerra Peninsular, até à vitória final de Wellington em Tolosa, 1814, e depois em Waterloo, 1815, na Bélgica.

É desmobilizado pouco depois do regresso a Portugal, no posto de coronel, já com Napoleão prisioneiro na Ilha de Santa Helena.

Feliciano esteve sem vê-lo passou de três anos, embora com muitas notícias dele pela família, nesse entretanto, e três ou quatro cartas trocadas directamente entre os dois, por motivos principalmente profissionais ou muito pessoais.

Correu a vê-lo mal soube que chegara, no solar da família onde vinte e dois anos antes Ana Emília lhe fora apresentada.

Pareceu a ambos, nos abraços do reencontro, que nada absolutamente nada esfriara na sua amizade.

Alarcão, na passagem, demorara-se em Lisboa o tempo bastante para arrumar os seus assuntos militares e para vir cheio de informações e sobretudo opiniões, que não eram novidades absolutas para Feliciano mas que da boca do amigo saíam mais fortemente amargas.

Sobretudo, o que a Alarcão parecia palpitar de mais ameaçador era a arrogância inglesa de quem se sente em país ocupado e dominado.

Eram indícios que viriam a agravar-se com o tempo mas que Alarcão, com uma lucidez de muita experiência feita, especialmente no contacto com oficiais ingleses, durante a travessia de Portugal e Espanha, fora acumulando dia-a-dia e agora não poupava ao amigo, sobretudo porque muita coisa vira confirmada e clarificada no regresso a Lisboa.

O general-em-chefe das tropas inglesas, o Beresford, assumira também o comando de todo o exército português, feito capacho dos “bifes”.

- Porquê?... Não temos generais competentes, novos, um general Gomes Freire de Andrade, por exemplo? – interrogava-se o fidalgo, mais do que interrogava -. Eu sei que eles nos desprezam, vivi com eles três anos, não perdiam ocasião de nos achincalhar. Sempre com boas maneiras, muito contidos… Mas era cada indirecta que fazia sangue! E se alguns éramos claramente melhores que eles, era quando mais nos desprezavam e pretendiam humilhar. Sabes, a Junta da Regência está-lhes completamente rendida. Não tem ponta de autoridade, perdeu-a toda em sucessivas cedências ao Inglês. Agora a Junta já nem espera que cheguem os pedidos do Inglês, que são ordens, claro. Procura adivinhá-los antes que se apresentem, para antecipar-se a cumpri-los. Tive vergonha de ser Português, sabes?...

Ficaram ambos calados.

Feliciano atreveu-se a comentar, passados minutos.

- Se o Rei voltasse… Não era?

- Não creio que os Ingleses estejam interessados. Têm o Brasil seguro com o Rei lá, para o que mais lhes interessa, o ouro, os diamantes e os portos. Os portos estão lá agarrados e não arredam, preciso é mantê-los abertos e a funcionar, para o que a autoridade do Rei é bastante. O ouro e os diamantes, em vez de virem para Lisboa, vão nos barcos deles directamente para Inglaterra, que os compra aqui como quer e os vende depois a quem quer, em Londres, e pelos preços que quer. Para Lisboa, talvez venha algum cacau…

Feliciano estava de boca aberta.

- Não sabias, meu Feliciano?

- Não…

- De modo que aos Ingleses o que convém é que isto dure. Um Rei polícia de segurança pública e da segurança dos interesses deles… E aqui é a mesma coisa. Os Ingleses gostam muito do nosso vinho do Porto, quase foram eles que o inventaram, é certo. E também gostam de levar baratos os tecidos que fabricamos com as lãs deles, que lhes compramos caras… Como gostam dos nossos queijos da Serra e de Serpa e do Pico. Ou da nossa castanha e do nosso mel ou do nosso azeite. Sabes que levam tudo de cá pelos preços da chuva? Os agentes comerciais ingleses trazem pela vilas e aldeias os seus intermediários portugueses, que se lhes vendem todos os dias, baratos, a ameaçar os nossos produtores com a intervenção da tropa inglesa… Chegam a afugentar com ameaças os compradores da concorrência! Dizem-lhes que não serve de nada chamar as autoridades portuguesas porque a sua força é nenhuma e só obedecem ao comando inglês, que os nomeia, de facto. Irem os portugueses para Tribunal com queixinhas, dizem os tais agentes e seus intermediários, é pior ainda, porque os juízes nem se atrevem a dar sentenças contra os Ingleses que nos colonizam e nos dominam arbitrariamente…

Feliciano estava siderado.

- Olha que não fazem isto só com os pequenos produtores ou com juízes amedrontadiços! Fazem-no, tão à vontade como isso, com os produtores, até com potentados, como a Casa do Douro, que ainda agora foi obrigada a vender-lhes parte grande dos seus stocks das suas melhores reservas, pelo preço da uva mijona!... É um saque sem fim!

Alarcão repetiu tudo isto nos encontros seguintes, com pormenores às vezes novos e saborosos, que feriam até a dignidade dos mais altos responsáveis do Estado, da Igreja e da Magistratura, mas que em geral tinha ouvido a fontes muito suspeitas de afrancesados que odiavam os Ingleses por terem esmagado Napoleão aliados às potências mais retrógradas da Europa, reduzindo assim drasticamente as possibilidades de muitas “revoluções francesas” se repetirem pela Europa fora, ainda dominada pelos absolutismos monárquicos, religiosos e judiciais, que os afrancesados consideravam seu dever moral e político abater.

Feliciano levou muito tempo a descobri-lo, porque não tinha termos de comparação com outras fontes e porque o amigo lhe merecia uma confiança cega.

Na verdade, o teste para ele decisivo só chegaria em 1820, com a Revolução do Porto do Vintismo, logo alastrada a Lisboa.

Mas a verdade é que entretanto ficou com certa raiva aos Ingleses, porque estariam por toda a parte a forçar a baixa dos preços dos produtos agrícolas…

A.C.R.

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