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2006/02/14

Memórias da minha Aldeia (18) 

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D. Miguel regressara a Lisboa, não só tendo jurado a Carta Constitucional, mas ainda aceitando, quando fizesse vinte e cinco anos, ser regente na menoridade de D. Maria, como também casar com a sobrinha – foram celebrados os esponsais – logo que ela atingisse idade núbil.

Entretanto, D. Miguel governaria Portugal como lugar-tenente de D. Pedro IV.

Chegado a Lisboa, porém, inebriado talvez pelo louco entusiasmo da população e pela adesão unânime das forças armadas, D. Miguel esquece tudo, demite o governo nomeado pelo Conselho de Regência que D. João VI designara pouco antes de morrer, nomeia em sua substituição outro governo só com elementos absolutistas, muda todos os generais das províncias e designa comandantes de corpos de exército da sua confiança.

Está restaurado o absolutismo.

Paralelamente começa um período descrito como de verdadeiro terror, promovido por autoridades e adeptos miguelistas contra liberais ou suspeitos de o serem.

Começava um super-PREC.

Enviam-se da capital, por toda a província, emissários que explicam às autoridades de confiança, ou cuja confiança se quer assegurar, e aos líderes locais de opinião, como despertar e mobilizar as populações para aclamarem D. Miguel como Rei absoluto, enquanto os generais das províncias circulavam por escrito às câmaras municipais para que insistissem junto do Senhor D. Miguel no sentido de “tomar a coroa com absoluta soberania”, tal qual o povo exigia.

Um daqueles emissários mandados às Beiras levava instruções escritas para convencer Feliciano a reassumir o comando da milícia de Santa Comba, com a garantia de ser dentro de seis meses promovido a capitão-general de milícias, no mínimo capitão-mor.

Foi-lhe mesmo segredado ser isso vontade expressa do próprio Rei D. Miguel, que contava decididamente ver Feliciano empenhado pessoalmente e a fundo na reorganização das milícias das Beiras, que tinha urgentemente de fazer-se.

Outra vez “a reorganização”! – pensou Feliciano – Outra vez “a reorganização”, como há trinta e seis anos!

E, já falando alto, comentou para o seu interlocutor.

- Mas não vê que estou com cinquenta e cinco anos, que é completamente despropositado aparecer um homem quase velho e muito usado, como eu, à frente de milícias! O Rei tem de ser servido por gente nova e cheia de forças como ele!

O emissário chamou-o de parte e explicou-lhe melhor...

Dois dias depois, houve no largo da Matriz, uma enorme assembleia de gentes de Seia e das freguesias mais próximas, com os párocos e fidalgos das paróquias à cabeça, em que o Rei D. Miguel foi repetidamente e exaustivamente aclamado como Rei absoluto, por todos os motivos que os sucessivos oradores, sempre mais inflamados, vibrantemente explicaram, antes de terminarem gritando…

- E viva o Senhor Dom Miguel, Rei absoluto!

- E morte aos liberais! – logo completava a multidão.

- E morte aos liberais! – ouvia-se hurrar lá ao fundo, como um eco sempre mais tremendo.

O presidente da Câmara por fim, antes de dispersarem as massas populares, pediu silêncio com o seu vozeirão para garantir ali mesmo, que no dia seguinte “voaria” para Lisboa uma forte representação do Município, com a responsabilidade de transmitir a sua Majestade o anseio, tão ardentemente expresso pelo Povo, Clero e Nobreza de todo o concelho de Seia, de que Sua Majestade abolisse – já! – a carta constitucional e se proclamasse rei absoluto de Portugal.

Um orador mais ousado e mais visionário falara mesmo de refundação de Portugal e da Monarquia!

Foi um rastilho.

Foi de pegar fogo a um rastilho que se tratou.

Nas duas semanas que se seguiram houve dezenas de manifestações idênticas em outros tantos concelhos das proximidades em roda.

Alguns municípios, e não só dos mais pobres, endividaram-se para anos, com as despesas das deslocações até Lisboa e volta, mas o objectivo ambicionado foi rapidamente atingido.

O rastilho, de muitos modos e graças a muito variados instrumentos, tinha sido aceso por Feliciano e os dois filhos mais velhos.

O emissário, compadre do Conde de Basto, porque assistiu a tudo, proclamou-o bem alto a quem quis ouvi-lo.

A mobilização absolutista e anti-liberal daquele lado da Beira devia-se a essa esplêndida família que, com tanta agudeza de espírito e tão elevado sentido político, soubera aproveitar a ocasião de prestar mais um grande serviço ao Rei, à Monarquia e a Portugal.

Estavam eles dispensados de outros serviços e o Rei compreenderia, sem dúvida, que nem a mais nem a melhor podiam ou deviam ser obrigados, a não ser que novas e grandes necessidades se apresentassem.

Palavras quase textuais do emissário real que falou assim, sempre que teve oportunidade de deixar transbordar o que lhe ia à flor da alma.

Livrou-se Feliciano e aos filhos – ou pareceu-lhes – de novo período de serviço nas milícias, para onde o pé não lhe puxava mesmo nada e aos filhos ainda menos que nada.

Ao mesmo tempo que, pela primeira vez, sentia em consciência ter efectivamente contribuído para um serviço realmente excepcional prestado ao País.

Eu acrescentaria, sem exagero, um excepcional serviço prestado “à pacificação do País”.

A.C.R.

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