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2006/02/16

Memórias da minha Aldeia (20) 

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Como não podia deixar de ser, a onda de violências dos absolutistas sobre os liberais tinha de acabar por provocar reacções destes igualmente violentas. Até porque, como viria a verificar-se, os liberais possuíam mais dinheiro e armamento melhor e, acossados, ver-se-iam obrigados, também, a puxar mais pelas cabeças, que também tinham.

Não digo que tivessem cabeças melhores, digo que, com o tempo e à medida que aumentava o seu conhecimento do adversário, foram obrigados a utilizá-las com menos paixão e mais proveito.

Mas nem sempre foi assim, como iremos ver.

Ainda antes da aclamação de D. Miguel como Rei absoluto, pelos Três Estados, já houvera alguns preocupantes levantamentos liberais. Durante o mês de Maio de 1828, foi o levantamento da guarnição de Aveiro; o pronunciamento da guarnição do Porto a favor da Carta constitucional, com a formação duma junta de governo; a restauração da Carta na Ilha Terceira; a aclamação de D. Pedro em Coimbra; e uma insurreição constitucional no Algarve.

Com excepção da Ilha Terceira, tudo o mais ficou prontamente sufocado com a marcha dos exércitos miguelistas, de Lisboa até à fronteira Norte.

Mas o sintoma de haver forças contrárias por toda a parte, dispostas a levantar cabeça, não permitia descuidos, por parte dos situacionistas.

Já aqui recordámos como os ajustes de contas se desenvolveram logo através dos procedimentos judiciários da prisão e da forca e, na rua, através das actuações arbitrárias, e sem controlo, de assassinos, de assaltantes, da injúria, da censura à imprensa, de espancamentos, enfim, do cacete e da chantagem.

Os liberais, porém, não desarmavam.

Um dia do Outono de 1828, chegava aos concelhos da Serra o boato de que civis liberais se estavam a organizar em Viseu para avançarem até à Guarda, certos de não encontrarem resistências à altura, por parte das milícias desorganizadas, nem dos grupos armados de civis absolutistas, que os liberais aliás suspeitavam não existirem ainda.

Constou também que a força liberal em formação iria atravessar para Seia pelo caminho mais curto, atravessando o Dão no Pindelo, e depois pela estrada da Beira até Celorico e à Guarda, donde isolariam o Centro do País, fazendo a ligação aos liberais da Estremadura espanhola.

Já é sina, tenho sempre que haver-me com pontes! – reflectiu Feliciano, tomando-se de novo, ao fim de dezassete anos, por um estratega da guerra de pontes.

No dia seguinte, Feliciano pôs-se a caminho de Viseu (“lá vou eu, lá vou eu”).

Com Ana Emília cantarolou, a quem contara tudo e pedira que o acompanhasse.

Ela que continuava uma excelente amazona, tão boa, se não melhor, como aos vinte anos, nunca recusava ao marido a proposta de um bom passeio a cavalo. E ainda mais se o passeio incluía alguma expectativa de surpresas ou simplesmente, até, só para conhecer mundo e sair por umas horas da rotina doméstica, a que sempre recusara converter-se indiscriminadamente.

Que iam eles fazer a Viseu?

Tentar saber mais e mais seguro do que os boatos diziam.

Ambos acharam que os seus conhecimentos no Paço episcopal podiam ser-lhes de mais utilidade do que outros quaisquer.

Em todo o caso, às cegas como iam, se por algum lado tinham de começar, fosse pelo Paço.

- E se antes começássemos pelo Cabido da Sé, onde conhecemos perfeitamente o cónego Xavier, que esteve em nossa casa, há dois anos? – lembrou Ana Emília.

- Bem lembrado! E onde encontrá-lo?

- Ele é pároco de uma das paróquias da cidade…

- Passamos primeiro pela Sé e lá nos dirão.

Assim fizeram. Para melhor ainda, o cónego tinha acabado de celebrar missa numa das capelas laterais da Sé, por alma de uma pessoa de família, falecida havia um mês, enquanto uma dezena de outras celebrações eucarísticas, por outros fiéis defuntos, ocorria nas capelas aos lados.

O luto dos participantes era ainda pesado, como mandavam as convenções, mas lágrimas nenhumas já, reparou Ana Emília, com o espírito acerado que lhe conhecemos no ano em que Luís XVI foi guilhotinado.

- Vamos! Rápido! Agarramo-lo no claustro! – espevitou ela o marido e quase corria atrás do senhor cónego, que rapidamente se desparamentara para os atender e que logo os reconheceu, tratando-os sem dificuldade pelos nomes.

No gabinete para onde os levou, por ter compreendido às primeiras explicações que era assunto muito delicado, o cónego Xavier ouviu atentamente os pormenores do caso, ajudado por explicações de Ana Emília, sobretudo, acerca da situação política e militar em geral naquele lado da Serra.

- Voltem cá de tarde, espero ter informações seguras para lhes dar. Se a pessoa que me convidou, para hoje almoçarmos em sua casa, não souber, terei de fazer umas tentativas no “campo inimigo”… Venham às quatro horas.

Despediu-se amavelmente de ambos, felicitando-os por estarem tão activos no “bom combate”, e recomendou-lhes, para almoçarem, um bom restaurante que havia ali perto, creio que chamado já então pelo mesmo nome que ainda teria cento e oito anos depois, o “Cortiço”.

A.C.R.

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