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2004/06/10

O PENSAMENTO NACIONALISTA NO SÉCULO XX (III) 

(continuação)

J. Pinharanda Gomes
A mítica aparece aqui dinâmica. O desafio à acção. Dos pensadores proferimos um confesso heterodoxo:

Há muito que Vítor Manuel Adrião é merecedor de um olhar considerativo da sua profissão ascética na arte de pensar Portugal. Ai do País que não acha quem o pense, sobretudo quando muitos não o pensam mas vivem dele, às suas custas, sem lhe pagarem em géneros, ou compensarem em moeda. Está dito que os portugueses não gostam de Portugal, mas tal dito nem dispõe de universalidade, nem de carácter absoluto. Envolve apenas parciais premissas: alguns portugueses não gostam de Portugal, mas vivem às suas custas.

Parece ter havido quem, falando pelos sentidos, no tórrido cenário dos incêndios que empobreceram o País, chorasse baba e ranho; mas, quando se chegou ao momento de tirar do bolso uns patacos para ajuda dos povos e das vítimas, não se constou fosse o que fosse. Como no prólogo da peça de Camus: "Nada, Nada.".

Sem antepormos tese, e limitando a assunção ao domínio da hipótese, é licita a dúvida questionante: se, após a destruição da integridade territorial (preceito de fundo em todos os movimentos de cariz patriótico) esta onda dos incêndios não poderá constituir uma outra fase da destruição: destruído o continente, destrói-se agora o conteúdo.

A anódina expressão "este País", usada por alguns sectores políticos, serve para desidentificar Portugal. "Este País" serve a todos, e, como tal, não serve a nenhum. Diz-se de todos, de modo que, destruindo Portugal, sempre poderão formular: Portugal, não; este País.

Enquanto uns destroem, outros, na modéstia do silêncio, na discrição do labor, na isolada meditação, procuram construir. Não são, nem deputados, nem comedores do povo, nem proclamados combatentes da liberdade. São pessoas, que, para além da jurídica cidadania, se estruturam em ordem ao amor da Pátria. E nem estamos aí perante nacionalismos ou xenofobias. O patriotismo é o acto de consciência do que é próprio: se eu não gostar do que me é próprio, quem gostará?

Portugalidade é o nome de categoria universal que identifica o próprio Portugal. Hoje em dia o termo não é unívoco, antes parece equívoco, mas quando esse termo foi moldado por António Sardinha, face à hegemonia da hispanidade, era bem unívoco: designava o peculiar à acção portuguesa na história do mundo. O que foi, e é, seu carácter singular, comparado com o que foi, ou é, carácter geral de todos os povos.

A equivocidade do termo dá margem à existência de vários conceitos de portugalidade, incluindo o conceito negativo, o de não-portugalidade, expresso de modo ostensivo na linha dos internacionalismos alienantes, mais preocupados em cuidar do que têm a receber, do que com o que têm a dar. O modelo está aí presente: Europa tem vindo a significar mais o que alguns desejam e esperam receber, do que quanto desejam e esperam dar. O egoísmo concentracionário raro fere o patriotismo, mas fere de morte a pureza do internacionalismo.

Portugalidade tem vários caminhos de expressão: a poesia lírica e épica, a hermenêutica da nossa antropologia cultural, a pesquisa do pensamento que a si mesmo se pensa, de modo que, antes de passar à acção, saiba porquê e para quê, e seja capaz de viajar da filosofia para a educação e, só depois, para a política.

Portugalidade tem sido mais atendida na historiografia, por vezes sujeita ao risco da apologética inconsistente, adequada aos discursos para meninos e oradores dos comícios partidários. Não é o caso da corrente especulativa e teorética que, nas suas variantes, podemos situar no pensamento que decorre da Renascença Portuguesa e, por vezes em dialéctica de antíteses, no Integralismo Lusitano, na Seara Nova (1ª fase), na Filosofia Portuguesa, e nos autores de fundo magistral: Pascoaes, Sardinha, Cortesão, Álvaro Ribeiro, Pessoa e, sem dúvida Agostinho da Silva. Alguns deles, mais atentos à cadeia dos actos históricos do que dos símbolos paradigmáticos, para os quais António Telmo tem concitado a nossa atenção, que precisa de ser muito atenta, porque o símbolo mais esconde (ao que se julga) do que revela.

O que parece um prólogo ao livro Introdução à Portugalidade de Vítor Adrião, é, não um prólogo, mas uma leitura que deste seu livro fazemos. Ele propõe-nos outro modo de iniciação: — põe-se a história político-social no seu justo lugar; remete-se a economia para a dispensa, que é também o seu justo lugar, e caminha-se no bosque sagrado dos arquétipos, dos mitos, das alegorias e dos símbolos. De onde irrompe uma ideia de portugalidade sacra, antevista por um refractor prismático de natureza teúrgica. Vítor Adrião, autor de uma obra bem digna de leitura (prova dessa dignidade é a ocultação a que tem sido sujeita, porque os poderosos não têm literacia) já nos interpela com a polémica História Oculta de Portugal (S. Paulo, Brasil, 2000) destinada a demonstrar o oculto. De facto, o óbvio não carece de ser demonstrado.

Introdução à Portugalidade há-de ser uma leitura incómoda. Uma leitura de retorsio, assim no género de Tertuliano: o que julgamos certo é inexacto; o que temos por verdade é mentira; e, enfim, o que dizemos mentira pode ser a verdade. É-nos preciso invocar agora essa extraordinária filosofia da nossa história, A Coerência das Incertezas, de Paulo Mercadante, mas o contexto de Adrião tem outro grau de perturbante desafio. Tudo é oculto para quem ignora e, no relativo a Portugal, ele parece não se apresentar, antes se ocultando, porque o não sabemos ler. Retomando uma linha ontopneumatológica, que passa pelo Templarismo, pelos Espirituais, pelo Henriquismo, numa axialidade referida a Pessoa, Adrião prova que os deuses não morreram; o que morreu foi a nossa visão deles. Eles subsistem para além da nossa cegueira e da nossa ignorância. Únicas causas de, por isso, a Portugal ser possível entregar-se nas mãos de quem lhe chama, apenas "este País". Uma introdução que suscita polémica e gera antíteses. Portanto: dinâmica e renovadora, até onde pareça febril.(8)

(continua)
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(8) V. M. Adrião, Introdução à Portugalidade. Cascais, 2002. Rec. crit. In O Diabo, n.º 1396, Lisboa, 30.09.03, p. 21.

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