<$BlogRSDUrl$>

2004/06/08

O PENSAMENTO NACIONALISTA NO SÉCULO XX* (I) 

J. Pinharanda Gomes
Subir uma escada tem por efeito transitar de baixo para cima. De modo análogo, a exposição de uma ideia solicita que seja efectuada de baixo para cima, o que, na gramática lógica, quer dizer: do nome para a ideia, do mais evidente para o menos aparente. Nesta perspectiva, e considerando que o vocábulo (e por conseguinte a ideia) tem sofrido muitas contraversões no decurso da cultura europeia novecentista, a pontos de quase ter degenerado em tropo a evitar, importa começar do mais evidente para o mais essente, ou seja, convém viajar desde o significante para o(s) significado(s).

Enquanto significante, Nacionalismo deriva-se de Nação, definindo-se como o amor, o culto e a exaltação da Nação, múltiplas vezes esse amor e esse culto sendo apenas assumidos num critério afectivo, de sentimento, que raro evita o carisma da irracionalidade, prófuga do critério da ideia, que não supõe a razão como fundamento e como alicerce argumentativo da ideia. A noção afectiva ou sentimental de Nacionalismo é lícita, sendo componente essencial do senso comum, que, no quotidiano, não tem de se investir na dialéctica argumentativa, mas tem de viver em coerência com os valores, ou as figuras que se acham no cerne da sua alma. Não obstante, o senso critico requer o domínio das categorias lógicas, por forma a que uma tese seja deveras uma tese, e nunca mera opinião, ou seja, por forma a que Nacionalismo seja uma doutrina e não mera opinião ou sentimento de ternura.

Distinguimos três ideias de fundamento significativo: Nação, Pátria e Frátria.

Nação tem-se definido como um valor colectivo, ou comum, gente que vive sob o mesmo senhorio, temporal ou espiritual. Não dispondo de poder temporal, aos judeus da Diáspora se atribuía o termo "nação judaica", ainda que fosse apenas estante, junto de outra nação (a muçulmana, ou a cristã) constituída em Estado. Na Filosofia Política clássica Nação lia-se como natio, gens, (termos aduzidos por Cícero) significando uma pertença comum, uma gentilidade, vinculada às origens ou nascença, de onde, na mitologia da cidade romana, nação se vincular a Nasci, nascor, o nome que presidia aos nascimentos das crianças: "Qui partus matronarum tueatur/à nascentibus notio nominata est"(1). Esta cadeia relacional leva à inferência de que Nação também aceita dizer-se na palavra Mátria: a Mãe.

Pátria melhor cabe à ideia referencial de valores, isso que, na tradição bíblica se define como a herança dos pais. É a ideia e o ideal, a casa paterna continuada fora dela. No estar fora dela se gera o sentimento de nostalgia, ou de lembrança da casa paterna, havendo muitos passos escritos em que, por contiguidade, Pátria é dada como sinónimo de Nação, Cícero ensinando que, no exílio, alguém sofrendo a nostalgia e volvendo à casa paterna, é como se, no dia da chegada, se desse outro nascimento, um nascer de novo, um novo dies natalis. Parece que, dada a patriarcalidade do nome, Pátria deveria constituir um nome masculino, todavia, já em Hierácles do Egipto lemos a justificação de que o vocábulo se pronuncia com determinação feminina, porque também Pátria é mãe, Mátria.

A regra supõe excepções. Há quem ache a Pátria em qualquer parte, de onde o atributo apátrida ser de complexa aplicabilidade, porque todos temos Pátria, seja ela qual for, quer a de natureza, quer a de adopção. Já na Grécia e na Cidade Romana havia o dito "omnium solum forti, Patria est", e na língua portuguesa temos um dito análogo: "Ao bom varão, terras alheia pátrias são"(2).

Frátria é a fraternidade, a comunidade de filiação, ou de Nação. Deste modo, no conjunto tripartido, há uma trilogia conceptual: Pátria como arquétipo ou paradigma de uma comunidade; Nação como comunidade vivente, que existe à luz desse paradigma; e Frátria, o vínculo de fraternidade que une, na diversidade, todos os que participam da Nação. Os elementos da trilogia apresentam-se de tal modo inerentes uns aos outros, que o nome Nação enquanto Pátria em acto, contém todos os outros componentes da tríade, por não haver Nação sem Pátria, e Frátria sem Nação. Guardadas as necessárias subtilezas entitativas, assim como o simples nome Deus inclui todas as hipóstases divinas, também o nome Nação inclui os valores que na palavra existem, coexistem, e se intervalidam: a Pátria como antecedente, a Nação como consequente. Aqui nos aparece a ideia de Estado, que não é necessariamente o estatuto de Nação, embora o ideal seja que o Estado corresponda à Nação.

O ideal de Nação é que ela disponha de todos os pontos de partida e de todas as estâncias de ser: um povo, um lugar, um espírito ou uma alma, uma língua e uma Cultura(3) ou Tradição mental, e que se constitui um bem de quantos assumirem a sua Nação onde quiserem, como quiserem, por saberem qual é a sua Nação em liberdade de pensamento. De qualquer modo, a Nação só incarna quando dispuser de lugar (território, seja próprio, seja alheio), de gente (povo e sociedade), de espírito (língua e tradição cultural) e projecto ( de felicidade, ou de finalidade na história). A Tradição releva no contexto como fonte pátria, ou como paradigma de Mátria.

Tradição, em sentido geral, é a escola primária em que cada humano se inicia para a vida, pela aprendizagem, desde logo no âmbito doméstico dos modos vitais de estar, de se exprimir e de comunicar. Em sentido específico, é também outra escola, escolhida como via particular de ser, de estar e de saber, uma via singular no contexto da via geral ou do consensus omnium. Todos os seres humanos nascem dentro de uma Tradição, um conjunto ou sistema de saber sabido, que não carece de prévia experiência para ser aceite, mas é seguido fora de qualquer interpelação imediata. Pensamento pensado, nela se criam as vocações para o pensamento pensante, esse que, sobre o já pensado e sabido, inventa o novo pensar e o novo saber. A razão criativa singular gera-se na razão geral, fora da qual — e não obstante os chamados "regimes solitários", — pensar e saber do novo é impossível, cumprindo entender que o pensamento e o saber adquirido nos "regimes solitários" dependem de um dado médio prévio, a anamnese ou reminiscência. No caso da Tradição há herança imediata de pensamento e de saber, testemunhados nos outros, próximos ou distantes. Ninguém parte para nova conquista sem arrancar da base que lhe é dada, por isso que toda a hermenêutica filosófica, toda a Filosofia, resulta de uma situação, e, mesmo quando se institui, é Filosofia situada, por difluir de um saber feito, que se não anula de todo no saber a fazer, mediante as categorias lógicas e verbais e as motivações iniciáticas, miméticas e poéticas.

Permita-se a imagem metafórica: a Tradição é a história de cada ser humano antes de tal ser humano devir existente, de onde a licitude de se afirmar que a Tradição, para além de dado objectivo, é também o subjectivo, o próprio ser do ser humano em existência, considerada pelos olhos de cada um em particular, e pelos de todos em geral, envolvendo as categorias do próprio, da diferença, do essencial e do acidental. Ela transcende a noção de "circunstância" admitida por Ortega y Gasset, pois, sendo embora circunstância (condicional e condicionante) é também principio e movente, actuante no pensamento como algo que, de fora, actua dentro. Neste processo se entrosam os modos ou tempos de acção, o passado, o presente e o futuro, em que os três se interligam de modo inconsútil, como num trabalho de renda, sob pena de a renda ficar rota. O presente apresenta o passado e antecipa o futuro, a Tradição sendo aberta e futurível, sem correr o risco, nem de fixismo, nem de historicismo. Renovação sem prévia Tradição é como silogismo a que falte a premissa primeira. E também Tradição sem Renovação é como silogismo a que falte a premissa final, destinando-se a tudo manter intocado, mesmo se esse intocado já não serve ao itinerário da mente segundo o rigor ontológico e etológico. É um corpo vivo em metamorfose, o sabido que serve para novo saber, que todavia, mantém o vínculo entre o antecedente e o consequente.

Em Antropologia, Tradição como que é sinónimo de Cultura, na qual, pelo nascimento nos inculturamos em enculturamos, aderindo a sistemas comportamentais colectivos e só depois questionáveis, como que não distinguindo saber de razão e imersão ideológica. Neste contexto, a comunidade tem uma Tradição, ache-se mais longe ou mais perto de uma cultura mais avançada do ponto de vista científico e tecnológico, embora estes aspectos contribuam em definitivo para a alteração das premissas do modo de viver tradicional. Com efeito, a emigração, o processo tecnológico, os meios de comunicação, as pressões sociológicas, podem conduzir à metamorfose da Tradição antiga, sobre ela, e mesmo contra ela, gerando uma via nova, sem radicação local. Neste sentido se admite que a cada instante um costume morre e outro nasce, a Língua sendo a principal componente em que as mutações se revelam. As evoluções fonológicas e semânticas, caso não se verifique o abandono da língua pátria por outra estranha, constituem elos de mutação e de transgressão que levam à renovação. Nas Literaturas, as novidades são em geral suportadas por anterioridades (F. Crespo, A Tradição de uma Lírica Popular Portuguesa antes e depois dos Trovadores, Lisboa, 1966). Quanto à guarda da Tradição, todos os grupos tendem ao tradicionalismo, havendo de enfrentar o surgimento das inovações e dos inovadores.

O fenómeno que se designa por Cultura Popular é, por excelência, o repositório custodiante da Tradição da comunidade.

(continua)

_____________________________________
* Comunicação ao II. Congresso Nacionalista Português, Lisboa, 15.11.2003, em sessão presidiada pelo Eng.º Figueiroa Rêgo. Em Apêndice incluímos uma palestra, "Cultura e Lusofonia", proferida na Pousada da Juventude (Almada, 16.10.2003) para os participantes do Fórum Internacional das Juventudes Lusófonas, e que complementa a tese do Nacionalismo.

(1) Cícero, De Natura Deorum, 3.
(2)R. Bluteau, Vocabulário, Vol. VI, pp 320 - 321.
(3)P. Gomes, Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal, Lxª, Espiral, 1971, p. 7

Etiquetas: , ,


This page is powered by Blogger. Isn't yours?

  • Página inicial





  • Google
    Web Aliança Nacional