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2004/06/08

O PENSAMENTO NACIONALISTA NO SÉCULO XX (II) 

(continuação)

J. Pinharanda Gomes
Mantendo a inicial e iniciática definição, Nacionalismo é escola, muito mais do que elenco de opiniões. Os prolegómenos já enunciados e explicados atestam um sistema de ideias e de valores, muito mais do que um simples projecto programático de cariz eventual. Assume a realidade das ideias lei e grei (pola ley e pola grey), requer um pensamento organizante e organizado, um quadro universal de valores, e um ideal de vida, a causa final, isso para que uma Nação existe e/ou tem de existir: o para quê de ser ela mesma. Nacionalismo, nesta luz de critério, transcende a assistematidade afectiva do primado da vontade, ou de mero esboço de ideal, como desejo, sem acto dinâmico e realizador. A sistematidade nacional tanto se cumpre na plenitude de um Estado que compreenda rigorosamente uma Nação, como na deficiência de algum elemento. Com efeito, ou sem ele, à Nação pode faltar território, como ocorreu durante séculos com os Judeus, ou como ocorre ainda com a Nação cigana.

Pode faltar um Estado próprio. Temos aí os casos das nações hispânicas (Galiza, Catalunha, por exemplo), que são reais nações com todas as componentes, embora hajam de se abrigar noutra realidade jurídica, o Estado da Monarquia Espanhola, que alberga várias nações, enquanto, no caso português, que durante séculos enquadrou múltiplas raças, línguas e nações, ela foi obrigada, a partir de dentro, a uma implosão, resumindo-se à uníade da monadologia europeia. Há, na Europa, todavia, nações que não têm estado próprio, sendo típicas as nações das Gálias, unificadas e como que suprimidas, pelos centralismos parisienses, tanto pelo democratismo da Revolução Francesa como pelo Imperialismo napoleónico, que chegaram ao ponto de proscrever as línguas nacionais, entre elas o clássico langue d'oc, mátria da Literatura neo-românica, em favor da língua parisiense.(4)

Convém introduzir algumas distinções. Uma delas relativa a um conceito moderno, produto híbrido de nacionalismo+totalitarismo, na forma nacionalitarismo, que, sem que o diga, constituí, na realidade, a hegemonia do Estado sobre as nações que nele se abriguem. Outro conceito é o de internacionalismo. Muitas e repetidas vezes se assume internacionalismo como contrário de nacionalismo e, até, de anti-Nação. Ora, no rigor dos conceitos, internacionalismo é o sistema ou estado de relacionamento entre nações. Só há internacionalismo se houver nações que o constituam. Sabemos todos, como é obvio, o prejuízo causado à ideia pelo internacionalismo ideológico das seitas socialistas, e de modo especial pelo sovietismo, ao preconizar uma nação transnacional, a do Proletariado, obediente a outra finalidade já desvinculada de cada uma das tradições nacionais. No fundo da questão, este internacionalismo não é tal, uma vez que aposta na dissolução das nações, para constituir uma única. Confunde-se com globalismo que, sendo dominável por potências poderosas, afectará a onticidade existencial e jurídica das nações menos poderosas, obrigadas à alienação dos seus valores, sujeitando-se às que lhes são alheias.

Nacionalismo constitui uma forma, um continente, passível de conteúdo. Ele admite todas e quaisquer tipologias políticas, porque se estas propõem regras económicas e sociais, o Nacionalismo não contém em si mesmo qualquer forma de governo. Fundamento e firmamento, ele pode ser assumido em variados contextos. O Nacionalismo pode conter a Monarquia, ou a Aristocracia, ou a Democracia, e, até, os socialismos totalitários, como se verificou na União Soviética e na Alemanha, ou em Cuba, por exemplo. Sistema de referência axiológica, não é um sistema político. Potencia sistemas políticos enquanto forma, mas deles não se constitui matéria, nem programa.

Em boa verdade, o Nacionalismo é superpartidário. É uma escola abrangente, um movimento de ideias paradigmáticas, capaz de, na obediência ao essencial, permitir a realização de patamares organizativos, desde que estes garantam os fundamentais privilégios da liberdade de consciência e da equipolência de alternativas. Jamais se isola. É uma porta aberta, mas ciosa da sua propriedade, ou do que é próprio de seu.

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Cabe agora reflectir, nem que de modo breve, sobre o caso do próprio português, dito Portugalidade. António Sardinha cunhou o vocábulo, para o contrastar com a mais potenciada ideia de Hispanidade, que tende, não a manter a portugalidade, mas a dissolvê-la no centralismo castelhano. Porém, se no pensamento de Sardinha a ideia se reveste de maior significação antropológico-cultural(5), é no discurso mítico de Fernando Pessoa que a ideia de Nação ganha o relevo de mistério: "As nações todas são mistérios./ Cada uma é todo o mundo a sós" (6). Dizendo em molde poético-profético, Pessoa aproxima-se, ainda que o ignorasse, da tese tomista segundo a qual as pátrias são causas específicas, no providencialismo da história, para ajuda do trânsito humano no tempo e no mundo, o que tudo ainda remete para a historiologia agostiniana.

Os paradigmas de Mundo Novo, Quinto Império, de retorno ao absoluto, de reintegração ôntica, são característicos da nossa espiritualidade, considerados mitos febris pelos positivistas e estrangeiros, todavia sempre em ressurreição, em cada uma das novas gerações, em poetas e em pensadores. Damos aqui, por necessidade didáctica, dois exemplos, aliás motivados por alguma heterodoxia. Dos poetas, que poderíamos citar muitos mais (F. Palma Dias, S. Franclim, Rodrigo Emílio, José Valle de Figueiredo...) escolhemos Eduardo Aroso, no poemário "A Quinta Nau".

A quinta nau pode ser a nau perdida da frota de Vasco da Gama na viagem para a Índia? A História ensina que eram só três naus, mas a poesia tem liberdade para ampliar do facto para o mito e pressupor cinco.

É ainda certo que, descoberta a Índia física, após a qual, segundo alguns, os portugueses ficaram desempregados, outros assumiram que, achada a Índia real dos mapas, ainda falta achar a Índia ideal.

Este nome, Índia ideal , é muito dinâmico, supõe o projecto de para além da História, de subir da contingência para a essência, e do estado de imperfeição para a vida perfeita. Sonho embora, ai de nós se perdermos o dom do sonho, se esquecermos a ideia da Índia ideal, que pode traduzir-se por V Império, reino de Justiça e de Paz, depois do qual não haverá outro!

Se a História é a inteligência dos factos, se a Filosofia é a inteligência das ideias, a Poesia é a inteligência das imagens visíveis e invisíveis, de onde o seu necessário carácter profético, e de onde, na ordem da inteligência criativa, a Poesia ser superior à História.

Porque transcende da opacidade dos factos mortos para a transparência das imagens vivas. Raro se tem prestado o devido apreço à realidade de o melhor da História Portuguesa ser mostrado, não pelas interpretações, muitas vezes ideológicas e fraccionárias, da Historiografia, mas pela visão da Poesia.

O signo da inteligência poética da História, porventura modelada no poema épico de Luís de Camões, não ficou por aqui.

Ampliou-se e continuou-se, numa árvore de saber e de tradição, em que se constituem marcos as obras de Bandarra, de Garrett, de Teixeira de Pascoaes, de Corrêa d'Oliveira, de Mário Beirão, de Dalila P. da Costa, e, sem dúvida, do Fernando Pessoa da Mensagem.

Uma família espiritual, em que a ideia de Portugalidade substancia o discurso poético-histórico, com privilégio ao poético, na pesquisa ou na hermenêutica da pureza e do essencial.

Colocar esta família sobre a chancela de "Nacional-Saudosismo" é pouco, é nada. Ela embebe-se da ideia de Portugalidade, já não como simples sentimento do amor pátrio, mas como complexo entendimento das origens e dos fins últimos a que a História nos propõe, através dos erros e das falhas da humana capacidade para vencer as objecções do caminho pelo mundo.

Estas reflexões nascem da leitura de um poemário que ousamos situar na directa sequência de Bandarra e de Pessoa, outra arte de trovar e outra arte de transmitir mensagem: "A Quinta Nau", poemas de Eduardo Aroso (Gresfoz, Figueira da Foz, 2003), que se afirma voz da Pátria no retrato de um seu antepassado, o sapateiro Gonçalo de Trancoso (Bandarra):


Na mão
Tinha a sovela;
No coração
A trova mais bela.

Via ele o futuro incerto,
No labor a proteger os pés;
E o pensamento liberto,
Escrevendo de lés-a-lés.

Além de ser sapateiro,
Foi ele a voz de Deus,
Sentir de um povo inteiro:
Cristão, Árabe e Judeu.

Eis a verdade singela:
O único que nasceu
Para ir além da chinela.


Músico e Poeta, tem Aroso uma vantagem acrescida a Bandarra e a Pessoa , porque, dominando a técnica das pautas, não comete ele falhas de elocução e de modo de dizer. De onde resulta um conjunto de poemas de límpida forma, de oficinal estilo, de música ambiente. Cada poema é um filosofema, ou uma admonição, ou uma imagem audível. Elenco de poemas, no estilo, no jogo das formas e no ludismo das imagens, o recurso aos símbolos, a recuperação de tópicos clássicos, ele actualiza o melhor entendimento da teoria da Portugalidade à luz da intencionalidade profética. O destino comum veiculado através da imagem, cuja missão é mostrar e não demonstrar.

Para além de Pessoa, e do retrato que ele traçou do Rei Lavrador, plantador de naus e haver? Eduardo Aroso reconverte: Diniz já tinha a nau. Pelo menos a que surgiu nas brumas do sonho da sua consciência futurante. Eis a "Toada do Pinhal de Leiria", com a qual, e sem mais, assinalamos o secreto signo deste feixe de poemas de Eduardo Aroso, poeta em Coimbra para todas as partes do mundo a haver:

Antes do Pinhal de Leiria
Já o mar, o mar bramia.
Ninguém sabia aclamá-lo,
Só el-rei, el-rei sabia.

Antes do pinhal de Leiria
Já o amor, amor havia,
Quem sabia assim cantá-lo,
Só el-rei, el-rei sabia.

Nasceu o pinhal de Leiria,
Já uma nau, uma nau havia.
O que iria descobrir,
Só el-rei, el-rei sabia.

Cresceu o pinhal de Leiria,
Mas o vento já havia.
Dos moinhos do poema
Só el-rei, el-rei sabia.

Depois do pinhal de Leiria
De el-rei nome teria.
Lavrou bem nosso futuro.
O porquê ele sabia! (7)

(continua)
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(4)Lemos num jornal que a R.D.P. se propõe um programa de formação linguística, para unificar pronúncias, de modo a evitar que o locutores do Norte digam o v por b, etc. Não é novo. O poeta e encenador António Pedro, quando, lá por volta de 1960, ensaiou a peça de F. Durrenmat, A Visita da Velha Senhora, interpretada por Amélia Rey Colaço, não permitiu a estreia enquanto os actores lisboetas não corrigissem a pronúncia do ditongo io (rio), pois é lisboeta a pronúncia iu (riu ...). Cf. Correio da Manhã, 2.2.2004, p.2, o artigo de Ferreira Fernandes.
(5)Demorada abordagem ao tema hispanidade/portugalidade pode ser aferida no nosso Meditações Lusíadas, Lisboa, 2001, pp. 9-74.
(5)F. Pessoa, Mensagem, I, quarto. Cf. André Coyné, Portugal é um ente..., Lisboa, Fund. Lusíada, 1999, notável interpretação da entidade nacional à luz de Fernando Pessoa.
(7)Eduardo Aroso. A Quinta Nau, Figueira da Foz, ed. Gresfoz, 2003. Rec. crítica in o Diabo, n.º 1480, Lisboa, 23.12.2003, p. 19

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