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2004/06/14

APÊNDICE Cultura e Lusofonia(I) 

Prof. J. Pinharanda Gomes

O vocábulo Cultura é de matriz latina, sendo gramaticalmente nome equívoco ou homónimo, porque apresenta diversidade de acepções: cultus, tanto se predica do culto religioso, como do culto da terra, agricultura. Os mais antigos e autorizados dicionários houveram noção da equivocidade, e desde os primeiros registos que o nome cultura é antes de mais definido como arte de cultivar os campos (V.P.L., II., p. 636) e, em especifíssima acepção, como rosto de paideia, pelo que então se considera a metáfora em vez da literal definição: cultura do engenho, cultus animi ( V.P.L., id. id.) sendo de registar a definição que um Alcobacense dela nos deixou, ao apreender a palavra como sendo uma espécie de epistemologia, "cultura das ciências" (Monarquia Lusitana, Tomo 5, fl. 133).

Os gregos não possuíam uma palavra que cifrasse a ideia sem equívoco, mas, em contraste, dispunham de três acepções nominais: arêté como culto do espírito, paideia como orientação do espírito, e sofia como saber puro do espírito. A Ocidente, a palavra, excepcionalmente trabalhada, nas ordens nominal e conceptual pela filosofia germânica, em que a luta cultural, Kultarkampf, levou a ideia às raias das militâncias ideológicas, a pontos de haver quem sustente que o valor moderno da ideia de Cultura é de origem alemã, radicada nas iluministas "ciências do Espírito", Schleiermacher e Hegel. O nome é utilizado em dispares acepções, algumas de conveniência, para significar erudição, informação, movimento, comunidade de ideias e de crença, domínio de saberes e de técnicas de fazer; e tanto se diz, por extensão, de uma comunidade, como de um simples indivíduo. Na época seiscentista, chegou a dizer-se da poesia nova (cultista), porque ao "estrépito de vozes (poéticas) novas" se usou chamar cultura. No século XVIII, o primado da sagesse sobre a filosofia, elevando a Santa Sabedoria a predicado dos sábios (na língua francesa os termos sçavant e sagesse têm um eco bem diverso do ocorrente em Português) considerava cultura como o domínio da sabedoria, numa leitura quase monopolista e não relacional: a teoria do homem culto, de que António Sérgio nos legou definição: "Um dos caracteres do homem culto é o de saber viver numa alvorada eterna, mantendo, à força de curiosidade e estudo, o dom da admiração e o candor da infância". O adjectivo culto inere, não a quem sabe muito, ou sabe pouco, mas a quem vive e convive segundo ditames axiológicos: um erudito pode viver e conviver como inculto, e um inculto pode viver e conviver como culto, pelo que este adjectivo se predica de pessoas que, mesmo dispondo de fraca erudição, dispõe, no entanto, de boa educação. O saber convém à cultura, mas não lhe é absolutamente necessário, pois há relatividade de saber: um jurista sabe o significado das leis, mas pode ignorar os nomes das coisas e dos utensílios de uma actividade (agricultura, ou indústria).

O filosofo saberá o que significa silogismo, mas pode ignorar o que é um almude, ou um arrátel, ou uma ovelha. As crianças das escolas das grandes urbes sabem muito bem o que é um automóvel, ou um frigorifico; mas há muitas que nunca viram, nem sabem, o que seja um burro, ou de que planta se tiram os melões, mesmo que conheçam a palavra meloeiro mas, na presença deste, não o identificam, precisando de que lhe digam "isto é o meloeiro". Na cultura há tantos vectores culturais como as actividades, sendo lícito usar termos como cultura ecológica, económica, técnica, industrial, jurídica, religiosa, etc.

A diversidade e o pluralismo são ritmicamente e pragmaticamente unificados no paradigma que, em geral acepção, se denomina Cultura, síntese critico-epistemológica, por vezes empírica, das culturas e dos saberes.

Neste cenário, para aquém das ideias, temos um horizonte imediato, mais sensível ao empirismo comum, horizonte esse onde a língua vive: o espaço das palavras e das coisas, acerca do qual talvez seja útil reflectir um pouco.

Em português melhor se diria os "nomes das coisas", mas o termo copulativo entrou no país a partir do início do séc. XX, provindo da linguística alemã e da revista Worter und Sachen (Heidelberga) dirigida por R. Meringer, que fez escola, ainda que o método já fosse anterior, a D. Luís Salvador, Arquiduque de Áustria, se devendo uma obra sobre os costumes do povo maiorquino (1980) e haja quem situe a origem do método no Orbis Pictus (1657) de Coménio. Tudo isto anterior ao exercício estruturalista de Michel Foucault (As Palavras e as Coisas, trad. port., 1968). O início da prática portuguesa do método de história das coisas ou dos objectos remonta aos fins do séc. XIX quando, em 1898, Adolfo Coelho editou o estudo intitulado "O Arado e a Charrua". A escola interessa à Linguística, à Etnografia, à Ergologia, à Antropologia e, sem dúvida à Filosofia, pese embora o peculiar de esta ser uma prática de ideias e não de coisas mediante as palavras. Não obstante, sendo vocacionada para o saber total, a Filosofia, pelo menos no âmbito de várias disciplinas utensiliares, (Antropologia, Estética, Filologia, Religião, Cultura situada, Sociologia), há vantagem, já em dispor de um mínimo de iniciação na disciplina, já em levar a efeito exercícios práticos, de campo ou de laboratório (bestiários, erbários, lapidários).

As mutações sócio-culturais, se produzem novas coisas e novas palavras para essas novas coisas, também causam o olvido ou a morte de outras. As nomenclaturas antigas das artes de avaliar, medir e pesar; as designações dos símbolos monetários; os nomes de profissões que se perderam, tanto ao nível do trabalho como das dignidades institucionais, etc., etc. são património a conhecer, pelo investigador (mesmo empírico) sob pena de não aceder na perfeição à leitura de antigos textos, por isso a importância dos Dicionários de termos antigos, ou caídos em desuso. Além disso, nem sempre o conhecimento de uma palavra supõe o conhecimento da coisa que ele denomina; há, nas aldeias do interior, pessoas que nunca de lá saíram e nunca viram, digamos, um combóio; e nas cidades há gente que conhece a palavra javali, mas nunca viu tal; ou que já leu a palavra centeio, mas não faz ideia do que seja. Análogo valor têm as listagens de vocabulário exógeno a uma língua, mas nela fixado pelo uso, ainda fazendo escola os inventários hebraizante (Cardeal Saraiva, Moisés do Espírito Santo), arabizante (Fr. João de Sousa, J. Pedro Machado) e orientalizante ou africanizante, em que dispomos de múltiplas fontes. Embora o método da objectologia seja moderno, há-de ter-se em consideração que a Literatura Portuguesa é francamente precursora da literatura de viagens, apresentando à Europa, em primeira mão, notícias das coisas da China, da Índia, do Japão (tanto da descrição de viagens como em cartas de missionários) e do Brasil e dos Andes. É certo que os escritores dessas notícias não visam a análise palavra/coisa, mas encheram as línguas europeias de coisas (palavras) novas, com facilidade identificáveis em Dicionários e Elucidários, incluindo Onomásticos e Toponímicos. A leitura relacional da coisa à palavra com suporte científico achou inúmeros cultores, entre eles avultando o assombroso José Leite de Vasconcelos com a Etnografia Portuguesa, Rocha Peixoto, (os ensaios de Etnografia Portuguesa foram organizados para edição, 1990, por Flávio Gonçalves), Adolfo Coelho (a Obra Etnográfica, em 2 vols. Foi editada, 1993, por João Leal), Carolina M. de Vasconcelos, Conde de Ficalho, e muitos outros. Instituições como a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (Porto), como que se constituiu em "escola portuense de antropologia", na sua herança se considerando A. Santos Graça (O Poveiro, 1932, reed. 1992, com pref. de L. Coimbra) ou a Sociedade Martins Sarmento (Guimarães). No plano interno, em 1940, por instruções da Comissão dos Centenários da Fundação e da Restauração, com vista ao Congresso do Mundo Português, as Juntas Distritais levaram a efeito um Inquérito Etnográfico, aldeia por aldeia, de todo se ignorando onde param os frutos desse Império (pertencente a um particular, pudemos salvar o relativo a Quadrazais, um texto de grande amplitude e precisão elaborada com o povo pelos então professores primários da freguesia, e que publicámos em Memórias de Riba Côa e da Beira Serra, Vol. I, 1977, pp. 94-107). A escola objectológica achou bom acolhimento em Coimbra, sobretudo na obra inevitável de Manuel de Paiva Boléo, e de J. G. Herculano de Carvalho, e teve sequência, a principal das quais nas obras de J. G. Herculano de Carvalho e de Jorge Dias, iniciada com Os Arados Portugueses (1948). Este artigo pretende apenas sugerir caminhos de pesquisa e, por isso, indicamos breves e digitas pistas, que podem ser aplicadas a outros sectores da vida e da cultura, no campo e na cidade, omitindo o elenco da literatura de viagens, muito extensa. O Tratado das Significações das Plantas, Flores e Frutos que se referem na Sagrada Escritura (1622) de Fr. Isidro Barreira, vem sempre a preceito, e, muito mais tardio, A Botânica na Aldeia (1963) de Raul O. Feijão lê-se como novela. As técnicas foram objecto preferencial dos etnógrafos, sendo imitáveis os contributos de Sebastião Pessanha (Arrufadas de Coimbra, 1915; O Ferrado, O Picheiro e a Ferrada. Vasilhas por Ordenhar nas Aldeias do Alentejo e das Beiras, 1955; Pás de Moleiro, 1959); de Azinhal Abelho (A Aventura da Cortiça, Cancioneiro do Vinho Português, 1978; Elogio da Província, 1969), de Maria Helena N. de Morais (A Dobadoira, de 1958), de José Pedro Machado (Terminologia Naval, 1963), de Fausto Briosa (Glossário Ilustrado de Mecanização Agrícola, 1984, trilingue, que marca a mudança da antiga para a moderna técnica agrícola). Também o jogo e o prazer (Brincadeiras da Minha Meninice, Jogos de Infância nas Beiras, por vários Autores, 1999, ou, de Francisco Manso (Framar), Caçadas aos Javalis, com os termos cinegéticos. Na área da cultura religiosa é típico o Roteiro Lexical do Culto e Festas do Espírito Santo nos Açores, (1987) de M. Breda Simões. Associando a festa e a gastronomia, é cativante a obra da Maria de Lurdes Modesto, que, além de cozinheira, é uma alta sensibilidade cultural, Festas do Povo Português (1999) de colaboração com Afonso Praça e Nuno Calvet. É possível elaborar tantos estudos quantas as actividades humanas, incluindo a tipografia (Dicionário do Livro, de Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão, 198), e as situações económicas locais, sociais e religiosas, neste último aspecto sendo de anotar que muitos fiéis ignoram os nomes das alfaias e dos paramentos de culto. Parece que, ou pela origem social dos autores, ou por qualquer outro motivo, tem sido dada preferência a temas rurais, embora as cidades precisem de análogos exercícios. De resto, quanto a nomenclaturas do mundo rural, a nossa literatura é vastíssima, obras de Camilo, de Aquilino, de Thomaz de Figueiredo, de Leal Freire, de Paulo Leitão Batista, abundando em regionalismos e tópicos lexicográficos. É, de resto, possível criar obra literária só com nomes de coisas, vidé a quadra popular ribacudana — "É rico quem tem carvalhos/ Pois dá por ano quatro frutos/ bugalhas e bugalhos/ bolotas e maçacucos". Ou no poema relativo à cultura saloia, de que registamos uma quadra: "O alqueive, o cabedudo/ o rego d'água, o coalho/ O indez e o cuiço/ a cilha e o chocalho" (Celestino Costa, Filosofia Saloia, p. 31).(1)

Por aqui se ergue a díade cultura formal e cultura material, ao modo de como se considera o binário escola material/escola formal: o quanto e o como. Há uma acultura (sem cultura), uma cultura (com) e uma incultura (contra), sendo estas posições expressas nos contextos sócio-evolutivo e ambientais. Antinomias são possíveis: a cultura contra a natura, e vice-versa. A leitura materialista prefere que a cultura não é um modo de ser, nem de pensar, mas apenas um modo de estar, como se, na despersonalização da alma humana, o estar não solicitasse o pensar. É curioso o facto de a expressão "cultura portuguesa" ser repetidamente utilizada como forma de protesto contra a "filosofia" e contra a "filosofia portuguesa", escamoteando a realeza de que a cultura é um pensamento pensado, estabelecido, funcional, que deriva da admiração e da pesquisa, predicados próprios do espírito filosófico, por ser impossível haver cultura sem prévia filosofia, salvo se a comunidade nacional se houver demitido do pensar por conta própria, e optar por viver apenas em função do pensar dos outros, alógenos ou exógenos, numa vivência mentecapta. Com efeito, constituída em estrutura existencial, dinâmica e operativa, a cultura é um acto vital, um acto de inteligência, o fruto do conhecimento intelectivo e empírico, o de como se conhece, e para que se conhece: o universo dos princípios, dos meios dos fins do saber e do viver. Ela processa-se num quadro de valores sujeitos a modificações, a flutuações e a transcensões. É tão interior à comunidade que esta parece não dispor de poder sobre a cultura, sendo ela o caminho, e o actor da interpretação das funções de uma Cultura face a outra, sobretudo nos casos de transmissão. Exemplo continua sendo, pese embora a quem discorda, a dinâmica de aculturação e de incultação decorrente dos Descobrimentos. Houve lugar para a portugalização e, na recíproca, ligar para a orientalização, e para outras mais reciprocidades transaccionais, sobretudo na sectorial relativa ao diálogo Cultura/Religião. Não há cultura sem culto, seja este ordenado à transcendência, ou à imanência, porque há sempre Deus, ainda que este nos seja dado sob o nome de um qualquer ídolo, idealismo, ideologia ou finalismo.

(continua)
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(1) Bib: Os títulos citados são meras sugestões, na experiência pessoal do quotidiano, mesmo sem recurso a livros, cada pessoa podendo elaborar um exercício. Todavia, indicam-se algumas fontes: Durval P. de Lima, Bibliografia Corográfica Portuguesa, Lxª, 7 vols., 1962-1975; Benjamim Enes Pereira, Bibliografia Analítica de Etnografia Portuguesa, Lxª, 1965: P. Gomes, Práticas de Etnografia, Guarda, 1968; M. de Paiva Boléo, Lista das Teses de Licenciatura em Linguística Portuguesa desde 1942 até 1971, Coimbra, 1971. [São fontes recursivas, publicações como o Mensário das Casas do Povo(1946-1971), a Revista de Portugal (de Álvaro Pinto), as publicações culturais de diversas autarquias, e as monografias de localidades].

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