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2004/06/15

APÊNDICE Cultura e Lusofonia (II) 

(continuação)

Prof. J. Pinharanda Gomes

Cumpre evitar o dogmatismo na exegese cultural, importando compreender que ela é um corpo vivo e, portanto, mutável. Cultura requer prévia Filosofia. Na ordem matricial entende-se que não há uma cultura , mas culturas, e que, mesmo na unidade de culto, há diversidade de culturas, pluralismo. Uma só é a cabeça, diversos os órgãos de expressão e de acção. E
o corpo da acção requer uma alma de contemplação. Chave: a cultura está para a filosofia como a liturgia para a religião. Se a Pátria assenta numa cultura, licita é a forma de patriosofia, modelada por António Quadros, como procura do saber da Pátria.

A alma sensível de uma comunidade é a língua. Factores da economia ou da política são meras circunstâncias da vida da comunidade, cuja alma é a língua. O dito de Fernando Pessoa — "a minha pátria é a língua portuguesa" — até pode apassivar-se numa interpretação diferente da usual, a saber: Pessoa ganhou a vida, dispôs de uma economia pessoal suficiente, embora modesta, para fazer o que fez sem depender, nem de mecenatos, nem de subsídios estaduais, traduzindo da língua portuguesa para a inglesa, na actividade comercial. Se Portugal falasse inglês, Pessoa não teria vida baseada na língua portuguesa, pois o seu trabalho como tradutor seria desnecessário.

Claro que a economia condiciona a vida das línguas e das culturas, havendo até casos históricos consideráveis como anomalias. Sempre foi costume que os vendedores falassem a língua dos clientes, ainda hoje assim é — pobre do comerciante que não fala com o cliente na língua do cliente. O cliente não tem de falar a língua do comerciante... Ora, no ciclo da revolução industrial, a Inglaterra e os Estados Unidos deram tais largos passos em inovação de equipamentos industriais, não disponíveis em outras fontes de abastecimento, que os clientes tiveram de aprender a língua dos fornecedores, enquanto estes nada houveram de saber da língua dos clientes. E muito do mais importante comércio com os países da língua anglo-saxónica passou pelas mãos dos tradutores.

Idêntico fenómeno está vivo por causa das tecnologias de ponta e das informáticas, cujos programas são de matriz anglo-saxónica. Eis um testemunho pessoal: antes da II. Grande Guerra, uma pessoa que procurasse emprego num escritório comercial, era solicitado a saber ler, contar e escrever, em língua portuguesa. Após a II. Grande Guerra, os anúncios das empresas em busca de funcionários, já pediam conhecimentos de inglês e, por vezes, domínio da máquina de escrever, como Fernando Pessoa. Hoje em dia, as empresas requerem, não apenas a língua inglesa mas prática dos computadores, no mínimo do ponto de vista do utilizador. É óbvio que vale mais quem domine duas línguas do que quem domine apenas uma; e os factores económicos, que são condicionantes, podem levar as pessoas a dar mais valor à língua de trabalho do que à língua da cultura mátria. Todavia, importa manter as águas separadas tendo em vista que a comunidade de vivência dispõe de uma língua, e que é nessa língua que se faz comunidade.

Comunidade é universal de união, de comum união, de comunhão, e esta só na comunicação se realiza: a língua, elemento de comunicação é o traço da comum união. É falando que a gente se entende; e, por vezes, se desentende. Não precisamos de contraír o vírus da xenofobia, basta termos consciência da nossa língua original. Talvez nas relações económicas e políticas internacionais, algumas vezes tenhamos de abdicar do direito de falarmos como falamos, mas é sempre de elogiar quem assuma a sua língua. Elogio é devido, por exemplo, ao Presidente brasileiro Lula da Silva que, há meses atrás, em palavras algo rudimentares e porventura bruscas, afirmou: "quero é falar a língua dos 150 milhões dos meus compatriotas brasileiros, para eles me entenderem." Lula falava na ONU, em português...

Voltando às palavras de vida, recordamos o registo poético constante da Bíblia para levar os judeus à compreensão da origem dos nomes das coisas: "Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todos as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse" (Gn., 2, 19).

Este registo poético é também noético, ou hermenêutico. Dele, os intérpretes extraíram as duas fundamentais ideias ou noções do saber acerca do existente: a ideia de obra da criação e a ideia de obra do carro. Em termos ontofenomenológicos quer dizer que um fenómeno é o acto de criar as coisas e os seres, e outro é o acto de os transportar, de os comunicar, a obra do carro. A obra do carro inere à humanidade. Se a criação inere à potência divina, o carro inere à potência humana: Deus criou, o homem nominou, e continua a nominar.

É o nome que serve de carro à coisa, ou ao ser, ou ao ente. A Linguística tem clara noção destas categorias, ao propor os conceitos de significante e de significado. Todavia, há lugar para a trilogia da realidade. Em primeiro lugar temos a coisa enquanto coisa, por ex., cadeira, esta coisa que palpamos e onde nos assentamos; em segundo lugar, a palavra cadeira, que exprime a cadeira, mesmo que ela, cadeira, não esteja aí, visível, todavia nós, a vendo na palavra, que a transporta, e no-la apresenta sob a forma de palavra; em terceiro lugar, a subjectividade da ideia ou imagem de cadeira, que cada um faz. Cadeira de palha, ou cadeira de ferro, ou cadeira palaciana. As imagens são infinitas. E até haverá quem não seja capaz de aceder à visão subjectiva da coisa, nem mesmo lendo ou ouvindo o carro que a transporta, a palavra.

Por aqui se situa a chamada ileteracia.

Distinguimos: analfabetismo é a ignorância das letras do alfabeto; ileteracia é a ignorância do significado das palavras, ou de algumas palavras, por desconhecimento das cousas, ou por falta de iniciação na disciplina.

Há ileteracia quando alguém não denomina a nomenclatura de uma disciplina, mas hoje em dia essa carência parece ter-se alargado, havendo estudos que provam que imensa multidão de pessoas, e aludimos ao caso português, não consegue interpretar nem explicar o que está a ler: lê, mas não entende. (2) Todavia, não tem dúvidas quando lê o jornal desportivo, porque imergiu nas nomenclaturas. Aliás, temos milhares de pessoas cuja única leitura é o jornal desportivo, com exclusão de qualquer outra, o que minimiza o horizonte cultural e comunicacional. O jornal A Bola foi decisivo na alfabetização de muita gente, e até nos Seminários, os alunos chamavam à A Bola, "suplemento bíblico". Só liam, por dever, a Bíblia e os manuais escolares e, claro, A Bola...

A ileteracia torna-se indesculpável quando estamos face ao vocabulário comum e corrente, mas torna-se desculpável quando somos postos face a um Vocabulário ou a sintagmas, ou a siglas, como que expressamente criadas para confundir, para formular uma nomenclatura esotérica e ocultista, só por alguns poucos dominável. Aludimos ao mundo das siglas, que tanto abundam no mundo, inacessíveis ao comum dos mortais: ONU, NATO, CEE, CE, UN, PALOP'S, etc., etc. Com a agravante de algumas dessas siglas serem literalmente transportas do inglês, sem respeito pela forma portuguesa (V. g: Nato vs Otan, UN vs NU, etc.). O comum das gentes, espaço vital da língua, não se entende com isso. Surge então a análise dita científica da ileteracia, clamando que os mortais não cedem aos conteúdos.

Importa dizer com toda a justa brusquidão: essa ileteracia é causada pelos agentes do poder, para terem mais poder.

O povo fica inerme.

(continua)
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(2) OCDE, Education at a glance 2003, cit. in Correio da Manhã, n.º 8884, Lisboa, 17.09.03, p. 15.

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