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2003/10/27

AS MINHAS MEMÓRIAS DO MANUEL MARIA MÚRIAS (II) 

António da Cruz Rodrigues

(continuação do post de 2003/10/24)


Depois da prisão: a Rua. Sem ironia...

Quando saiu da Penitenciária, depois de quase catorze meses de prisão sem culpa formada - visitei-o lá duas vezes e continuava feroz e pronto para a blague como sempre - o Múrias vinha ansioso e pronto para novas batalhas e a transbordar da sua verve combativa, como que renovada e reciclada pela grandeza da experiência que para ele foi a prisão. Talvez de tão injusta, que por isso não o diminuiu nem na sua inteligência, nem na sua dignidade, antes pelo contrário.

Pedi-lhe que relatasse para a Resistência, que eu dirigia - quase a única e a mais duradoura sobrevivente à Revolução das publicações de análise doutrinária, de crítica e de combate de antes de Abril - pedi ao Múrias que relatasse para aí as suas experiências e meditações da prisão, tão fascinado me senti com os seus relatos orais. Ele era aliás um velho colaborador da revista.

Correspondeu por isso prontamente ao meu convite, em artigo que convido os leitores de agora a ler ou reler se tiverem a Resistência à mão, para imaginarem ou recordarem as extraordinárias impressões que causou *.

Foi ali que o Múrias renasceu para o jornalismo - e com que brilho! -
depois de libertado, antes de lançar-se, um ano e tal mais tarde, na criação, direcção e redacção da Rua, em cuja origem e vida nada tive, talvez porque andávamos ambos exclusivamente absorvidos e dominados cada um por seu projecto: ele a Rua e eu a Universidade Livre e comigo todo o grupo do Círculo de Estudos Sociais Vector e alguns convidados.

Julgo que um dos maiores prejuízos - ou crimes? - causados - cometidos? - pelo PREC foi ter sequestrado na prisão, entre Caxias e a Penitenciária, durante o longo período de 14 meses, uma parte muito importante da elite social e cultural portuguesa.

Atrevo-me a dizer que não tanto pela duração do período de prisão, e prisão sem provas nem pronúncia, mas sobretudo pelo que esse período, coincidente com o PREC, significou para a vivência nacional dos Portugueses. Sob esse aspecto, terá sido mesmo - creio firmemente - o período mais importante destes 50 anos da vida dos Portugueses como entidade colectiva nacional, agudamente consciente de si mesma, período só sobrepujado pela grandeza da mobilização nacional durante alguns anos das guerras do Ultramar.

Deste ponto de vista, o Múrias foi seguramente uma das grandes vítimas do PREC abrilino. Cuidadosamente guardado como ele dizia, em Caxias e na Penitenciária pelo pavor que os donos do PREC tinham da reacção (nacional) - talvez o maior factor da derrota final deles - o Múrias não pôde viver na carne e no convívio ombro a ombro, de todos os dias, como todos nós os que ficámos cá fora, a magnitude e o sublime dessa experiência espontaneamente colectiva, durante esses meses e sobretudo entre 13 de Março e 25 de Novembro de 1975, numa apoteose épica que atirava os Portugueses como um homem só ou uma só família, numa só e única expectativa, contra a frente comunista e anti-nacional dos partidos e organizações militares ou civis de esquerda.

Ao Múrias, como a tantos outros companheiros seus de cadeia, ficou a faltar-lhes seguramente essa experiência intransmissível para compreenderem que, finda ela, o combate que se impunha à Direita já não era o mesmo combate de antes do 28 de Setembro. Já não se impunha tanto o combate político-polémico do Bandarra, retomado pela Rua, mas outro, o combate cultural, de que a maior expressão, na sociedade civil, viria a ser - o que até hoje ninguém foi capaz de negar - a criação da Universidade Livre.

Uma constatação se impõe, porém: se a Rua foi derrotada por carência já de ambiente oportuno, a Universidade Livre também foi derrotada, ainda que pelo contrário, isto é, por excesso de receptividade ambiente. Muitos videirinhos do meio universitário entenderam a Universidade privada antes de mais como uma formidável oportunidade de negócio, e não descansaram enquanto não convenceram o Ministro da Educação a dar-lhes, duma assentada, outras quatro ou cinco universidades — que acolheram os alunos da Universidade Livre, para isso a tempo impedida de funcionar pelo ministro cúmplice — seguidas essas, nos dois ou três anos depois, de mais quatro ou cinco novas privadas.

Os tristes resultados já públicos de certas dessas universidades não impedirão de reconhecer que, seja como for e embora transformado em negócio chorudo o objectivo principal imediato da maioria das universidades portuguesas privadas, o facto essencial é que graças à incidência do ensino universitário privado, inventado pela Universidade Livre, o tendencial monolitismo esquerdista da sociedade portuguesa a seguir a Abril foi definitivamente derrotado. Por decidida opção, aliás, da sociedade civil que tão rápida e largamente correspondeu à sua criação.

Tudo visto, creio não exagerar dizendo que durante alguns anos muito ou quase tudo o que era elite portuguesa de Direita, por esta congregado ou satelitizado, esteve efectivamente alinhado à volta d' a Rua e da Universidade Livre. Mais importante que isso, porém, será reconhecer que sem o caminho aberto pela U.L. muitas dezenas, mesmo centenas de milhares de jovens portugueses não teriam tido acesso ao ensino universitário.

Sem esquecer que a U.L. foi a principal vítima sacrificada da mais feroz guerra de facções dentro da Direita portuguesa, após Abril. Outra vítima terá sido a Rua?


O polemetista: de como Manuel Maria Múrias calou Mário Sores

Nos tempos que seguiram ao fim d’a Rua, eu e o Manuel Maria recomeçamos a encontrar-nos com certa frequência. E aí por 1988, quando a Universidade Livre, vítima de muitos ódios e em especial o ódio do Ministro João de Deus Pinheiro, já me deixava tempo desocupado, e quando ele Múrias já se apresentava recuperado da queda d'a Rua, de novo cheio de criatividade intelectual e capacidade de afirmação, foi então que se me proporcionou, por razões pessoais que aqui não interessam, propor ao Manuel Maria que fizesse para nós, a Sogelivre, proprietária da U .L., um livro sobre o Chiado, que tinha ardido quase dois anos antes e era preciso "reconstruir" ou não deixar perder, no imaginário nacional.

Debatemos muito o assunto entre nós ao longo de muitas conversas quase diárias e, depois de muitas incertezas, ele acabou por decidir-se, e eu aceitei, pelo que viria a ser um belíssimo roteiro histórico, cultural e social do Chiado.

Mas, enquanto pesquisava nas bibliotecas e arquivos, com vista ao roteiro, o Múrias foi congeminando e desenvolvendo a ideia, que me propôs e eu também aceitei sem hesitar, do livro "De Salazar a Costa Gomes", que começou a escrever mal acabou o Chiado. Foi-mo "contando" com crescente entusiasmo enquanto o livro crescia e eu crescendo na certeza de estar a assistir à génese duma grande obra, talvez genial.

Tinha-se celebrado entretanto o centenário do nascimento do Doutor Salazar, em 1989. Logo a seguir, a partir de um grupo dos que, por iniciativa do Vector, nos deslocámos às comemorações do Vimieiro, em 28 de Julho, nomeadamente o Adelino Felgueiras Barreto, o Herlânder Duarte, o Manuel Arnao Metello e o José Carlos de Athayde de Tavares, a que se juntaram outros, como José Pinheiro da Silva, Francisco Ferro, Rui da Palma Carlos, Eduardo Conceição, decidiu-se criar o Núcleo de Estudos Oliveira Salazar, ou N.E.O.S..

O Manuel Maria era pouco afeito a comemorativismos e talvez ainda menos a grupismos. Não se interessou, portanto, por aí além, pelo N.E.O.S. em regime de comissão instaladora, a que presidi - mas apanhei-o distraído e consegui dele o que viria a ser, admito, um dos mais se não o mais importante estudo em defesa da personalidade de Oliveira Salazar promovido até hoje pelo N .E.O.S..

Conto a história simples.

Um dia, creio que em Abril ou Maio de 1991, ia eu a entrar ou a sair da estação do Cais do Sodré, a pensar indignado nas aleivosias produzidas por Mário Soares num artigo publicado nessa manhã no Público, quando inesperadamente dou com o Manuel Maria a sair ou a entrar, a quem logo perguntei se lera o texto insultuoso. «Li, li — disse-me — li, li aquela merda». «Pois então torne a ler e prepare a resposta que você é a pessoa indicada que temos para responder-lhe» — exigi eu em nome do N.E.O.S. «Bem, vou pensar. Não vejo para quê pegar-lhe» — respondeu dubitativo.

Mas fiquei com a certeza de que ele não falharia.

De tal modo o fez que passados poucos dias me entregou o feroz e lucidíssimo artigo que viríamos logo a publicar em forma de opúsculo e se acha hoje entre as doze colaborações do volume também editado pela Nova Arrancada, com o título de Salazar Sem Máscaras.

Em substância, defendia nele o Manuel Maria que na sua catilinada não fazia Soares outra coisa senão, meio consciente ou subconsciente, dar largas a uma espécie de complexo edipiano: atacando o Dr. Salazar, vingava-se por queixas mais ou menos recalcadas que teria contra o próprio Pai dele, o Dr. João Soares. Segundo o Múrias, pois, ao vilipendiar a memória de Salazar, o que Mário Soares fazia inconscientemente ou subconscientemente era limitar-se a matar a memória do Pai.

A verdade é que nunca mais se ouviram os tonitruantes ataques de Mário Soares contra o Dr. Salazar, de tão certeira foi a contra- ofensiva do Múrias.

Certo é que as melhores inspirações nos vêm muitas vezes dos piores adversários.

O Múrias contou-me como foi.

Mal me deixara no encontro do Cais do Sodré, quando deu com o estendal dum desses livreiros ambulantes ali costumeiros. Logo os olhares lhe terão caído num qualquer livro sobre psicanálise, que não hesitou em comprar e ler entusiasmado para concluir que a carapuça psicanalítica enfiava como uma luva no Mário Soares denegridor do antigo Presidente do Conselho.

Tive, por isso, a talvez excessiva prudência de submeter a resposta do Múrias ao parecer técnico dum psiquiatra, naturalmente seguro conhecedor dos conceitos e descobertas de Freud e seus epígonos. O já referido Dr. Eduardo Conceição, psiquiatra, por mim a tal respeito ouvido, e como disse membro do N .E.O.S., não teve dúvidas em assegurar-me que a resposta do Múrias era perfeitamente conforme aos cânones psicanalíticos.

O artigo foi um êxito.

E Mário Soares não só não voltou a vilipendiar o Doutor Salazar, como até veio a produzir alguma coisa em defesa, no fundo, de Salazar: lembram-se do célebre relatório por ele subscrito sobre a política de Salazar, durante a 2ª Guerra Mundial, em relação com a famosíssima questão do ouro dos Judeus? Será que, consciente ou subconsciente, o artigo do Múrias terá ajudado Soares a descartar-se, e airosamente, daquela alhada que lhe armaram?...
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* Números 115/116 da "Resistência" de 15/12/74.

(continua num próximo post)

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