2003/10/15
NACIONALISMO ONTEM E HOJE (III)
Comunicação ao I Congresso Nacionalista Português - Lisboa, 13 e 14 de Outubro de 2001
(continuação do post de 2003/10/14)
Prof. Dr. António José de Brito
O nacionalismo salazarista, com o lema "tudo pela nação nada contra a nação" — que não pode ser tomado à letra claro, porque Salazar, infelizmente sempre se proclamou anti-totalitário — alheio ao monarquismo e até à importância decisiva do factor político, não deixou, no entanto, de buscar, como indispensável, um poder com uma característica monárquica (embora não esgote a monarquia): o governo vitalício de um só.
Para além das formulas escritas da constituição, mantendo-se firme no repúdio dos partidos e da liberdade de imprensa, criando uma organização cívica, acaso frouxa, mas a única que, pelo menos até 1945, apresentava candidaturas eleitorais e com a direcção perpétua de Salazar, no Estado Novo conseguiu-se que este concentrasse em si a governação. Dele dependia, através da U.N., a designação dos deputados para a Assembleia Nacional, bem como a do Presidente da República que, em termos legais, designava o Presidente do Conselho (cargo oficialmente ocupado por Salazar). O sistema era imperfeito e artificial, pois poderia haver "sublevações", quer do Presidente da Republica (o que esteve prestes a acontecer com Craveiro Lopes), quer com a Assembleia, tanto mais que, depois de 1945, hélas, foram permitidos outros candidatos além dos da U.N. Mas, sem partidos organizados e sem a liberdade de imprensa, as probabilidades de vitória da anti-nação eram reduzidas.
O grande perigo estava nas manobras internas de ex-nacionalistas convertidos à mitologia reinante no mundo, com vistas a preservar o futuro pessoal.
De qualquer maneira, entre ventos e marés, o sistema foi funcionando.
Em 1939, eclodiu a segunda guerra mundial e bem podemos dizer que se iniciou o declínio do nacionalismo português. Essa guerra foi a cruzada das democracias como o tinha sido, em menores proporções, a guerra civil de Espanha.
Na última o nacionalismo português, pela voz e a pena dos seus mentores autorizados, alinhou, como era de prever, contra os "rojos".
Em 1939, foram numerosas as defecções. Alguns exemplos. Um diário lisboeta, cujo director tivera afinidades com a Acção Realista, bastante elogiou o fascismo, atacou a Frente Popular francesa, apoiou Franco e era salazarista firme, (um dos seus mais conceituados colaboradores foi convidado do governo nazi e publicou crónicas assaz amáveis para com o III Reich), diário de grande audiência no público da direita de então, passou a alinhar com os cruzados das democracias e nem a entrada da União Soviética no clube destas lhe modificou a atitude. Desenvolveu, largamente, a tontice segundo o qual nazismo era igual ou pior que comunismo. Boa parte dos leitores, a princípio não entendendo grande coisa, ia-se deixando influenciar, contactando pouco a pouco com elementos e ideias "indesejáveis".
Hipólito Raposo que em 1936 asseverava "se não fossem as reacções salvadoras da Itália e da Alemanha… a Europa teria abdicado do seu título de mãe da civilização cristã"1 em 1940, no prefácio do livro Amar e servir alude aos "totalitarismos em seus exageros criminosos, desprezadores da moral e dos direitos das gentes, negadores da personalidade humana".2 E o velho lutador contra a monarquia constitucional, que equiparava à república, ei-lo que desponta a elogiar a pseudo monarquia inglesa bradando "na Grã Bretanha reina uma monarquia que ainda há pouco deu prova da sua vitalidade, uma nobreza com função social e uma câmara dos Lordes com pares hereditários"3, monarquia, nobreza e Câmara dos Lordes que não passavam, naquela época, na Grã Bretanha, de presenças decorativas.
E, depois, Hipólito investe contra o Estado Novo que corporiza numa imaginária República da Ilusitânia a qual "fica situada à maior latitude do Arbítrio Pessoal e na maior longitude da Razão política".4
"Convertendo ou pervertendo os meios em fins na Ilusitânia deixou de haver escala e medida nos sacrifícios impostos pelo estatismo puro a benefício de quem lá governa e administra"5. Salazar e Carmona a encherem os bolsos como hoje os abrilinos. Enfim! E, perdido todo o bom senso, Hipólito proclama que "a mendicidade aberta ou descoberta é o meio de vida de metade da população"6 de Lisboa. Embora muito jovem, vivi nessa época e encolho os ombros.
Quanto a Pequito Rebelo, em 1942, numa conferência proclama "a doutrina da personalidade um indicador da tendência da evolução"7 achando que "o integralismo se mostrou mais pró personalista que anti-individualista"8, numa auto-interpretação assaz discutível. Depois, aponta à segunda geração integralista a missão de "combater a Pseudo Nação"9 que era como designava o Estado Novo. Isto no momento em que no nosso país a anti-nação erguia de novo a cabeça. Mas combater a pseudo nação de que ponto de vista? Pelo que tinha de transigente, de vestígios de democracia, de não rigorosamente autoritária? Nada disso. Interessava-lhe como um dos pontos básicos a "salvaguarda da dignidade e dos direitos da pessoa humana".10
E na altura em que a Inglaterra era a campeã da democracia lá vinha dedicar um volume assaz fantasista "Ao aspecto espiritual da Aliança Inglesa".
Por seu turno Almeida Braga, em 1944, no prefácio a livro de um militar heróico, que se mostrou insensato leader político (diga-se entre parêntesis que por exemplo em 37 ele achava que "o nosso libelo contra o liberalismo não visa as alegadas finalidades de liberdade e fraternidade que são justas e cristãs e como tais dignas de franca aprovação, mas sim apenas as suas fórmulas de realização prática"11, Almeida Braga, repetimos, exalta "a liberdade política"12, condena "a rigidez molesta da censura"13 e lembrado, por certo, dos elogios que, na revista Integralismo Lusitano — Estudos Portugueses, vol. II, fascículo IV, Julho de 1933, p. 242 e fascículo VI, Agosto de 1933, pp. 327-328, sob os títulos, respectivamente, "Itália gloriosa" e "Giovinezza, Giovinezza", quando já tinha sido formulada por Mussolini (e Gentile) o que pitorescamente classifica de "doutrina satânica"14, dedicara ao Fascismo, adverte "já pode dizer-se" (o já é uma delícia) que "o fascismo foi um erro político".15
Alberto de Monsaraz, em 1945, em plena ofensiva do MUD contra o Estado Novo, em que anti-nação parecia prestes a triunfar, lá veio com um opúsculo Altura Solar, exalçando "as múltiplas liberdades individuais com que se dignifica a personalidade humana"16 e apontando "o alto exemplo da Inglaterra monárquica, derradeiro baluarte de liberdades".17
O mal que estes desvios doutrinários produziram nos ambientes nacionalistas, que veneravam os autores mencionados como mestres, foi incalculável.
No momento em que parecia que se ia voltar ao caos anterior ao 28 de Maio e o nacionalismo seria varrido da terra, os mais respeitados dos seus fundadores resolviam alinhar com os erros triunfantes, trazendo a maior das desorientações a velhos e novos.
Felizmente, houve Alfredo Pimenta que se manteve impávido face à onda de desvario, apegado às antigas verdades, recusando-se sempre a pactuar com o liberalismo, a democracia, os direitos do homem, a eminente dignidade da pessoa humana e quejandas tolices.
Por circunstâncias ligadas à guerra fria, o Estado Novo de Salazar pôde ir sobrevivendo, mas já enfraquecido, forçado a relações perigosas e privado do que poderia ser, no plano doutrinário, uma crítica positiva de extrema direita, visando a monarquia integral.
Ao invés, em 1947, apareceu uma gazeta dita monárquica Diário Nacional, patrocinado pelos ex-integralistas que referimos, um dos quais — Alberto de Monsaraz — resolveu considerar as denominadas quatro liberdades de Roosevelt — a que chamava Carta do Atlântico — como pilares da Realeza 18. Essa gazeta era entusiasta da monarquia democrática, ou seja, do círculo quadrado. Alfredo Pimenta combateu energicamente o triste papel, que não durou muito tempo. Ai de nós, deixou semente. Nas várias campanhas eleitorais lá iam aparecendo listas que se proclamavam monárquicas e o que eram realmente é demo-liberais.
Em 1950, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Almeida Braga deram à luz, creio que na pequena revista Gil Vicente um manifesto, republicado na Cidade Nova, IIª série, n.º 6, de 1951, em que além da habitual reivindicação da liberdade de imprensa propunham que as Cortes tivessem funções deliberativas na votação e alteração da Lei Fundamental.19
Precisamente um dos pontos que os fez repudiar o Pacto de Paris em 1922. Onde tínhamos chegado.
Em 1950 também, morreu Alfredo Pimenta figura insubstituível e insubstituída do nacionalismo português.
Em 1961 os Estados Unidos — os grandes inimigos actuais do terrorismo —, que já haviam feito contra a Alemanha e outros países guerra aérea visando sistematicamente populações civis, — armaram e pagaram a terroristas que, de 14 a 15 de Março, procederam a terríveis massacres em Angola, em nome da autodeterminação e da independência dos povos.
Uma fracção das Forças Armadas, impulsionada pelo então ministro da defesa — que tinha como subsecretário o futuro marechal Costa Gomes, mais conhecido pelo "rolha" — tentou, em Abril, um golpe para afastar Salazar do governo, com o consequente abandono do nosso Ultramar.
Falhou. E a 13, na rádio e na televisão, ouviu-se a voz daquele dizendo "pareceu que a concentração de poderes na Presidência do Conselho e da Defesa Nacional bem como a alteração de alguns altos postos facilitaria e abreviaria as providências necessárias para a defesa eficaz da Província " (Angola) "e a garantia da vida, do trabalho e do sossego das populações. Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão. Como um só dia pode poupar sacrifícios e vidas é necessário não desperdiçar desse dia uma só hora para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim de defender Angola e com ela a integridade da nação".
A emoção foi enorme e mesmo gente da oposição não regateou o seu aplauso. Mas, meses depois, em Dezembro, a guarnição de Goa rendia-se sem luta e o facto não despertou uma reacção indignada em especial entre os exércitos de terra, mar e ar. O combate pela honra não tinha, pelos vistos, grande popularidade.
Saliente-se que Pequito Rebelo partiu para Angola com o seu avião a prestar os serviços que pudesse e fossem consentâneos com a sua idade. E os monárquicos — também — democráticos enfileiraram com palavra na defesa do Ultramar.
A guerra que nos era movida e que, por natureza seria longa, tinha uma raiz democrática patente. Defender o Ultramar e perfilhar doutrinas que conduziam via autodeterminação à possibilidade do arrear da bandeira revelava-se absurdo. E não tardou que se exigisse a discussão livre do problema ultramarino, logo com lícita propaganda abandonista e se apoiasse a celebérrima dita autodeterminação. Foi nesse período que a figura de Salazar assumiu proporções nunca vistas. Exemplo de firmeza de persistência, de coragem perante as pressões do estrangeiro, de devoção à causa pública, quase solitário ou mal acompanhado (um ministro, mesmo competente na sua estrita especialidade, era abandonista), com militares em grande parte só desejosos de voltar ao rectângulo e suas delícias, Salazar foi modelo de honra e fidelidade, do antes lutar que curvar-se, dos homens de antanho.20
O contrário se pode dizer de quem veio a ocupar-lhe a posição governativa: Marcello Caetano. Permeável, depois de longa evolução, às ideias do tempo, desde há muito partidário da mutilação do território nacional, Marcello Caetano hasteou o pendão da abertura liberal e da autonomia progressiva cujo termo, consoante declarou nas Minhas Memórias e O 25 de Abril e o Ultramar21, eram as chamadas independências. Para lugares importantes chamou renegados da extrema direita como Melo e Castro e Veiga Simão e também inimigos notórios do regime ao estilo do microscópico Sá Carneiro. Os resultados estão à vista. Nas vésperas do 25 de Abril o chefe de Estado-Maior das F.A. era Costa Gomes — o da conspiração de Botelho Moniz — e o vice-chefe o famoso eguariço António de Spínola que gozava, merecida ou imerecidamente, de grande prestígio nos meios castrenses. Nele a autodeterminação e democracia tinham feito faísca cerebral de que resultou um livro, abaixo de toda a classificação, denominado Portugal e o Futuro. Ambos Costa Gomes e Spínola patrocinavam os m.f.a. que, quando tiveram a certeza de que não haveria resistência séria vieram para a rua aos urros de "solução política" (como se a guerra não fosse uma solução política) e sobretudo de regresso a quartéis.
Na passagem da república coroada para a república de barrete frígio ainda houve um simulacro de combate.
Quando se tratou de esquartejar uma pátria nenhum dos heróis cobertos de galões ou estrelas disparou um só tiro. E a grande massa da população civil ou encolheu os ombros ou até aplaudiu.
O património secular (e garantia do futuro) que era a nação foi assim destruído pela vontade das gerações que tinham obrigação de o defender, obrigação especialmente acentuada em relação aos que por escolha envergavam uma farda. Portugal desapareceu, é uma recordação.
_______________________________________
1 Hipólito Raposo, Aula Régia, Porto, Civilização, 1936, p. XXX.
2 Hipólito Raposo, Amar e Servir, Porto, Civilização, p. XX,
3 Hipólito Raposo, Idem, p. XX.
4 Hipólito Raposo, Idem, p. XXII.
5 Hipolito Raposo, Idem, p. XXVI.
6 Hipólito Raposo, Idem, p.XXVIII.
7 Pequito Rebelo, Pela Dedução à Monarquia, cit., p. 85. Saliente-se que nesta edição estão textos muito posteriores a Pela Dedução à Monarquia de 1914.
8 Pequito Rebelo, Idem, p. 286.
9 Pequito Rebelo, Idem, p. 280.
10 Pequito Rebelo, Idem, p. 295.
11 Paiva Couceiro, Profissão de Fé, Lisboa, Gama, 1944, p. 69.
12 Luís Almeida Braga, Prefácio à Profissão de Fé citada na nota anterior, p. XV.
13 Luís Almeida Braga, Idem, p. XV.
14 Luís Almeida Braga, Idem, p. XII. Era a concepção, habitualmente mal compreendida, do estado ético.
15 Luís Almeida Braga, Idem, p. XIV.
16 Alberto de Monsaraz, Altura Solar, Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 29.
17 Alberto de Monsaraz, Idem, pp. 29-30.
18 Alberto de Monsaraz, A Verdade Monárquica, Lisboa, ed. Restauração, s/d, pp.213-217. Aí se transcreve o que julgo, anos antes escrito foi no Diário Nacional, órgão da "monarquia" democrática
19 Ressalvo qualquer lapso de memória, mas julgo que este manifesto surgiu primeiro na Gil Vicente cuja colecção me é difícil obter.
20 Estas qualidades de tipo “nórdico-ariano” deviam agradar aos que hic et nunc invocam, com espavento, a ética “nórdico-ariana”. Mas não! Salazar não está entre os santos da sua devoção porque não era "rectangularista" como eles.
21 Marcello Caetano, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa, Verbo, 1977, pp.616-518. Diz Marcello que Salazar no fim abandonara a tese integracionista dando como argumento que "nos meses da sua semi-lucidez agónica… Salazar repetia frases reveladoras subconscientes. E nelas não havia apego à formula integracionista". O argumento ex silencio é formidável, especialmente tratando-se de pessoa em semi-lucidez agónica. Processos que não comento. Marcello Caetano, O 25 de Abril e o Ultramar, Lisboa, Verbo, s/d (deve ser 76 ou 77), pp. 12-15.
(continua num próximo post)
(continuação do post de 2003/10/14)
Prof. Dr. António José de Brito
O nacionalismo salazarista, com o lema "tudo pela nação nada contra a nação" — que não pode ser tomado à letra claro, porque Salazar, infelizmente sempre se proclamou anti-totalitário — alheio ao monarquismo e até à importância decisiva do factor político, não deixou, no entanto, de buscar, como indispensável, um poder com uma característica monárquica (embora não esgote a monarquia): o governo vitalício de um só.
Para além das formulas escritas da constituição, mantendo-se firme no repúdio dos partidos e da liberdade de imprensa, criando uma organização cívica, acaso frouxa, mas a única que, pelo menos até 1945, apresentava candidaturas eleitorais e com a direcção perpétua de Salazar, no Estado Novo conseguiu-se que este concentrasse em si a governação. Dele dependia, através da U.N., a designação dos deputados para a Assembleia Nacional, bem como a do Presidente da República que, em termos legais, designava o Presidente do Conselho (cargo oficialmente ocupado por Salazar). O sistema era imperfeito e artificial, pois poderia haver "sublevações", quer do Presidente da Republica (o que esteve prestes a acontecer com Craveiro Lopes), quer com a Assembleia, tanto mais que, depois de 1945, hélas, foram permitidos outros candidatos além dos da U.N. Mas, sem partidos organizados e sem a liberdade de imprensa, as probabilidades de vitória da anti-nação eram reduzidas.
O grande perigo estava nas manobras internas de ex-nacionalistas convertidos à mitologia reinante no mundo, com vistas a preservar o futuro pessoal.
De qualquer maneira, entre ventos e marés, o sistema foi funcionando.
Em 1939, eclodiu a segunda guerra mundial e bem podemos dizer que se iniciou o declínio do nacionalismo português. Essa guerra foi a cruzada das democracias como o tinha sido, em menores proporções, a guerra civil de Espanha.
Na última o nacionalismo português, pela voz e a pena dos seus mentores autorizados, alinhou, como era de prever, contra os "rojos".
Em 1939, foram numerosas as defecções. Alguns exemplos. Um diário lisboeta, cujo director tivera afinidades com a Acção Realista, bastante elogiou o fascismo, atacou a Frente Popular francesa, apoiou Franco e era salazarista firme, (um dos seus mais conceituados colaboradores foi convidado do governo nazi e publicou crónicas assaz amáveis para com o III Reich), diário de grande audiência no público da direita de então, passou a alinhar com os cruzados das democracias e nem a entrada da União Soviética no clube destas lhe modificou a atitude. Desenvolveu, largamente, a tontice segundo o qual nazismo era igual ou pior que comunismo. Boa parte dos leitores, a princípio não entendendo grande coisa, ia-se deixando influenciar, contactando pouco a pouco com elementos e ideias "indesejáveis".
Hipólito Raposo que em 1936 asseverava "se não fossem as reacções salvadoras da Itália e da Alemanha… a Europa teria abdicado do seu título de mãe da civilização cristã"1 em 1940, no prefácio do livro Amar e servir alude aos "totalitarismos em seus exageros criminosos, desprezadores da moral e dos direitos das gentes, negadores da personalidade humana".2 E o velho lutador contra a monarquia constitucional, que equiparava à república, ei-lo que desponta a elogiar a pseudo monarquia inglesa bradando "na Grã Bretanha reina uma monarquia que ainda há pouco deu prova da sua vitalidade, uma nobreza com função social e uma câmara dos Lordes com pares hereditários"3, monarquia, nobreza e Câmara dos Lordes que não passavam, naquela época, na Grã Bretanha, de presenças decorativas.
E, depois, Hipólito investe contra o Estado Novo que corporiza numa imaginária República da Ilusitânia a qual "fica situada à maior latitude do Arbítrio Pessoal e na maior longitude da Razão política".4
"Convertendo ou pervertendo os meios em fins na Ilusitânia deixou de haver escala e medida nos sacrifícios impostos pelo estatismo puro a benefício de quem lá governa e administra"5. Salazar e Carmona a encherem os bolsos como hoje os abrilinos. Enfim! E, perdido todo o bom senso, Hipólito proclama que "a mendicidade aberta ou descoberta é o meio de vida de metade da população"6 de Lisboa. Embora muito jovem, vivi nessa época e encolho os ombros.
Quanto a Pequito Rebelo, em 1942, numa conferência proclama "a doutrina da personalidade um indicador da tendência da evolução"7 achando que "o integralismo se mostrou mais pró personalista que anti-individualista"8, numa auto-interpretação assaz discutível. Depois, aponta à segunda geração integralista a missão de "combater a Pseudo Nação"9 que era como designava o Estado Novo. Isto no momento em que no nosso país a anti-nação erguia de novo a cabeça. Mas combater a pseudo nação de que ponto de vista? Pelo que tinha de transigente, de vestígios de democracia, de não rigorosamente autoritária? Nada disso. Interessava-lhe como um dos pontos básicos a "salvaguarda da dignidade e dos direitos da pessoa humana".10
E na altura em que a Inglaterra era a campeã da democracia lá vinha dedicar um volume assaz fantasista "Ao aspecto espiritual da Aliança Inglesa".
Por seu turno Almeida Braga, em 1944, no prefácio a livro de um militar heróico, que se mostrou insensato leader político (diga-se entre parêntesis que por exemplo em 37 ele achava que "o nosso libelo contra o liberalismo não visa as alegadas finalidades de liberdade e fraternidade que são justas e cristãs e como tais dignas de franca aprovação, mas sim apenas as suas fórmulas de realização prática"11, Almeida Braga, repetimos, exalta "a liberdade política"12, condena "a rigidez molesta da censura"13 e lembrado, por certo, dos elogios que, na revista Integralismo Lusitano — Estudos Portugueses, vol. II, fascículo IV, Julho de 1933, p. 242 e fascículo VI, Agosto de 1933, pp. 327-328, sob os títulos, respectivamente, "Itália gloriosa" e "Giovinezza, Giovinezza", quando já tinha sido formulada por Mussolini (e Gentile) o que pitorescamente classifica de "doutrina satânica"14, dedicara ao Fascismo, adverte "já pode dizer-se" (o já é uma delícia) que "o fascismo foi um erro político".15
Alberto de Monsaraz, em 1945, em plena ofensiva do MUD contra o Estado Novo, em que anti-nação parecia prestes a triunfar, lá veio com um opúsculo Altura Solar, exalçando "as múltiplas liberdades individuais com que se dignifica a personalidade humana"16 e apontando "o alto exemplo da Inglaterra monárquica, derradeiro baluarte de liberdades".17
O mal que estes desvios doutrinários produziram nos ambientes nacionalistas, que veneravam os autores mencionados como mestres, foi incalculável.
No momento em que parecia que se ia voltar ao caos anterior ao 28 de Maio e o nacionalismo seria varrido da terra, os mais respeitados dos seus fundadores resolviam alinhar com os erros triunfantes, trazendo a maior das desorientações a velhos e novos.
Felizmente, houve Alfredo Pimenta que se manteve impávido face à onda de desvario, apegado às antigas verdades, recusando-se sempre a pactuar com o liberalismo, a democracia, os direitos do homem, a eminente dignidade da pessoa humana e quejandas tolices.
Por circunstâncias ligadas à guerra fria, o Estado Novo de Salazar pôde ir sobrevivendo, mas já enfraquecido, forçado a relações perigosas e privado do que poderia ser, no plano doutrinário, uma crítica positiva de extrema direita, visando a monarquia integral.
Ao invés, em 1947, apareceu uma gazeta dita monárquica Diário Nacional, patrocinado pelos ex-integralistas que referimos, um dos quais — Alberto de Monsaraz — resolveu considerar as denominadas quatro liberdades de Roosevelt — a que chamava Carta do Atlântico — como pilares da Realeza 18. Essa gazeta era entusiasta da monarquia democrática, ou seja, do círculo quadrado. Alfredo Pimenta combateu energicamente o triste papel, que não durou muito tempo. Ai de nós, deixou semente. Nas várias campanhas eleitorais lá iam aparecendo listas que se proclamavam monárquicas e o que eram realmente é demo-liberais.
Em 1950, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Almeida Braga deram à luz, creio que na pequena revista Gil Vicente um manifesto, republicado na Cidade Nova, IIª série, n.º 6, de 1951, em que além da habitual reivindicação da liberdade de imprensa propunham que as Cortes tivessem funções deliberativas na votação e alteração da Lei Fundamental.19
Precisamente um dos pontos que os fez repudiar o Pacto de Paris em 1922. Onde tínhamos chegado.
Em 1950 também, morreu Alfredo Pimenta figura insubstituível e insubstituída do nacionalismo português.
Em 1961 os Estados Unidos — os grandes inimigos actuais do terrorismo —, que já haviam feito contra a Alemanha e outros países guerra aérea visando sistematicamente populações civis, — armaram e pagaram a terroristas que, de 14 a 15 de Março, procederam a terríveis massacres em Angola, em nome da autodeterminação e da independência dos povos.
Uma fracção das Forças Armadas, impulsionada pelo então ministro da defesa — que tinha como subsecretário o futuro marechal Costa Gomes, mais conhecido pelo "rolha" — tentou, em Abril, um golpe para afastar Salazar do governo, com o consequente abandono do nosso Ultramar.
Falhou. E a 13, na rádio e na televisão, ouviu-se a voz daquele dizendo "pareceu que a concentração de poderes na Presidência do Conselho e da Defesa Nacional bem como a alteração de alguns altos postos facilitaria e abreviaria as providências necessárias para a defesa eficaz da Província " (Angola) "e a garantia da vida, do trabalho e do sossego das populações. Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão. Como um só dia pode poupar sacrifícios e vidas é necessário não desperdiçar desse dia uma só hora para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim de defender Angola e com ela a integridade da nação".
A emoção foi enorme e mesmo gente da oposição não regateou o seu aplauso. Mas, meses depois, em Dezembro, a guarnição de Goa rendia-se sem luta e o facto não despertou uma reacção indignada em especial entre os exércitos de terra, mar e ar. O combate pela honra não tinha, pelos vistos, grande popularidade.
Saliente-se que Pequito Rebelo partiu para Angola com o seu avião a prestar os serviços que pudesse e fossem consentâneos com a sua idade. E os monárquicos — também — democráticos enfileiraram com palavra na defesa do Ultramar.
A guerra que nos era movida e que, por natureza seria longa, tinha uma raiz democrática patente. Defender o Ultramar e perfilhar doutrinas que conduziam via autodeterminação à possibilidade do arrear da bandeira revelava-se absurdo. E não tardou que se exigisse a discussão livre do problema ultramarino, logo com lícita propaganda abandonista e se apoiasse a celebérrima dita autodeterminação. Foi nesse período que a figura de Salazar assumiu proporções nunca vistas. Exemplo de firmeza de persistência, de coragem perante as pressões do estrangeiro, de devoção à causa pública, quase solitário ou mal acompanhado (um ministro, mesmo competente na sua estrita especialidade, era abandonista), com militares em grande parte só desejosos de voltar ao rectângulo e suas delícias, Salazar foi modelo de honra e fidelidade, do antes lutar que curvar-se, dos homens de antanho.20
O contrário se pode dizer de quem veio a ocupar-lhe a posição governativa: Marcello Caetano. Permeável, depois de longa evolução, às ideias do tempo, desde há muito partidário da mutilação do território nacional, Marcello Caetano hasteou o pendão da abertura liberal e da autonomia progressiva cujo termo, consoante declarou nas Minhas Memórias e O 25 de Abril e o Ultramar21, eram as chamadas independências. Para lugares importantes chamou renegados da extrema direita como Melo e Castro e Veiga Simão e também inimigos notórios do regime ao estilo do microscópico Sá Carneiro. Os resultados estão à vista. Nas vésperas do 25 de Abril o chefe de Estado-Maior das F.A. era Costa Gomes — o da conspiração de Botelho Moniz — e o vice-chefe o famoso eguariço António de Spínola que gozava, merecida ou imerecidamente, de grande prestígio nos meios castrenses. Nele a autodeterminação e democracia tinham feito faísca cerebral de que resultou um livro, abaixo de toda a classificação, denominado Portugal e o Futuro. Ambos Costa Gomes e Spínola patrocinavam os m.f.a. que, quando tiveram a certeza de que não haveria resistência séria vieram para a rua aos urros de "solução política" (como se a guerra não fosse uma solução política) e sobretudo de regresso a quartéis.
Na passagem da república coroada para a república de barrete frígio ainda houve um simulacro de combate.
Quando se tratou de esquartejar uma pátria nenhum dos heróis cobertos de galões ou estrelas disparou um só tiro. E a grande massa da população civil ou encolheu os ombros ou até aplaudiu.
O património secular (e garantia do futuro) que era a nação foi assim destruído pela vontade das gerações que tinham obrigação de o defender, obrigação especialmente acentuada em relação aos que por escolha envergavam uma farda. Portugal desapareceu, é uma recordação.
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1 Hipólito Raposo, Aula Régia, Porto, Civilização, 1936, p. XXX.
2 Hipólito Raposo, Amar e Servir, Porto, Civilização, p. XX,
3 Hipólito Raposo, Idem, p. XX.
4 Hipólito Raposo, Idem, p. XXII.
5 Hipolito Raposo, Idem, p. XXVI.
6 Hipólito Raposo, Idem, p.XXVIII.
7 Pequito Rebelo, Pela Dedução à Monarquia, cit., p. 85. Saliente-se que nesta edição estão textos muito posteriores a Pela Dedução à Monarquia de 1914.
8 Pequito Rebelo, Idem, p. 286.
9 Pequito Rebelo, Idem, p. 280.
10 Pequito Rebelo, Idem, p. 295.
11 Paiva Couceiro, Profissão de Fé, Lisboa, Gama, 1944, p. 69.
12 Luís Almeida Braga, Prefácio à Profissão de Fé citada na nota anterior, p. XV.
13 Luís Almeida Braga, Idem, p. XV.
14 Luís Almeida Braga, Idem, p. XII. Era a concepção, habitualmente mal compreendida, do estado ético.
15 Luís Almeida Braga, Idem, p. XIV.
16 Alberto de Monsaraz, Altura Solar, Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 29.
17 Alberto de Monsaraz, Idem, pp. 29-30.
18 Alberto de Monsaraz, A Verdade Monárquica, Lisboa, ed. Restauração, s/d, pp.213-217. Aí se transcreve o que julgo, anos antes escrito foi no Diário Nacional, órgão da "monarquia" democrática
19 Ressalvo qualquer lapso de memória, mas julgo que este manifesto surgiu primeiro na Gil Vicente cuja colecção me é difícil obter.
20 Estas qualidades de tipo “nórdico-ariano” deviam agradar aos que hic et nunc invocam, com espavento, a ética “nórdico-ariana”. Mas não! Salazar não está entre os santos da sua devoção porque não era "rectangularista" como eles.
21 Marcello Caetano, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa, Verbo, 1977, pp.616-518. Diz Marcello que Salazar no fim abandonara a tese integracionista dando como argumento que "nos meses da sua semi-lucidez agónica… Salazar repetia frases reveladoras subconscientes. E nelas não havia apego à formula integracionista". O argumento ex silencio é formidável, especialmente tratando-se de pessoa em semi-lucidez agónica. Processos que não comento. Marcello Caetano, O 25 de Abril e o Ultramar, Lisboa, Verbo, s/d (deve ser 76 ou 77), pp. 12-15.
(continua num próximo post)