2007/10/29
A Idade Média, uma impostura
Quando começou a Idade Média (IM)? De um ano para o outro? Quando terminou?
Quando começou o chamado Renascimento? Os milhões de homens e mulheres que viveram nessa época sabiam que estavam na IM? Poder-se-á resumir a História de 1000 anos, numa dúzia de páginas dos manuais escolares, ao imobilismo, ao obscurantismo, à exploração e a outros estereótipos conhecidos?
Como eram as relações, de poder e não só, entre pessoas e entre grupos sociais na IM? Como variaram ao longo do tempo? Foram as estruturas sociais e políticas medievais imóveis e iguais em toda a Europa? Feudalismo e senhorialismo foram a mesma coisa?
De onde procede a visão que hoje domina os media e os manuais escolares sobre a IM?
Basta de perguntas. Comecemos pela última.
Jacques Heers dá-nos no seu livro “A Idade Média, uma impostura” a chave para a compreensão de uma época, no seu contexto histórico, evidenciando e desmontando os estereótipos e lugares comuns que sobre a IM se criaram durante a segunda metade do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX, que ainda hoje perduram na cultura – eventualmente pouco culta e utópica – e nos manuais escolares, enviesados pelas falsas convicções de que:
1. do séc. XVIII para cá os homens são bons por natureza e que antes disso eram quase todos burros e perversos
2. as estruturas sociais anteriores aos séc. XVIII e XIX eram perversas e pervertiam os homens, enquanto as estruturas modernas são imaculadas e se destinam a fabricar o “homem novo”, como se isso pudesse existir na actual condição humana.
Posto isto, eis alguns aspectos a reter deste livro, que respondem de forma cabal e fundamentada às questões formuladas e a outras mais que se levantem no espírito do leitor:
a) a IM nasceu na segunda metade do séc. XVIII. De facto, foram os escritores – digamos publicistas, do famoso “romance histórico” – maioritariamente franceses, da época, que mais se lançaram a escrever sobre a IM e assim estabeleceram chamar e assim a limitaram no tempo entre o fim dos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente, e que criaram a imagem negativa e estereotipada que ainda hoje circula nos media e manuais escolares.
b) o Renascimento nasceu no séc. XIX, na medida em que nesta época muito foi escrito sobre os séc. XIV, XV e XVI europeus, e particularmente italianos, seus artistas e escritores. No Renascimento não se falava de Renascimento. O sentir artístico, poético e intelectual de Dante, Petrarca e Bocaccio não era generalizado – não existia uma “consciência colectiva” de renascimento –, desenvolveu-se em escolas artísticas, literárias, de pensamento, de argumentação política, como havia outras em Itália e no resto da Europa, muitas vezes junto da Corte. De resto, a cultura na IM sempre esteve nutrida pela referência aos Gregos e aos Romanos.
c) as origens das ideias estereotipadas e dos lugares comuns de hoje sobre a IM ficam assim bem claras.
d) Feudalismo e senhorialismo não eram a mesma coisa. O feudalismo correspondia a uma organização política, muito mais descentralizada – diríamos hoje – que o Estado de direito democrático, enquanto o senhorialismo, da Inglaterra à Itália, nas suas variantes, consistia num sistema económico, distinto e independente do feudalismo, com regras próprias.
e) As cidades, ao contrário do que afirma o estereótipo, não eram mais lugares de liberdade que os campos, supostamente lugares de cativeiro. A liberdade de movimentos do campo para a cidade e vice-versa é documentada de forma irrefutável. As cidades eram, frequentemente, palco de violentas convulsões entre facções políticas rivais, a que não escaparam as comunas italianas, como atesta o tipo de construção urbana da época.
f) São abordados também os estereótipos em relação à Igreja: o obscurantismo do clero – e só do clero, repare-se –, a acção da Inquisição, a suposta proibição de discutir ideias – quando foi no seio da Igreja que surgiram as primeiras universidades –, a papisa Joana, a usura…
As leis anti-usura não eram, na prática, anti- lucro, antes procuravam estabelecer um limite razoável à cobrança de juros pelos prestamistas, e evitar, por um lado, extorsões, e por outro, revoltas entre devedores e credores em épocas de más colheitas e de recessão económica. Neste particular, há interessantes referências às relações entre judeus e cristãos que, mais uma vez, contrariam o estereótipo.
“A Idade Média, uma impostura”, Jacques Heers, Edições ASA (1994)
Manuel Brás
manuelbras@portugalmail.pt
Quando começou o chamado Renascimento? Os milhões de homens e mulheres que viveram nessa época sabiam que estavam na IM? Poder-se-á resumir a História de 1000 anos, numa dúzia de páginas dos manuais escolares, ao imobilismo, ao obscurantismo, à exploração e a outros estereótipos conhecidos?
Como eram as relações, de poder e não só, entre pessoas e entre grupos sociais na IM? Como variaram ao longo do tempo? Foram as estruturas sociais e políticas medievais imóveis e iguais em toda a Europa? Feudalismo e senhorialismo foram a mesma coisa?
De onde procede a visão que hoje domina os media e os manuais escolares sobre a IM?
Basta de perguntas. Comecemos pela última.
Jacques Heers dá-nos no seu livro “A Idade Média, uma impostura” a chave para a compreensão de uma época, no seu contexto histórico, evidenciando e desmontando os estereótipos e lugares comuns que sobre a IM se criaram durante a segunda metade do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX, que ainda hoje perduram na cultura – eventualmente pouco culta e utópica – e nos manuais escolares, enviesados pelas falsas convicções de que:
1. do séc. XVIII para cá os homens são bons por natureza e que antes disso eram quase todos burros e perversos
2. as estruturas sociais anteriores aos séc. XVIII e XIX eram perversas e pervertiam os homens, enquanto as estruturas modernas são imaculadas e se destinam a fabricar o “homem novo”, como se isso pudesse existir na actual condição humana.
Posto isto, eis alguns aspectos a reter deste livro, que respondem de forma cabal e fundamentada às questões formuladas e a outras mais que se levantem no espírito do leitor:
a) a IM nasceu na segunda metade do séc. XVIII. De facto, foram os escritores – digamos publicistas, do famoso “romance histórico” – maioritariamente franceses, da época, que mais se lançaram a escrever sobre a IM e assim estabeleceram chamar e assim a limitaram no tempo entre o fim dos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente, e que criaram a imagem negativa e estereotipada que ainda hoje circula nos media e manuais escolares.
b) o Renascimento nasceu no séc. XIX, na medida em que nesta época muito foi escrito sobre os séc. XIV, XV e XVI europeus, e particularmente italianos, seus artistas e escritores. No Renascimento não se falava de Renascimento. O sentir artístico, poético e intelectual de Dante, Petrarca e Bocaccio não era generalizado – não existia uma “consciência colectiva” de renascimento –, desenvolveu-se em escolas artísticas, literárias, de pensamento, de argumentação política, como havia outras em Itália e no resto da Europa, muitas vezes junto da Corte. De resto, a cultura na IM sempre esteve nutrida pela referência aos Gregos e aos Romanos.
c) as origens das ideias estereotipadas e dos lugares comuns de hoje sobre a IM ficam assim bem claras.
d) Feudalismo e senhorialismo não eram a mesma coisa. O feudalismo correspondia a uma organização política, muito mais descentralizada – diríamos hoje – que o Estado de direito democrático, enquanto o senhorialismo, da Inglaterra à Itália, nas suas variantes, consistia num sistema económico, distinto e independente do feudalismo, com regras próprias.
e) As cidades, ao contrário do que afirma o estereótipo, não eram mais lugares de liberdade que os campos, supostamente lugares de cativeiro. A liberdade de movimentos do campo para a cidade e vice-versa é documentada de forma irrefutável. As cidades eram, frequentemente, palco de violentas convulsões entre facções políticas rivais, a que não escaparam as comunas italianas, como atesta o tipo de construção urbana da época.
f) São abordados também os estereótipos em relação à Igreja: o obscurantismo do clero – e só do clero, repare-se –, a acção da Inquisição, a suposta proibição de discutir ideias – quando foi no seio da Igreja que surgiram as primeiras universidades –, a papisa Joana, a usura…
As leis anti-usura não eram, na prática, anti- lucro, antes procuravam estabelecer um limite razoável à cobrança de juros pelos prestamistas, e evitar, por um lado, extorsões, e por outro, revoltas entre devedores e credores em épocas de más colheitas e de recessão económica. Neste particular, há interessantes referências às relações entre judeus e cristãos que, mais uma vez, contrariam o estereótipo.
“A Idade Média, uma impostura”, Jacques Heers, Edições ASA (1994)
Manuel Brás
manuelbras@portugalmail.pt
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