2007/05/04
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 10
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António e Lucinda, os meus futuros pais, viriam a casar, na Igreja de Santiago, a paróquia de que a Folgosa do Salvador é anexa, no dia 22 de Novembro de 1927.
Nesse dia, o avô Cruz fechou-se sozinho no quarto, sem querer ver ninguém, enquanto no resto da casa decorria a boda, tão insuportável lhe era a ideia de perder a filha mais nova por quem tinha a ternura mais exclusica que é possível imaginar.
Puderam os meus pais viajar logo a seguir para o Congo, onde eu nasceria em 26 de Novembro do ano seguinte, no Sonankulo, da área administrativa de Thysville. No Sonankulo se instalaram também porque a firma tinha aí um dos quatro estabelecimentos de comércio geral, de venda a retalho e para compra de produtos indígenas, que possuía então.
Sou portanto um africano geograficamente de pleno direito, gerado como fui já no Congo, onde meus pais chegaram em Janeiro de 1928.
O resto de Novembro e o mês de Dezembro de 1927 passaram-nos eles de viagem para o Congo, que iniciaram em Nelas, pelo comboio para Lisboa, onde três ou quatro dias mais tarde embarcaram no Sud-Expresso que os levou a Paris , seguindo depois para Bruxelas e Antuérpia. Aqui apanharam para Matadi um vapor confortável, como não eram então os navios que partiam de Lisboa, mais parecidos esses com barcos de carga do que com paquetes para passageiros minimamente exigentes.
Uma situação que o Estado Novo, já instalado, em breve iria começar a mudar de raiz.
Mas foi essa diferença a razão, e talvez também o gosto de exibir à noiva o seu francês e as terras que já antes pisara, mesmo La Lys ao longe, mal adivinhada, que levaram meu pai a proporcionar-lhe uma tal viagem de núpcias, nessa altura um tanto espampanante.
Sei que estiveram alguns dias em Lisboa, outros mais em Paris e também quatro ou cinco em Bruxelas, que meu pai aproveitou para se dar a conhecer e à futura mulher, de excelente apresentação, nas sedes dos mais importantes fornecedores da sua firma no Congo, a Nogueira e Cª. e a Mampeza, ambas de portugueses, aliás.
Restam na família fotografias do casal tiradas em fotógrafos de Lisboa, Paris e Bruxelas, a segunda com a Torre Eiffel à vista.
Mas não temos exemplo nem memória de outros verdadeiros esbanjamentos de nossos pais, como a viagem de núpcias, ao longo da vida toda, que para ele terminou a 5 de Agosto de 1970 e, para a nossa mãe, em 1 de Abril de 1982, dia de mentiras.
Falar acima do Estado Novo fez-me lembrar a circunstância de as viagens de meus pais, e depois também connosco, os filhos, entre a Europa e Africa, coincidirem sempre com alguma efeméride mais assinalável do Estado Novo.
Foi em 1928 que Salazar assumiu a pasta das Finanças, para governar o País até 1968.
Depois, em 1932, já então eram nascidos os meus dois irmãos, a família veio toda à Europa por um ano, fora Salazar nomeado pouco antes, em Junho daquele ano, Presidente do Conselho de Ministros, isto é, Chefe do Governo, iniciando a consolidação definitiva do Estado Novo.
Regressámos todos definitivamente a Portugal em 1938, tendo meu pai liquidado os negócios e a sociedade, para que os três miúdos pudéssemos passar a ir regularmente à escola, em Santigao, depois de dois anos de frequência numa escola de freiras belgas em Thysville, onde os meus irmãos aprenderam a ler.
Chegámos a Lisboa creio que exactamente no dia 28 de Maio de 1938, com a cidade engalanada para a comemoração do 12º aniversário da Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926 e do 10º aniversário da tomada de posse de Salazar como ministro das Finanças.
Posso dizer que nasci e cresci com o salazarismo, que talvez tenha bebido com o leite materno…
O Estado Novo estava em 1938 perfeitamente consolidado e a Península em vésperas de pacificação total, com a vitória próxima que já se afigurava irresistível do Levantamento nacional franquista de 1936 e o fim da Guerra Civil de Espanha.
Tudo indicava que se aproximavam grandes tempos de paz e prosperidade, o que claramente se traduzia num sentimento de calma euforia generalizada, de que hoje ainda me apercebo através de manifestações e indícios que recordo com nitidez.
É certo que 1938, como me lembro muito bem, foi igualmente o ano da invasão da Áustria pelas tropas alemãs de Hitler, que puseram no poder um governo nacional-socialista, e isso devia anunciar-nos os perigos da guerra mundial que se aproximava.
Mas era tudo longe e ninguém pensava que Hitler ousaria deitar fogo à Europa e que os aliados o deixariam chegar a tal ponto.
Aos nossos pais é que parecia anunciar-se o pior ou pelo menos suficientemente grave e incerto para escolherem 1938 como o ano de regressarmos à Europa.
É curioso e interessante constatar como, em qualquer nível, o essencial das nossas vidas é determinado pelas escolhas condicionadas por factores que nos ultrapassam completamente, sobretudo os movimentos nacionais e mundiais da política, onde não contamos nada.
Mas o meu pai tinha um instinto misterioso de seguir-lhes as vagas sem se deixar desorientar ou sequer salpicar por elas.
A.C.R.
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