2007/04/23
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 05
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Percorreram-se recordações de um século inteiro, o séc. XIX, e mais algumas do séc. XVIII, e mesmo já umas tantas do começo do séc. XX, sem nos determos em amores e desamores das pessoas, como se não fosse esse tempo caracterizado por amores febrilmente incendiários, na vida mas sobretudo na Literatura.
Lembre-se: foi o tempo de plenitude do chamado Romantismo.
Ora parece-me não ter dado por traços disso nas memórias dos cerca de cento e cinquenta anos de vidas intensamente vividas nas Beiras e seus prolongamentos… inter-continentais.
Foi intencional?
Foi involuntário?
Nem uma coisa nem outra, creio.
Aconteceu simplesmente, talvez por o Romantismo não ter de facto passado por ali, com toda a naturalidade própria.
Talvez o percebamos melhor, se lembrarmos meia dúzia de noções a respeito da natureza profunda do Romantismo.
Isto é, daquele movimento cívico e literário que aqui, a Portugal, nos chegou vindo da Europa além-Pireneus, isto é, da Inglaterra/Escócia e País de Gales, da França, da Alemanha, da Áustria, da Itália, da Suiça, da Rússia, queimando e revolucionando tudo por onde passava em nome de bandeiras jamais vistas, unidas sob aquele nome inconfundível.
Tudo está, de facto, nessas bandeiras.
Parece-me que todos os historiadores e teóricos do Romantismo aceitarão que se tratou dum movimento desencadeado por gente das Letras, da Poesia, da Pintura, do Teatro, da Música, e menos da Escultura ou da Arquitectura, gente que pretendia usar, para se exprimir nas suas expansões artísticas, da liberdade conquistada e vulgarizada pelos ideólogos da luta contra a ordem social do Antigo Regime, fundamentalmente em nome da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, mas sobretudo em nome da Liberdade.
Foi, portanto, o romantismo uma ideologia política?
Não, no sentido literal.
Tratou-se, de facto, de usar a liberdade para soltar em primeiro lugar a literatura das suas peias clássicas e de, assim, a desembaçarem dos obstáculos mais insuspeitados à exploração dos caminhos autenticamente ainda por andar da Literatura e da Arte em geral.
É portanto um movimento literário, nas origens, que se serve da liberdade para renovar radicalmente a Literatura e, depois, todas as Artes conhecidas, esquecendo limitações da ordem da moral e dos costumes, como de limitações estéticas e filosóficas, sociais ou religiosas.
A paixão é livre.
O adultério é um exercício de coragem.
Os que se amam têm o dever de amar-se sem limites.
Os amores contrariados ganham a projecção do martírio antigo, até à glória radical do suicídio, sua prova e provação extremas.
Tudo começa por passar-se na Literatura e na Arte, mas de pressa passa aos costumes, pelo menos aos costumes de muitos literatos e artistas, como de tantos dos seus leitores e admiradores fanáticos.
É à primeira vista evidente que isto não podia encontrar grande receptividade e ter sucesso significativo numa sociedade como a das Beiras e das aldeias por onde os nossos personagens e as suas memórias andaram nos seus tempos.
Os suicídios e as cenas plangentes ou de terror dos cemitérios foram dos pratos mais explorados pelo Romantismo, duma ponta à outra da Europa e das zonas da sua maior influência cultural, sobretudo as Américas do Sul e Central.
Vindos a Portugal através das traduções sobretudo do francês e depois do inglês e do alemão, os clichés do Romantismo chegar-nos-iam também através dos românticos portugueses, como Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e seus epígonos.
Mas sem o poder de penetração e de influenciar os costumes e as ideias, que os seus mestres europeus demonstraram largamente.
Talvez, afinal, porque esses mestres europeus tinham sido os inventores do romantismo ou discípulos directos dos inventores dele, ao passo que os grandes escritores portugueses referidos não passaram de utilizadores do ideário, em segunda mão, mesmo que muito talentosos.
No fundo, o Romantismo português não foi muito mais que simples folclore, de imitação, tirado o caso do genial Camilo, pelo seu profissionalismo e pelo seu domínio malabarístico da expressão linguística.
Nem sequer o Romantismo português serviu por aí além para fundamentar melhor e apurar significativamente as nossas correntes nacionalistas, como aconteceu lá fora.
Na verdade, diga-se ainda que o nosso Romantismo raramente foi ou pareceu delírio, febre ou doença, e que, se produziu erotismo, até libertinagem, e principalmente lirismo, nunca chegou ao misticismo nem ao pessimismo, “alternado com rajadas de furor”, que muitas vezes se atribuíram ao Romantismo europeu.
Dificilmente, no exemplo português, se poderá pretender que “os excessos (do Romantismo, neste caso) conduzam à sabedoria”, como certos mestres românticos gostavam de fazer crer.
A.C.R.
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