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2007/04/20

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 04 

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Para conversarem melhor e mais sossegadamente, “capitão” Gomes mandou o afilhado encontrar-se consigo na gare de Santa Comba Dão*, era a primeira viagem do afilhado, de comboio, que apanharia em Nelas.

Estava em Santa Comba, nessa altura, a passar grande parte da temporada de descanso para que viera a Portugal, um veterano da epopeia do Congo, que lá criara com sócios de vila Nova de Tazem, dali perto, uma importante sociedade comercial, agro-pecuária, industrial e de transportes fluviais, das maiores protagonistas do arranque da colonização do Estado Livre do Congo, a partir de 1884, ano da Conferência de Berlim, como se sabe.

“Capitão” Gomes não queria desperdiçar a ocasião de exibir pessoalmente, perante o importante africanista de Santa Comba, a glória recentíssima do seu sucesso na licitação dos bens da Casa das Obras, que o inchava de orgulho.

Para isso, e para poder continuar relativamente discreto nas suas manifestações de vaidade e orgulho, contava que a companhia e testemunhos do afilhado lhe dariam seguramente muitos pretextos de sobressair mais até.

O africanista, ainda muito lesto nos seus setenta e tal, bastantes deles passados no terrível clima do Zaire e das febres, veio procurá-los à estação para os levar a sua casa numa das belas charretes da sua colecção para uso da família.

Ao atravessarem o largo em frente da gare, quis o rico africanista que parassem à porta duma tasca que abrira depois de inaugurada a linha férrea, mas antes de a clientela começar a aumentar muito, trazida pela mudança de hábitos das pessoas e, sobretudo, pela regularidade e frequência dos comboios que ali foram parando cada vez em maior número, nos dois sentidos, estava a linha a funcionar havia já pelo menos três ou quatro anos.

O africanista exigiu que os companheiros bebessem com ele dum “rico branco” que o tasqueiro lá tinha, reservado em segredo para os melhores clientes, por coincidência produzido a partir das uvas dalguns “produtores muito especiais”, entre os quais ele próprio e os seus melhores amigos.

Comentou, a propósito, o africanista que o tasqueiro era um dos homens mais inteligentes da aldeia, “se não mesmo o mais inteligente para o negócio”, porque se antecipara a todos os mais em vender caro vinhos e petiscos quando ainda ninguém previa o desenvolvimento que a freguesia dos comboios viria a ter. Apesar do risco, o Senhor Oliveira sujeitara-se a pouco ganhar, se não mesmo a perder, durante alguns anos, até o negócio crescer a “ponto de o homem estar hoje a ganhar bom dinheiro”, garantiu o africanista com os olhos a reluzirem-lhe de satisfação pela sorte e engenho do outro.

“Olhem! Vejam aquelas casa ali à direita, na curva… Já foi ele que as comprou e reconstruiu umas, melhorou outras, com o dinheiro do bom vinho que vende aos fregueses. É claro que lhe teria sido muito menos fácil o sucesso, sem a mulher que tem, que é uma destas cozinheiras de petiscos como os senhores não fazem a mais pequena ideia!”

“É ela – acrescentou – que aguenta a minúscula hospedaria que também montaram por cima da tasca depois de perceberem que há sempre gente para o comboio, que quer apanhá-lo cedo e para isso tem de vir de véspera e passar a noite aqui, perto da estação…”

“E o mesmo na viagem de volta, compreendem? De modo que os cinco ou seis quartitos estão sempre ocupados! Descobriram bom negócio estes espertalhões! Sem precisarem de ir esturrar a África, hem!”

“Ouvi dizer – completou o africanista – que já lhes ofereceram um dinheirão pelo negócio, mas que eles recusaram um tanto agastados!”

- Admire-se! – respondeu o comendador muito lacónico, a ver se o outro se calava.

E não foi difícil calá-lo, ao menos sobre o assunto da tasca e hospedaria do Senhor Oliveira & Esposa, porque estavam mesmo a chegar à porta da casa do africanista que logo os fez entrar, muito feliz por os acompanhar a verem a casa e a quinta em volta, no que o comendador logo se apercebeu que tinha ele tanto orgulho como era o seu com a Casa das Obras, onde nem uma noite chegara a dormir.

“E sem razão para ter remorsos!” – comentou o “grande capitão” para si, sem querer saber porquê nem por que tinha de ser tão duro e implacável consigo próprio, com remorsos que não deixavam de impor-se-lhe.

A.C.R.

*A linha da Beira Alta, da Figueira da Foz à fronteira, em Vilar Formoso, passa por Santa Comba Dão e estava a funcionar desde 1888, ano da sua inauguração oficial.

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