2004/06/16
APÊNDICE Cultura e Lusofonia (III)
(continuação)
Em certa ocasião, foi-me dado ouvir uma conversa entre dois gestores e técnicos financeiros, sobre os programas de ajudas comunitárias à Lavoura portuguesa. Às tantas dizia um, lamentando-se: " – Bom, os nossos lavradores vão ficar a ver navios. Eles não sabem tratar dos processos..." Comentário incisivo do outro: "Não sabem? Ainda bem, pá. Nós, assim, tratamos-lhes dos processos e ganhamos umas lecas...". A ignorância é útil para quem sabe; a ileteracia só oferece vantagens a quem domina as nomenclaturas. É, nesse caso, a ileteracia uma fonte de poder para quem sabe? Parece não haver dúvidas. À custa do cego vive o ajudante.
O elitismo vale como grau de avaliação, mas nunca deve funcionar como obstáculo ao progresso geral. Há dias, lemos as lamentações dos organizadores do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, porque, na falta de subsídios, o Congresso já não mais teria lugar... Quanto custa um Congresso Internacional? Que dinâmica imprime ele ao bem geral? Que lucro tira dele o povo falante? E quantas salas de aula se poderiam abrir nas plagas da Guiné, de Angola, de Timor, com os gastos congressistas? Afinal de contas, essas aulas não iriam aumentar o mercado potencial de leitores de língua portuguesa, beneficiando os congressistas escritores que, nesse caso, melhor fariam ficar em casa a escrever, a produzir?
A fonia requer grafia, havendo lusofonia e lusografia. A coerência é necessária e indispensável. Vivemos uma fase em que já mal conseguimos escrever a recta grafia, porque a fonia sofreu alterações de fundo. Há muita gente que já não entende que, no fonema tá se lê o verbo estar na forma está; e que no ditongo oi, se lê a interjeição olá; e que, no som lisboeta cãopequeno ressoa o topónimo Campo Pequeno. Que monossilábica língua aí vem, resultante da mistura de etnias, de culturas, de heranças, de um necessitarismo que não atende à ortodoxia filológica? O livro terá, nestas circunstâncias, um papel a cumprir; e também e sobretudo, os meios audiovisuais.
Importa ainda considerar a amplitude da lusofonia.
Do ponto de vista oficial, regulamentar e legal, até por múltiplas implicações jurídicas, políticas, contratuais e comunicacionais, a lusofonia não pode deixar de ser unitária, resumida a um código linguístico uno, constante e universal.
Agora, do ponto de vista da vivência cultural, a lusofonia deve ser pluralista, jamais pode funcionar como obstáculo ou travão aos patrimónios locais e regionais.
Ocorre memorar que a Língua portuguesa teve uma origem lusitano-românica, ou céltico-latina, indistinta de outras línguas faladas nas regiões do Ocidente europeu, não sendo, nos primórdios, bem distinta de outras línguas regionais, como o catalão, o galego, o castelhano, o aquitânico e o provençal, por exemplo. Fazendo par com a língua galega, a portuguesa rompeu o dique e abriu o seu próprio curso, atingindo a perfeição da modernidade e da singularidade, na cultura do séc. XVI (cujo vértice é o poema de Camões), embora já antes a singularidade lhe fosse peculiar, sobretudo na lírica medieval das cantigas de amigo. De tão consolidada, ela não teve dificuldade em abrir-se à incorporação de contributos alheios, como o arabismo, o hebraísmo, e, no ciclo dos Descobrimentos, os orientalismos, tudo isso fazendo, da Língua portuguesa, uma língua ecuménica, apostólica e missionária. Ainda hoje, tantos séculos passados sobre o fim da administração portuguesa no Oriente, há comunidades que guardam vestígios da Língua portuguesa e que, na prática religiosa cristã, continuam a rezar no português do século XVI, as orações comuns, como o Pai Nosso, a Avé Maria, a Confissão e a Salvé Rainha.
Enquanto isto, a língua galega retraíu-se. Barca de navegação Portugal, a Galiza quis ser arca, origem. Tinha de se fechar para se resguardar da influência cultural e sobretudo política da hegemonia castelhana. Deste modo, a Galiza conservou a sua língua arcaica, igual ao português da Idade Média, e produziu uma cultura autónoma e uma língua bem caracterizada, o que se acha provado nos seus escritores — Rosalia de Castro, Valle Inclan, Otero Pedrayo e tantos outros.
No caso português, e apesar de desprezado pelos poderes, a par da consolidação da língua portuguesa manteve-se um certo quadro dialectal, em que abunda o falar das Terras de Miranda, o mirandês, enquanto, na sua esteira, os naturais de Sendim, trabalham pelo esclarecimento do seu arcaico sendinês. E há agora, pelo menos um jornal, publicado em Trás-os-Montes, o Nordeste, que inclui uma página em língua mirandesa.
Mais do que escritas, as línguas são falas. Da junção das falas nasceram os dialectos luso-brasílicos, os crioulos africanos, os falares cristianos do Oriente, incluindo Timor, etc. Constituem eles um património comum, em que a língua se resume a palavras soltas. Nela se incluem os provérbios, as fábulas, os contos e os mitos de cada cultura local, e, por isso, o valor que a conservação dos crioulos e da línguas nativas deve merecer, tanto mais que, nalguns casos (o primeiro terá ocorrido em Cabo Verde, desde o ciclo da revista Claridade,) essas ínguas nativas deram origem a uma literatura bem caracterizada dos pontos de vista étnico, cultural e linguístico.
Em resultado das novas tecnologias e da globalização económica, as línguas dos países pobres correm perigos, mas só morrem se quisermos. A Grécia era um país pequeno e de algum modo pobre, mas o seu espírito manteve-se, determinou a arte e o pensamento filosófico, e foi capaz de, com modificações, voltar a ser uma língua viva. O mesmo se dirá do hebraico que, perdido na Diáspora judaica, voltou a reviver na forma actual da língua ivrit.
Estes fenómenos de perduração linguística não nascem a partir de cima, da autoridade, nem dos governos, nem dos poderes; nascem do povo. Se um povo persistir na sua língua, os poderes têm de seguir o povo. Darão a necessária ajuda à política da Língua, mas não decidirão do seu curso, contra o falar do povo.
Não obstante, no quadro institucional, há que reter a função determinante das Religiões e, no caso português, dos ramos cristãos, com realce para o da Igreja Católica. Em religião, os fiéis podem ser analfabetos e iletrados, mas têm o privilégio de ouvir e de escutar a Palavra. Daqui, a importância da unidade textual nas versões da Bíblia e, sobretudo, na unidade dos textos de culto ou da Liturgia, sobretudo da liturgia dos Sacramentos. É devido o reconhecimento do facto de os povos lusófonos terem a Igreja em língua portuguesa, de onde a unidade da língua litúrgica. Cientes do fenómeno, as hierarquias constituíram a Conferência Episcopal dos Povos Lusófonos, destinada a manter a unidade de culto e da língua na prática religiosa. Este sentido de comunhão das Igrejas lusófonas acha equivalentes noutros ramos de igreja particulares, de raiz cristã, embora minoritárias, sobretudo as de origem brasileira, ou afro-brasileira, que são muitas, e diversíssimas. Hoje, como ontem, a Religião continua sendo veículo privilegiado da manutenção e difusão de qualquer língua, porque a Religião está no meio do povo. É povo, quer dizer, ecclesia. E, todavia, ela não obsta à persistência das línguas nativas, como provam as celebrações e os catecismos existentes nesses nativismos.
Para gozar a sua língua, o povo não deve pôr-se na dependência dos poderes, deve, bem pelo contrário, seguir o seu curso, como o rio, que atravessa montes e vales e que, se necessário, arrastará os obstáculos que se lhe deparem. Contudo, a lusofonia tem de ser aberta, não oclusa. Neste sentido é nossa tese que: aceite a Língua Portuguesa como bandeira perante as nações, como fala do geral das greis, como palavra da lei e da comunicação dos povos, devem estes proteger, pelo ensino e pela tradição, as respectivas línguas nativas. A lição do amor universal e do amor do particular está ensinada, desde há muito, nas artes de amar as pátrias, artes essas devidas, no nosso tempo, a Teixeira de Pascoaes, a Fernando Pessoa, a Álvaro Ribeiro, a Jaime Cortesão e a Agostinho da Silva, entre outros. Para singrar, basta que a lusofonia avance no mar da vida como barca em demanda do oculto. (3)
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(3) Acerca da cultura e da língua nesta e noutras perspectivas, cf. o nosso Meditações Lusíadas, Lisboa, Fundação Lusíada, 2003, 300 pp.
Prof. J. Pinharanda Gomes
Em certa ocasião, foi-me dado ouvir uma conversa entre dois gestores e técnicos financeiros, sobre os programas de ajudas comunitárias à Lavoura portuguesa. Às tantas dizia um, lamentando-se: " – Bom, os nossos lavradores vão ficar a ver navios. Eles não sabem tratar dos processos..." Comentário incisivo do outro: "Não sabem? Ainda bem, pá. Nós, assim, tratamos-lhes dos processos e ganhamos umas lecas...". A ignorância é útil para quem sabe; a ileteracia só oferece vantagens a quem domina as nomenclaturas. É, nesse caso, a ileteracia uma fonte de poder para quem sabe? Parece não haver dúvidas. À custa do cego vive o ajudante.
O elitismo vale como grau de avaliação, mas nunca deve funcionar como obstáculo ao progresso geral. Há dias, lemos as lamentações dos organizadores do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, porque, na falta de subsídios, o Congresso já não mais teria lugar... Quanto custa um Congresso Internacional? Que dinâmica imprime ele ao bem geral? Que lucro tira dele o povo falante? E quantas salas de aula se poderiam abrir nas plagas da Guiné, de Angola, de Timor, com os gastos congressistas? Afinal de contas, essas aulas não iriam aumentar o mercado potencial de leitores de língua portuguesa, beneficiando os congressistas escritores que, nesse caso, melhor fariam ficar em casa a escrever, a produzir?
A fonia requer grafia, havendo lusofonia e lusografia. A coerência é necessária e indispensável. Vivemos uma fase em que já mal conseguimos escrever a recta grafia, porque a fonia sofreu alterações de fundo. Há muita gente que já não entende que, no fonema tá se lê o verbo estar na forma está; e que no ditongo oi, se lê a interjeição olá; e que, no som lisboeta cãopequeno ressoa o topónimo Campo Pequeno. Que monossilábica língua aí vem, resultante da mistura de etnias, de culturas, de heranças, de um necessitarismo que não atende à ortodoxia filológica? O livro terá, nestas circunstâncias, um papel a cumprir; e também e sobretudo, os meios audiovisuais.
Importa ainda considerar a amplitude da lusofonia.
Do ponto de vista oficial, regulamentar e legal, até por múltiplas implicações jurídicas, políticas, contratuais e comunicacionais, a lusofonia não pode deixar de ser unitária, resumida a um código linguístico uno, constante e universal.
Agora, do ponto de vista da vivência cultural, a lusofonia deve ser pluralista, jamais pode funcionar como obstáculo ou travão aos patrimónios locais e regionais.
Ocorre memorar que a Língua portuguesa teve uma origem lusitano-românica, ou céltico-latina, indistinta de outras línguas faladas nas regiões do Ocidente europeu, não sendo, nos primórdios, bem distinta de outras línguas regionais, como o catalão, o galego, o castelhano, o aquitânico e o provençal, por exemplo. Fazendo par com a língua galega, a portuguesa rompeu o dique e abriu o seu próprio curso, atingindo a perfeição da modernidade e da singularidade, na cultura do séc. XVI (cujo vértice é o poema de Camões), embora já antes a singularidade lhe fosse peculiar, sobretudo na lírica medieval das cantigas de amigo. De tão consolidada, ela não teve dificuldade em abrir-se à incorporação de contributos alheios, como o arabismo, o hebraísmo, e, no ciclo dos Descobrimentos, os orientalismos, tudo isso fazendo, da Língua portuguesa, uma língua ecuménica, apostólica e missionária. Ainda hoje, tantos séculos passados sobre o fim da administração portuguesa no Oriente, há comunidades que guardam vestígios da Língua portuguesa e que, na prática religiosa cristã, continuam a rezar no português do século XVI, as orações comuns, como o Pai Nosso, a Avé Maria, a Confissão e a Salvé Rainha.
Enquanto isto, a língua galega retraíu-se. Barca de navegação Portugal, a Galiza quis ser arca, origem. Tinha de se fechar para se resguardar da influência cultural e sobretudo política da hegemonia castelhana. Deste modo, a Galiza conservou a sua língua arcaica, igual ao português da Idade Média, e produziu uma cultura autónoma e uma língua bem caracterizada, o que se acha provado nos seus escritores — Rosalia de Castro, Valle Inclan, Otero Pedrayo e tantos outros.
No caso português, e apesar de desprezado pelos poderes, a par da consolidação da língua portuguesa manteve-se um certo quadro dialectal, em que abunda o falar das Terras de Miranda, o mirandês, enquanto, na sua esteira, os naturais de Sendim, trabalham pelo esclarecimento do seu arcaico sendinês. E há agora, pelo menos um jornal, publicado em Trás-os-Montes, o Nordeste, que inclui uma página em língua mirandesa.
Mais do que escritas, as línguas são falas. Da junção das falas nasceram os dialectos luso-brasílicos, os crioulos africanos, os falares cristianos do Oriente, incluindo Timor, etc. Constituem eles um património comum, em que a língua se resume a palavras soltas. Nela se incluem os provérbios, as fábulas, os contos e os mitos de cada cultura local, e, por isso, o valor que a conservação dos crioulos e da línguas nativas deve merecer, tanto mais que, nalguns casos (o primeiro terá ocorrido em Cabo Verde, desde o ciclo da revista Claridade,) essas ínguas nativas deram origem a uma literatura bem caracterizada dos pontos de vista étnico, cultural e linguístico.
Em resultado das novas tecnologias e da globalização económica, as línguas dos países pobres correm perigos, mas só morrem se quisermos. A Grécia era um país pequeno e de algum modo pobre, mas o seu espírito manteve-se, determinou a arte e o pensamento filosófico, e foi capaz de, com modificações, voltar a ser uma língua viva. O mesmo se dirá do hebraico que, perdido na Diáspora judaica, voltou a reviver na forma actual da língua ivrit.
Estes fenómenos de perduração linguística não nascem a partir de cima, da autoridade, nem dos governos, nem dos poderes; nascem do povo. Se um povo persistir na sua língua, os poderes têm de seguir o povo. Darão a necessária ajuda à política da Língua, mas não decidirão do seu curso, contra o falar do povo.
Não obstante, no quadro institucional, há que reter a função determinante das Religiões e, no caso português, dos ramos cristãos, com realce para o da Igreja Católica. Em religião, os fiéis podem ser analfabetos e iletrados, mas têm o privilégio de ouvir e de escutar a Palavra. Daqui, a importância da unidade textual nas versões da Bíblia e, sobretudo, na unidade dos textos de culto ou da Liturgia, sobretudo da liturgia dos Sacramentos. É devido o reconhecimento do facto de os povos lusófonos terem a Igreja em língua portuguesa, de onde a unidade da língua litúrgica. Cientes do fenómeno, as hierarquias constituíram a Conferência Episcopal dos Povos Lusófonos, destinada a manter a unidade de culto e da língua na prática religiosa. Este sentido de comunhão das Igrejas lusófonas acha equivalentes noutros ramos de igreja particulares, de raiz cristã, embora minoritárias, sobretudo as de origem brasileira, ou afro-brasileira, que são muitas, e diversíssimas. Hoje, como ontem, a Religião continua sendo veículo privilegiado da manutenção e difusão de qualquer língua, porque a Religião está no meio do povo. É povo, quer dizer, ecclesia. E, todavia, ela não obsta à persistência das línguas nativas, como provam as celebrações e os catecismos existentes nesses nativismos.
Para gozar a sua língua, o povo não deve pôr-se na dependência dos poderes, deve, bem pelo contrário, seguir o seu curso, como o rio, que atravessa montes e vales e que, se necessário, arrastará os obstáculos que se lhe deparem. Contudo, a lusofonia tem de ser aberta, não oclusa. Neste sentido é nossa tese que: aceite a Língua Portuguesa como bandeira perante as nações, como fala do geral das greis, como palavra da lei e da comunicação dos povos, devem estes proteger, pelo ensino e pela tradição, as respectivas línguas nativas. A lição do amor universal e do amor do particular está ensinada, desde há muito, nas artes de amar as pátrias, artes essas devidas, no nosso tempo, a Teixeira de Pascoaes, a Fernando Pessoa, a Álvaro Ribeiro, a Jaime Cortesão e a Agostinho da Silva, entre outros. Para singrar, basta que a lusofonia avance no mar da vida como barca em demanda do oculto. (3)
J. Pinharanda Gomes
____________________________________
(3) Acerca da cultura e da língua nesta e noutras perspectivas, cf. o nosso Meditações Lusíadas, Lisboa, Fundação Lusíada, 2003, 300 pp.
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