2004/08/25
Falta à doutrina Kerry em perspectiva histórica o que lhe sobra em incoerência
“(...)"Como Presidente - declarou Kerry - trarei de volta esta nação à sua honrosa tradição: os Estados Unidos nunca irão para a guerra por vontade própria, só iremos para a guerra quando formos obrigados a isso. Esse será a posicionamento da nossa nação." Esta declaração recebeu os mais calorosos aplausos dos congressistas democratas.
(...)
Na verdade, no último século e meio, os EUA enviaram tropas para combaterem em dezenas de situações a que a tal não eram obrigadas. Com a excepção das II Guerra Mundial e da intervenção no Afeganistão, em todas as outras intervenções é discutível se os Estados Unidos foram para guerra obrigados. Na verdade, não foram "obrigados" a enviar "marines" para Cuba, para o Haiti, para a República Dominicana, para o México ou para a Nicarágua nas primeiras três décadas do século XX e fizeram-no. Até mesmo a necessidade de intervirem na I Guerra Mundial ainda hoje é debatida pelos historiadores.
E que dizer da guerra em que o próprio Kerry combateu, a do Vietname? Será que defende que se inscreve na sua descrição da "honrosa tradição" da nossa nação? E todas as intervenções, realizadas durante a guerra fria, na Ásia, na América Latina e no Médio Oriente? E que dizer das guerras do pós-guerra fria? Em 1991 os Estados Unidos não estavam "obrigados" a expulsar Saddam Hussein do Kuwait - aliás, ninguém sabe isso melhor do que Kerry, que votou contra a primeira guerra do Golfo, apesar da sua aprovação unânime pelo Conselho de Segurança. Assim como não estavam "obrigados" a nenhuma das intervenções externas da Administração Clinton, nomeadamente no Haiti, na Bósnia e no Kosovo, tudo guerras que a América escolheu travar. Escolheu bem, nos três casos, mas não foram guerras que estivesse "obrigada" a fazer.
Sendo assim, porque será que Kerry invoca uma "tradição" americana que nunca existiu? (...)
De facto, a doutrina que enunciou era a doutrina defendida pelo movimento antiguerra e pela maioria do Partido Democrata após o desastre do Vietname. (...)
Porém, as ironias abundam. Três décadas atrás, Kerry tornou-se conhecido pela sua militância contra a guerra do Vietname; agora apresenta de forma orgulhosa a sua participação nessa guerra para se distanciar "patrioticamente" da guerra do Iraque, que, no entanto, começou por apoiar.
Se realmente Kerry se revelou naquela frase, num momento de real sinceridade, então é altura de todos olharem honestamente para onde ele conduziria o país, caso fosse eleito. A "doutrina da necessidade" de Kerry, se entendida com seriedade, representaria um pacifismo e um isolacionismo como os Estados Unidos não conhecem desde a década de 30 do século XX. Excluiria todas as guerras travadas por motivos humanitários, todas as intervenções destinadas a prevenir genocídios, a defender democracias ou, como teria sido o caso do primeira guerra do Golfo, a repor a lei internacional contra os seus agressores. Porque todas essas guerras seriam "guerras de escolha".”
(...)Talvez fosse por isso altura de alguns europeus pensarem se querem que a política externa hiperambiciosa de Bush seja substituída por um recuo isolacionista. Depois de ouvirem o discurso de Kerry, talvez devessem começar a preocupar-se.
Por Robert Kagan (no “Público” de 2004/08/14)
(...)
Na verdade, no último século e meio, os EUA enviaram tropas para combaterem em dezenas de situações a que a tal não eram obrigadas. Com a excepção das II Guerra Mundial e da intervenção no Afeganistão, em todas as outras intervenções é discutível se os Estados Unidos foram para guerra obrigados. Na verdade, não foram "obrigados" a enviar "marines" para Cuba, para o Haiti, para a República Dominicana, para o México ou para a Nicarágua nas primeiras três décadas do século XX e fizeram-no. Até mesmo a necessidade de intervirem na I Guerra Mundial ainda hoje é debatida pelos historiadores.
E que dizer da guerra em que o próprio Kerry combateu, a do Vietname? Será que defende que se inscreve na sua descrição da "honrosa tradição" da nossa nação? E todas as intervenções, realizadas durante a guerra fria, na Ásia, na América Latina e no Médio Oriente? E que dizer das guerras do pós-guerra fria? Em 1991 os Estados Unidos não estavam "obrigados" a expulsar Saddam Hussein do Kuwait - aliás, ninguém sabe isso melhor do que Kerry, que votou contra a primeira guerra do Golfo, apesar da sua aprovação unânime pelo Conselho de Segurança. Assim como não estavam "obrigados" a nenhuma das intervenções externas da Administração Clinton, nomeadamente no Haiti, na Bósnia e no Kosovo, tudo guerras que a América escolheu travar. Escolheu bem, nos três casos, mas não foram guerras que estivesse "obrigada" a fazer.
Sendo assim, porque será que Kerry invoca uma "tradição" americana que nunca existiu? (...)
De facto, a doutrina que enunciou era a doutrina defendida pelo movimento antiguerra e pela maioria do Partido Democrata após o desastre do Vietname. (...)
Porém, as ironias abundam. Três décadas atrás, Kerry tornou-se conhecido pela sua militância contra a guerra do Vietname; agora apresenta de forma orgulhosa a sua participação nessa guerra para se distanciar "patrioticamente" da guerra do Iraque, que, no entanto, começou por apoiar.
Se realmente Kerry se revelou naquela frase, num momento de real sinceridade, então é altura de todos olharem honestamente para onde ele conduziria o país, caso fosse eleito. A "doutrina da necessidade" de Kerry, se entendida com seriedade, representaria um pacifismo e um isolacionismo como os Estados Unidos não conhecem desde a década de 30 do século XX. Excluiria todas as guerras travadas por motivos humanitários, todas as intervenções destinadas a prevenir genocídios, a defender democracias ou, como teria sido o caso do primeira guerra do Golfo, a repor a lei internacional contra os seus agressores. Porque todas essas guerras seriam "guerras de escolha".”
(...)Talvez fosse por isso altura de alguns europeus pensarem se querem que a política externa hiperambiciosa de Bush seja substituída por um recuo isolacionista. Depois de ouvirem o discurso de Kerry, talvez devessem começar a preocupar-se.
Por Robert Kagan (no “Público” de 2004/08/14)