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2004/07/08

O Artigo de Eduardo Lourenço: 

"Romaria Portuguesa ou o Fim da Complacência"


Qualquer que seja o resultado de Domingo, o acontecimento capital da ordem política que Portugal está vivendo não é o da premeditada crise ou pseudo-crise criado pela troca de Lisboa por Bruxelas levado a cabo pelo ainda primeiro-ministro Durão Barroso. Isso é uma peripécia que o Presidente da República pode resolver de um golpe à maneira de Alexandre, ou mais tradicionalmente, escolhendo não fazer ondas. O facto político, porque é mais do que político, a ponto de pôr a Política entre parêntesis, assinalando-lhe um estatuto de "fait-divers" incapaz de comover a sensibilidade e a paixão de um povo de maneira inédita — e inquietante — é mesmo o que está acontecendo sob os nossos olhos em Portugal. Desportivo na sua aparência, o sucesso da selecção portuguesa, tem pouco a ver com qualquer súbita paixão por uma modalidade particularmente cultivada ou amada pelo público português. O futebol e a pulsão patriótica que através dele emergiu está, visivelmente, no lugar de outra coisa. E essa coisa tem um só nome, esse inscrito em tudo quanto o consente e gritado até à histeria incontrolável como o mais inefável dos exorcismos: Portugal.

É só apenas um paradoxo, nesta tão celebrada era da globalização, que não é a do cosmopolitismo elitista de antanho, mas uma espécie de dissolução de uma universalidade sem vivência assumida e personalizada, assistir ao regresso do "nacional", do próximo, do nosso, do só nosso, como fonte de exaltação e de complacência a nenhuma outra comparável. Mas paradoxo não menor é que estejam predestinados para esta espécie de voluntária imersão no colectivo particular que é um povo uma nação, aquelas que, num momento ou noutro, se sentiram vocacionadas para representar, digamos, a ideia mesmo de universalidade. Foi o caso, eminentemente, de Portugal e da Grécia, em duas ordens diversas que mitologicamente podíamos designar como sendo a da "acção" e do "pensamento".

Esse consolador e discutível estatuto — que outras nações ou culturas podem reivindicar — há muito que não é assumido, nem sequer sob a forma de mito. A sua última grande expressão poética entre nós é a que Pessoa lhe conferiu. Há muito que não nos sentimos ou não somos aquela "Grécia da acção" (quer dizer, de descobridores) que com tanta complacência nos atribuímos. Mas há muito mais que consciente ou inconscientemente sofremos com essa carência ou, em termos positivos, com a nostalgia desse famoso "esplendor" extinto. Tudo o que no-lo recorde ou no-lo avive encontra em nós a porta aberta para todas as marés. A do fantástico revivalismo patriótico do últimos vinte dias vive dessa pulsão de contornos, ao mesmo tempo sublimes e mórbidos e por isso, mais do que inquietantes, se não conseguirmos separar, na emoção e na exaltação positivas de um sucesso merecido, os laivos de ressentimento e do complexo de frustração que ainda as ensombram. Em suma, se não conseguirmos transformar esse sucesso no fruto abençoado das vitórias que se esgotam no seu triunfo.

O que é novo e futurante nesta onda patriótica que inunda o país é que esta espécie de nacionalismo lúdico não esteja ao serviço nem tenha sido confiscada por qualquer instância política, no sentido banal do termo. Mas não está excluído que o não venha a ser. Esperemos que o tão ingénuo e arrepiante grito: "somos os maiores" não tenha mais conteúdo vivido e positivo que o da inversão do clássico e masoquista: "somos os piores", de fingida humildade, aliás. É nesse sentido que o acontecimento futebol é o facto político por excelência. Nem sequer estamos em condições de o avaliar. Na verdade, o que está acontecendo — ou já aconteceu — nestes escassos dias, para além da imediata auto-satisfação sem transcendência, é uma extraordinária mutação da ordem do simbólico relativa à nossa imagem colectiva. Em casa e fora dela. Um dia — que esperemos breve — se fará a recolha, não só dos efeitos "delirantes" desta epopeia vivida de olhos abertos, que sendo de natureza futebolística é muito mais do que isso, mas também dos não menos inéditos retoques que a nossa imagem no estrangeiro está sofrendo por esta ocasião. Há apenas um mês, o discurso sobre "nós" — eco de clichés, nossos e alheios — tinha ainda muitos laivos de condescendência, mesmo na estrita esfera do jogo. Em particular na imprensa francesa, espanhola, menos na italiana. Assistimos, neste momento, ao fim do discurso condescendente sobre nós mesmos, como óbvio pequeno povo na esfera política e não menos, obviamente, em todas as outras. Esse efeito não se deve unicamente ao sucesso desportivo indiscutível de Portugal. Participam nele os outros grandes "pequenos países" da Europa. É claro que esta subida de nível, como diria Ortega y Gasset, este reforço de imagem devido a um mero jogo de futebol, em pouco altera, para já, a realidade efectiva do que somos ou não somos e de que só nós mesmos pressentimos a autêntica consistência ou inconsistência. Mas num mundo e numa sociedade que tem no espectáculo o seu espelho, se não a sua razão de ser, o que suscita admiração e surpresa incorpora-se como uma segunda pele à nossa realidade. Sem muita despesa, o futebol "liftou" em duas semanas não apenas a depressão acidental da nossa vida colectiva mas, para além dela, o tão famoso fado que, de antemão, nos consolava e dourava todas as decepções. Que força de alma não precisaremos para suportar a nossa nova condição de filhos queridos da vitória tão lancinantemente buscada e festejada?

Vence, 2 de Julho de 2004.

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