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2003/10/28

AS MINHAS MEMÓRIAS DO MANUEL MARIA MÚRIAS(III) 

António da Cruz Rodrigues

(continuação do post de 2003/10/27)


A Guerra do Golfo, os E.U.A. e os judeus

O meu rol de recordações relacionadas com Múrias é, como se vê, variado e extenso. Mas o mais singular ainda será, talvez, que nunca entre nós tenha havido o menor desentendimento ou núvem ameaçadora do clima de militante simpatia que cedo e rapidamente se criou entre nós.

Isso não nos impediu, nem quereríamos, de termos frequentes divergências amigáveis em matéria de opinião e de juízo sobre pessoas e acontecimentos.

Poderia referir vários casos, mas dou só um exemplo, por o considerar particularmente elucidativo do tipo das nossas divergências de opinião.

Era em 1991, durante a chamada Guerra do Golfo, tinha a U.R.S.S. acabado de soçobrar, desfazendo-se em repúblicas e territórios autónomos e ficando a tal ponto impotente que os E. U A. puderam lançar-se, hoje diria sem pudor, na aventura oportunista, bem calculada e bem premeditada, mesmo genialmente articulada por Bush, pai, da guerra contra Saddam Hussein, o presidente do Iraque.

Aliás, mais tarde mediocremente imitada e mais mediocremente executada por Clinton em 1998/1999, contra Milosevic da Sérvia, por causa pretensamente do Kosovo.

Múrias era por Saddam contra os E.UA.; eu contra Saddam.

Ele pretendia que os E.UA. precisavam dum lição contra a sua arrogância agravada pela vitória final na Guerra Fria, então acabada de obter com a implosão do império comunista russo; eu ainda desconfiado do súbito esmagamento da U.R.S.S., não queria consentir nenhum trunfo que eventualmente permitisse, por então, a recuperação comunista, como poderia acontecer se os Americanos e o Ocidente ficassem humilhados na perda daquela cartada mundial. Ele achava que também Israel precisava de um bofetada bem assente, para ver se não continuava, com as suas querelas contra o resto do Médio e Próximo Oriente, a pôr ciclicamente em perigo a paz mundial, arrastando-nos a todos para uma nova Guerra Mundial, em defesa dos seus exclusivos interesses; eu pensava que os Árabes, e os Muçulmanos em geral, mais tarde ou mais cedo se encarregariam disso, de derrotar Israel sem que tivéssemos nós de comprometermo-nos, mas que, por então, prevalecia a necessidade de não deixar os comunistas recuperarem da sua derrota recente, voltando a assumir na sua periferia papel decisivo no vazio que os Americanos, uma vez humilhados, lá deixariam.

Ele rematou a discussão com uma ironia: «Só há uma coisa em que você tem razão é que assim não teremos de voltar a receber na Europa, nos próximos tempos, milhares ou milhões de judeus em fuga de Israel, caso os E.UA. percam ou não ganhem esta guerra». Ambos estávamos longe de pensar na altura quanto, passados menos de dez anos, Israel viria a estar realmente ameaçado de soçobrar a uma simples, mas complexa Intifada e o Mundo ocidental efectivamente ameaçado de ter de entrar numa guerra que pode generalizar-se, em defesa só dos interesses judaicos e limitadamente americanos.

Excluída a ironia, a discussão era, pois, toda ela muito... séria, porque, como se vê, os problemas do Médio e Próximo Oriente, conservam a plena actualidade, e cada vez mais, até. Nós que os vivemos, outra vez, agora intensamente, adivinhamos onde a discussão de há dez anos, continuada na actualidade, acabaria por levar.


Descendente de judeus - ele de portuguesíssima cultura

Mas, mudando de assunto, se me perguntarem o que me parece que melhor caracterizava a personalidade do Manuel Maria Múrias, responderei sem hesitar que era o seu profundo e enorme portuguesismo, ele que também afirmava alto a sua descendência de judeus cristãos-novos do nordeste de Portugal, pelo lado materno, Baptista, nome que igualmente usava.

Filho de um grande jornalista e escritor, erudito e historiador, o Dr. Manuel Múrias, o que intelectualmente de certo modo mais avultava na formação do Manuel Maria era a sua marca de herdeiro espiritual, seguidor, contemporâneo ou interlocutor de três ou quatro gerações duma grande elite cultural portuguesa do séc. XX.

Como que para lembrar bem as suas origens e clima em que foi criado, e as suas dívidas culturais, ele gostava de lembrar que aos onze anos já assistia com deleite às conversas entre seu Pai, comissário para Exposição do Mundo Português, e o ministro da tutela, nada mais nada menos que o Eng. Duarte Pacheco, ou, um pouco mais tarde, às tertúlias no gabinete de seu Pai, director da Biblioteca Nacional, com intelectuais portugueses e não raro o romeno Mircea Eliade e o espanhol Ortega y Gasset, o primeiro então adido cultural à embaixada da Roménia e o segundo refugiado da Guerra Civil de Espanha.

Mas isso eram apenas vagas recordações de infância, porque o que nele se revelava único e definitivo era a sua cultura toda radicada no substracto duma assídua e regular convivência e familiaridade de autores de sucessivas gerações que sedimentaram a grandeza da inteligência portuguesa no séc. XX. Estou certo de que ele evocaria facilmente estes que recordo, entre mortos e vivos, um pouco ao acaso da memória, necessariamente com as lacunas que o Manuel Maria saberia evitar: o próprio Pai, Manuel Múrias, naturalmente, Rodrigues Cavalheiro, os Caetano Beirão, Pai e Filho, João Ameal, Damião Peres, Barradas de Oliveira, Domingos Mascarenhas, Amândio César, Eduardo Freitas da Costa, Manuel Gama, Augusto Gil, Alberto de Monsaraz, Ladislau Patrício, António Alves Martins, Guilherme de Faria, Álvaro Pinto, Nuno Sampayo, Manuel Alves de Oliveira, o Homem Cristo Filho, Leitão de Barros, Cotinelli TeImo, António Lopes Ribeiro, Fernando Garcia, Perdigão Queiroga, Manoel de Oliveira, Amadeo Sousa Cardoso, Luís Reis Santos, Diogo de Macedo, Ivo Cruz (Pai) e Manuel Ivo Cruz, Luís e Pedro de Freitas Branco, Francisco Franco, Almada Negreiros, António Duarte, Leopoldo de Almeida, Raul Lino, Manuel Lapa, Júlio Gil, Marcelo de Morais, António Pedro, António Lino, Santa Rita Pintor, Jorge Barradas, Mário Saa, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira, Luís de Montalvôr, Augusto de Castro, Fernando de Sousa, António Ferro, João de Castro Osório, Fernanda de Castro Ferro, Alfredo Pimenta, José Osório de Oliveira, Armando da Silva, Virgílio Godinho, Mascarenhas Barreto, António Sardinha, Hipólito Raposo, Xavier Cordeiro, José Pequito Rebelo, João do Amaral, Eugénio Tamagnini, António Patrício, Luís Forjaz Trigueiros, Miguel Trigueiros, César Augusto de Oliveira, António de Navarro, Óscar Paxeco, Horácio Bessa Ferreira, José Pacheco, Joaquim e Anrique Paço d'Arcos, António de Oliveira Salazar, Paulo Merêa, Luís Cabral de Moncada, Mário de Figueiredo, Mário de Albuquerque, Fezas Vital, Quirino de Jesus, Arnaldo Miranda Barbosa, Gomes Teixeira, Hernâni Cidade, Tomás de Figueiredo, Francisco Costa, Mário Beirão, Nuno Montemor, Conde de Aurora, Antero de Figueiredo, Alberto Monsaraz, Pedro Homem de Mello, Francisco José Velozo, Vitorino Nemésio, Agustina Bessa Luís, Miguel Torga, Folgado da Silveira, Reis Ventura, Natércia Freire, Ester de Lemos, João Correia de Oliveira, António de Cértima, Rachel Bastos, Vítor Martins, David Mourão-Ferreira, Joaquim Navarro de Andrade, Armando Cortesão, António José Saraiva, Marcelo Alves Caetano, Luís da Câmara Pina, Silvino Silvério Marques, Kaúlza de Arriaga, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Guilherme Braga da Cruz, Manuel Rodrigues, Beleza dos Santos, José Pires Cardoso, Francisco Leite Pinto, Alberto Franco Nogueira, Reynaldo dos Santos, Diogo Pacheco de Amorim, José e Femando Bayolo Pacheco de Amorim, Afonso Rodrigues Queiró, Luís Ribeiro Soares, Jorge Borges de Macedo, José Dias Ferreira, Virgínia Rau, Francisco e João Manuel Cortez Pinto, Pedro Correia Marques, António de Sèves, Eduardo Brazão, Fortunato de Almeida, Fidelino de Figueiredo, A. Mendes Corrêa, Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro, Adriano Moreira, Afonso Botelho, António Quadros, Orlando Vitorino, Agostinho da Silva, Ruy Cinatti, José Marinho, António Braz Teixeira, Henrique Barrilaro Ruas, António TeImo, Femando Sylvan, Azinhal Abelho, Tomás Kim, José Hermano Saraiva, Pedro Soares Martinez, Henrique Martins de Carvalho, Manuel Gomes da Silva, António Manuel Pinto Barbosa, António Jacinto Ferreira, Joaquim Veríssimo Serrão, Daniel Serrão, D. Manuel Trindade Salgueiro, D. Francisco Maria da Silva, D. Manuel Mendes da Conceição Santos, D. António Reis Rodrigues, D. Manuel Almeida Trindade, D. José Patrocínio Dias, Mons. Miguel de Oliveira, Mons. Moreira das Neves, P.e Raul Machado, P.e Domingos Maurício dos Santos, P.e João Maia, P.e Joaquim de Jesus Guerra, P.e Henrique Rêma, P.e João Evangelista, P.e João Seabra, P.e José Quelhas Bigote, António José de Brito, António de Pina Martins, Ricardo Saavedra, António Manuel Couto Viana, Fernando Guedes, Manuel e Artur Anselmo, Fernando Jasmins Pereira, António Banha de Andrade, Herlânder Duarte, Jaime Nogueira Pinto, Rodrigo Emílio de Mello, Goulart Nogueira, João Bigotte Chorão, Miguel Castelo Branco, Luís Pinto Coelho, José Guimarães, Amorim de Carvalho, António Silva Resende, João Manuel Andrade, Mário Mendóça Frazão, Carlos Eduardo Bastos Soveral, Fernando Campos, Pinharanda Gomes, João Conde Veiga, Armor Pires Mota, Fernanda Leitão, Mário Saraiva, Francisco Hipólito Raposo, Barroso da Fonte, António Maria Zorro, Beckert d' Assunção, José O'Neill, José Vale de Figueiredo, Nuno Rogeiro, José Miguel Júdice, etc., etc., etc.

Herdeiro, contemporâneo ou interlocutor da gente desta pléiade de mestres e exemplos de portuguesismo, Manuel Maria Múrias era um deles e, se foi discípulo e seguidor de muitos, foi exemplo e referência dos outros, como modelo de português de uma só peça, de antes quebrar que torcer, português de lei porque bebeu o essencial da sua cultura em raízes acima de tudo portuguesas. Raízes que, aliás, iam buscar seiva aos grandes expoentes da cultura portuguesa de todos os séculos, mas, talvez mais acentuadamente ainda, aos grandes modelos de portuguesismo cultural do séc. XIX, como Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, João de Deus, Conde de Arnoso, Oliveira Martins, os irmãos António e Jacinto Cândido...

Quero em suma dizer que o Manuel Maria Múrias era verdadeiramente, como poucos ou nenhuns, o herdeiro e devedor directo duma formidável elite intelectual e cultural portuguesa. O que lhe bastava inteiramente. Dispensava, por isso, ser ou apresentar-se como herdeiro e devedor de qualquer outra das grandes tradições culturais da matriz judaica, cristã e europeia; fosse ela espanhola, italiana, inglesa, alemã, russa ou mesmo francesa, por muito grandes que tenham sido ou sejam.


O homem de profunda fé católica

E contudo, a imagem do Manuel Múrias ficaria radicalmente amputada se, recordando-o como homem de cultura e de espírito, o não recordássemos, com igual vigor e justiça, como homem de funda espiritualidade.

Quem o conheceu, intimamente ou não, ou quem leu certos dos seus escritos, sabe como era capaz de se mostrar terrivelmente duro com sacerdotes e Bispos que julgasse no essencial traidores à tradição da Fé ou adversos a Portugal.

Manuel Maria Múrias seria tudo, menos um clericalista.

Mas sempre o conheci irrepreensivelmente fiel à sua Fé de católico, apostólico romano, ao magistério dos Papas, portanto.

No meio dos seus constantes e prolongados sofrimentos dos últimos anos ou das suas iras de sempre de Português quando ferido no seu portuguesismo, jamais o senti tergiversar na sua fidelidade a Cristo e à sua Igreja, pelo contrário.

Mas - Santo Deus! - uma capacidade como poucas para estigmatizar e cobrir de sarcasmos padres e Bispos de pechisbeque.

Por isso, porque foi, enquanto a saúde lhe deixou, batalhador temido e intemerato e sem repouso, justifica-se bem que lhe apontemos o voto sagrado, catolicíssimo e portuguesíssimo: Que Deus o tenha em Sua santa guarda!

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