2005/04/22
Retórica sobre a escravatura
Penso que temos para com os nossos leitores a obrigação de lembrar-lhes este artigo, que transcrevemos, publicado no “Público” do último sábado, 16. Aqui fica, para esclarecimento de mais consciências.
A.C.R.
Carlos Pacheco*
O mito fundamental é aquele que se constrói à medida que os modismos e jargões da época penetram na nossa prosa histórica e literária.
Keith Thomas, Historiador Inglês
Folha de São Paulo, 4 de Abril de 1999
É hábito nos tempos que correm pedir ou exigir desculpas pelos crimes do passado. Diria ser um ornamento ideológico tão do agrado de pessoas que exercem altos cargos políticos e religiosos. Apraz-lhes o gesto e a ênfase de trazer à memória factos históricos que exercitam como elementos de comunicação com o grande público. Não porque gostem de análises e de definições rigorosas, mas porque sentem uma necessidade funcional ou táctica de manipular a História em proveito dos seus países, partidos ou Igrejas.
Bill Clinton é um exemplo. Enquanto Presidente dos EUA socorreu-se deste expediente num giro pela África subsariana em Março de 1998. Pediu desculpas aos africanos pelo comércio transatlântico de escravos e prometeu maior responsabilidade do seu pais por relações de parceria mais justas com o continente. Esta loa de moralidade soou bem aos dirigentes africanos. A maior parte encabeçava (e ainda encabeça)regimes de corrupção e violência. O que ouviram fê-los profetizar mais dinheiro, mais prerrogativas e mais apoios para se manterem nos cargos supremos do Estado.
Clinton conhecia o carácter dos seus interlocutores e a natureza obscena dos seus governos. Isso, no entanto, não lhe interessava. A aposta eram os negócios e, para tal desígnio, o pedido de desculpas funcionou como disfarce encantador: adulou o orgulho patriótico dos africanos e, ao mesmo tempo, reforçou o poder das suas corruptocracias. A América já então no limiar de uma nova política de penetração comercial, procurava levar à prática a doutrina do "crescimento e oportunidades em África", sendo aprioridade o incremento da exploração de matérias-primas estratégicas e o petróleo o seu pilar central.
Outro exemplo é o ex-Presidente de Moçambique e da Frelimo Joaquim Chissano, ele próprio um ex-colonizado que sofreu na pele as injustiças e as humilhações da colonização. Recentemente, ao usar da palavra em Braga num acto solene, reclamou das antigas potências coloniais, incluindo Portugal, uma atitude de desagravo para com os milhões de africanos sacrificados à lógica do "negócio ignóbil" da escravatura. E sublinhou que a África e as suas populações ainda hoje, não obstante as emancipações nacionais, permanecem reduzidas à condição de objectos, em virtude de as ajudas externas não serem verdadeiras. Ou melhor: estarem desvirtuadas pelo paternalismo e pela dependência.
Como se pode ver, o mito recorrente da escravatura é utilizado nestas duas intervenções com propósitos distintos, embora os objectivos sejam igualmente farisaicos. Falta a Chissano autoridade para falar dos cativeiros do seu povo. O mais doloroso e prolongado foi, sem dúvida, a escravatura e o seu comércio a longa distância, na bacia do Atlântico. Contudo, não se pense terem sido somente os grupos económicos europeus e negociantes particulares a tirar partido deste sistema de exploração; ou ainda, em menor escala, os comandantes de navios, os governadores e outros delegados e agentes do governo colonial; bem como os seus protectores na Secretaria de Negócios da Marinha e Ultramar, em Lisboa.
Os ajustes, conluios e associações misteriosas na "costa dos escravos"(desde Luanda ao Daomé, passando pelo Cabo da Boa Esperança e subindo até Zanzibar) teve outras dimensões e envolveu outros protagonistas. Implicou (nos espaços coloniais submetidos à soberania lusitana) armadores e comerciantes abastados da classe nativa do litoral(negros, brancos e mulatos) que faziam gala de si próprios com as graduações militares honorificas que recebiam do monarca. Inúmeras vezes esses negreiros indígenas vingaram-se de empregados públicos, seus patrícios, por estes se recusarem a ser cúmplices ou a fechar os olhos à sua imoralidade e avidez de ganhos ilícitos. Mancomunados com governadores e outros europeus da mesma facção, a Coroa pouquíssimas vezes puniu as suas infâmias e ladroagens.
Chissano preferiu omitir este facto fundamental. A verdade é que os "filhos do país",urbanizados, nascidos na faixa marítima ou na "hinterlândia", foram negreiros que ostentaram desde o século XV pergaminhos próprios de uma elite local poderosa e influente na administração do Estado colonial. Desgraçado do governador que não lesse pela sua cartilha e os ameaçasse com medidas repressivas: faziam-lhe a vida negra e ameaçavam amotinar-se. Pelo seu estatuto social e riqueza, essa "elite intermediária", enquanto tal, também colonizou os segmentos sociais menos favorecidos. Até os sobas aproveitaram o sistema escravista de trocas para vender os seus súbditos. Os hábitos e as vantagens no negócio enquistaram-se de tal forma que, quando tudo acabou, o matianvua (chefe tshoke da Lunda) se mostrou perplexo e indignado.
Todos participaram, portanto — europeus e africanos —, desse tráfico. Não contesto que, por via da transacção de escravos, e sobretudo com o comércio proibido a partir de 1836, se abateram sobre as possessões ultramarinas as piores perversões. Servidores públicos e habitantes em geral procuraram ora locupletar-se com o que se lhes oferecia de mais fácil e rendoso a curto prazo, ora entesourar o que não lhes pertencia, deixando de lado riquezas duradouras como a agricultura. Nem a quebra do monopólio no comércio de marfim salvou a economia desses territórios.
A política colonial de Portugal com a restauração liberal em 1834 tornou-se caótica e imprevidente e o que veio a seguir, dos anos 50 para diante, foi o marasmo total. As mentes dos naturais embruteceram por falta de escolas. Os intelectuais africanos, impacientes com as injustiças que cresciam nas suas sociedades, passaram a lutar pela
redenção do homem africano. O nativismo irrompeu, então, pujante no último quartel e os seus paladinos foram, nem mais nem menos, os filhos dos negreiros de outrora.
O nacionalismo moderno, corporizado na Frelimo e noutros movimentos, pareceu auspiciar, com a independência, a destruição de todos os cativeiros e ultrajes da colonização. Mas semelhante ilusão logo se desvaneceu. Os novos apóstolos da libertação nacional cedo se converteram em apóstolos da desgraça e da corrupção: usurparam privilégios, distribuíram os bens nacionais por uns poucos, fomentaram a pobreza e reduziram o Estado a uma nova oligarquia subserviente aos interesses estrangeiros. Ao governarem até hoje para um partido, sujeitaram os seus países a regimes de inquisição política, chacinaram os opositores e criaram novos "universos concentracionários".
Pedir perdão aos africanos é, com certeza, um acto de arrependimento que louvo e aprecio. Não conforme a exigência de Chissano e de alguns historiadores em Portugal e no Brasil. É necessário serem os próprios detentores do poder em Moçambique, Angola e noutros Estados—muitos deles tetranetos dos antigos negreiros — a fazê-lo, e mais ninguém, porque são eles, depois de tudo, que trazem os seus povos ainda encarcerados, votados à morte, à penúria, à servidão e à neocolonização.
*Historiador Angolano
A.C.R.
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Carlos Pacheco*
O mito fundamental é aquele que se constrói à medida que os modismos e jargões da época penetram na nossa prosa histórica e literária.
Keith Thomas, Historiador Inglês
Folha de São Paulo, 4 de Abril de 1999
É hábito nos tempos que correm pedir ou exigir desculpas pelos crimes do passado. Diria ser um ornamento ideológico tão do agrado de pessoas que exercem altos cargos políticos e religiosos. Apraz-lhes o gesto e a ênfase de trazer à memória factos históricos que exercitam como elementos de comunicação com o grande público. Não porque gostem de análises e de definições rigorosas, mas porque sentem uma necessidade funcional ou táctica de manipular a História em proveito dos seus países, partidos ou Igrejas.
Bill Clinton é um exemplo. Enquanto Presidente dos EUA socorreu-se deste expediente num giro pela África subsariana em Março de 1998. Pediu desculpas aos africanos pelo comércio transatlântico de escravos e prometeu maior responsabilidade do seu pais por relações de parceria mais justas com o continente. Esta loa de moralidade soou bem aos dirigentes africanos. A maior parte encabeçava (e ainda encabeça)regimes de corrupção e violência. O que ouviram fê-los profetizar mais dinheiro, mais prerrogativas e mais apoios para se manterem nos cargos supremos do Estado.
Clinton conhecia o carácter dos seus interlocutores e a natureza obscena dos seus governos. Isso, no entanto, não lhe interessava. A aposta eram os negócios e, para tal desígnio, o pedido de desculpas funcionou como disfarce encantador: adulou o orgulho patriótico dos africanos e, ao mesmo tempo, reforçou o poder das suas corruptocracias. A América já então no limiar de uma nova política de penetração comercial, procurava levar à prática a doutrina do "crescimento e oportunidades em África", sendo aprioridade o incremento da exploração de matérias-primas estratégicas e o petróleo o seu pilar central.
Outro exemplo é o ex-Presidente de Moçambique e da Frelimo Joaquim Chissano, ele próprio um ex-colonizado que sofreu na pele as injustiças e as humilhações da colonização. Recentemente, ao usar da palavra em Braga num acto solene, reclamou das antigas potências coloniais, incluindo Portugal, uma atitude de desagravo para com os milhões de africanos sacrificados à lógica do "negócio ignóbil" da escravatura. E sublinhou que a África e as suas populações ainda hoje, não obstante as emancipações nacionais, permanecem reduzidas à condição de objectos, em virtude de as ajudas externas não serem verdadeiras. Ou melhor: estarem desvirtuadas pelo paternalismo e pela dependência.
Como se pode ver, o mito recorrente da escravatura é utilizado nestas duas intervenções com propósitos distintos, embora os objectivos sejam igualmente farisaicos. Falta a Chissano autoridade para falar dos cativeiros do seu povo. O mais doloroso e prolongado foi, sem dúvida, a escravatura e o seu comércio a longa distância, na bacia do Atlântico. Contudo, não se pense terem sido somente os grupos económicos europeus e negociantes particulares a tirar partido deste sistema de exploração; ou ainda, em menor escala, os comandantes de navios, os governadores e outros delegados e agentes do governo colonial; bem como os seus protectores na Secretaria de Negócios da Marinha e Ultramar, em Lisboa.
Os ajustes, conluios e associações misteriosas na "costa dos escravos"(desde Luanda ao Daomé, passando pelo Cabo da Boa Esperança e subindo até Zanzibar) teve outras dimensões e envolveu outros protagonistas. Implicou (nos espaços coloniais submetidos à soberania lusitana) armadores e comerciantes abastados da classe nativa do litoral(negros, brancos e mulatos) que faziam gala de si próprios com as graduações militares honorificas que recebiam do monarca. Inúmeras vezes esses negreiros indígenas vingaram-se de empregados públicos, seus patrícios, por estes se recusarem a ser cúmplices ou a fechar os olhos à sua imoralidade e avidez de ganhos ilícitos. Mancomunados com governadores e outros europeus da mesma facção, a Coroa pouquíssimas vezes puniu as suas infâmias e ladroagens.
Chissano preferiu omitir este facto fundamental. A verdade é que os "filhos do país",urbanizados, nascidos na faixa marítima ou na "hinterlândia", foram negreiros que ostentaram desde o século XV pergaminhos próprios de uma elite local poderosa e influente na administração do Estado colonial. Desgraçado do governador que não lesse pela sua cartilha e os ameaçasse com medidas repressivas: faziam-lhe a vida negra e ameaçavam amotinar-se. Pelo seu estatuto social e riqueza, essa "elite intermediária", enquanto tal, também colonizou os segmentos sociais menos favorecidos. Até os sobas aproveitaram o sistema escravista de trocas para vender os seus súbditos. Os hábitos e as vantagens no negócio enquistaram-se de tal forma que, quando tudo acabou, o matianvua (chefe tshoke da Lunda) se mostrou perplexo e indignado.
Todos participaram, portanto — europeus e africanos —, desse tráfico. Não contesto que, por via da transacção de escravos, e sobretudo com o comércio proibido a partir de 1836, se abateram sobre as possessões ultramarinas as piores perversões. Servidores públicos e habitantes em geral procuraram ora locupletar-se com o que se lhes oferecia de mais fácil e rendoso a curto prazo, ora entesourar o que não lhes pertencia, deixando de lado riquezas duradouras como a agricultura. Nem a quebra do monopólio no comércio de marfim salvou a economia desses territórios.
A política colonial de Portugal com a restauração liberal em 1834 tornou-se caótica e imprevidente e o que veio a seguir, dos anos 50 para diante, foi o marasmo total. As mentes dos naturais embruteceram por falta de escolas. Os intelectuais africanos, impacientes com as injustiças que cresciam nas suas sociedades, passaram a lutar pela
redenção do homem africano. O nativismo irrompeu, então, pujante no último quartel e os seus paladinos foram, nem mais nem menos, os filhos dos negreiros de outrora.
O nacionalismo moderno, corporizado na Frelimo e noutros movimentos, pareceu auspiciar, com a independência, a destruição de todos os cativeiros e ultrajes da colonização. Mas semelhante ilusão logo se desvaneceu. Os novos apóstolos da libertação nacional cedo se converteram em apóstolos da desgraça e da corrupção: usurparam privilégios, distribuíram os bens nacionais por uns poucos, fomentaram a pobreza e reduziram o Estado a uma nova oligarquia subserviente aos interesses estrangeiros. Ao governarem até hoje para um partido, sujeitaram os seus países a regimes de inquisição política, chacinaram os opositores e criaram novos "universos concentracionários".
Pedir perdão aos africanos é, com certeza, um acto de arrependimento que louvo e aprecio. Não conforme a exigência de Chissano e de alguns historiadores em Portugal e no Brasil. É necessário serem os próprios detentores do poder em Moçambique, Angola e noutros Estados—muitos deles tetranetos dos antigos negreiros — a fazê-lo, e mais ninguém, porque são eles, depois de tudo, que trazem os seus povos ainda encarcerados, votados à morte, à penúria, à servidão e à neocolonização.
*Historiador Angolano