2004/02/19
DEPOIS DO “DEBATE SOBRE O ABORTO” - ONDE ESTÁ O TEU IRMÃO?
Comissão Nacional Justiça e Paz
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
A votação sobre a “interrupção voluntária da gravidez” veio terminar um amplo debate, nem sempre suficientemente sereno, mas que mobilizou praticamente o país todo. Esta mobilização, num país onde o debate público é ainda pouco significativo, pode ser indicativa de que a vida é uma preocupação que atravessa a sociedade portuguesa, embora, o que é normal e salutar, a partir de perspectivas e preocupações diferenciadas.
Para já, o debate acabou. Dada a nossa tendência para intelectualizar as coisas em vez de as viver, corremos o risco de nos ficarmos pela lei, esquecendo as pessoas. Assim sendo, parece oportuno destacar alguns aspectos.
Para a CNJP, é preciso continuar a recordar que, independentemente da lei que foi aprovada ou que futuramente venha a sê-lo, o aborto é sempre um crime moral, por muito despenalizadora que seja a lei, pois a Assembleia nunca pode legislar sobre a moralidade de um qualquer acto. É importante insistir nisto porque para muitos a despenalização de um acto aprovada pela lei (esfera legal) acarreta automaticamente a sua despenalização perante a consciência (esfera moral), quando é exactamente a inversa que é verdadeira. Pôr a dimensão moral subordinada à legal é, pois, inverter a prioridade das opções. No entanto, o modo como estes debates têm sido conduzidos não contribui muito para esclarecer esta confusão, antes pelo contrário, com consequências graves para a consciência dos cidadãos.
O resultado da votação permitiu às comunidades cristãs respirarem de alívio, mas, parece, de um alívio do tipo “do mal o menos”. O melhor era não alterar a lei, mas, a ter de ser, que o seja o mínimo possível. Contudo, também a lei actualmente existente foi objecto de críticas e rejeições, na altura da sua discussão e aprovação. Esta atitude dos cristãos perante a evolução da sociedade, baseada no critério de “do mal o menos”, nada tem de evangélica, porque significa andarem sempre a reboque, incapazes de serem propositivos e activos, resguardando-se numa posição de reactividade defensiva. Por outro lado, esta dificuldade em criar pontes de diálogo manifesta a incapacidade de perceber ou de querer aceitar que a proposta evangélica de salvação é uma proposta entre muitas numa sociedade plural e secular e que a fé católica não se impõe, mas se propõe.
Em quaisquer circunstâncias, os cristãos são continuamente interpelados por aquela pergunta terrível que ressoa desde as primeiras páginas da Bíblia: “Onde está o teu irmão?”. Também agora que o debate acabou, somos especialmente chamados a dar respostas concretas à pergunta bíblica. Que resposta vai ser dada pelos que tanto “lutaram contra o aborto” e pelas comunidades cristãs, mais prontas a atirar pedras do que a testemunhar a misericórdia de Deus?
Concretamente, onde está a nossa irmã que, quantas vezes por falta de uma adequada educação sexual, concebeu um filho e não se sente com maturidade suficiente para o criar ou para resistir às pressões do meio ambiente?
Onde estão os nossos irmãos que a falta de condições habitacionais atirou para a promiscuidade?
Onde está a nossa irmã, mãe solteira, que teve a coragem de não abortar, assumindo o risco de ser desprezada pela própria comunidade cristã que tanto condena teoricamente o aborto?
Onde estão os nossos irmãos que não têm as condições mínimas para ter mais filhos?
Onde está a nossa irmã que na hora da decisão e da angústia não tem um ombro onde apoiar a cabeça nem uma palavra lúcida que lhe rasgue as trevas da solidão?
Onde estão os nossos irmãos para quem a responsabilidade pelo acto cometido é esmagada pelo prazer do imediato e pelo egoísmo comodista?
Ir ao encontro destes irmãos, acolhê-los e dar-lhes apoio psicológico, afectivo, económico e social é a única resposta possível que as comunidades cristãs, que querem ser rostos vivos de um Deus que ama e se comove, são chamados a dar à grande interpelação: “Onde está o teu irmão?”.
(Maio de 1997)
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